Ainda que seja bafejada por uma aragem de sensatez, a ideia de que a virtude está no meio é uma falácia que contraria um postulado da geometria euclidiana. Melhor explicar. Se aceitarmos que uma reta tem infinitos pontos, segue, por definição, que qualquer um deles estará equidistante de dois outros, o que significa que qualquer ideia, por mais tresloucada que seja, sempre pode estar a meio caminho de duas outras, sendo ou não virtuosa.
Por exemplo, um facínora psicopata que planeja exterminar toda a humanidade e é confrontado com a ideia de que ele não deve matar ninguém pode decidir trucidar apenas mulheres e crianças, uma alternativa intermediária - nem todo mundo nem ninguém.
A digressão surge a propósito do que podemos esperar para a política econômica no primeiro ano do próximo governo. A disjuntiva diante da qual está colocada a sociedade brasileira não se dá entre continuísmo ou reformas. Não será continuísmo nem mais do mesmo. Ainda que ganhando um segundo mandato, a presidente Dilma Rousseff terá de introduzir algumas mudanças na sua atual política econômica. Os mais recentes indicadores mostram que o crescimento míngua. O mercado de trabalho, bastião da esperança petista, dá seus derradeiros suspiros. Nos últimos 12 meses, a indústria fechou 11,4 mil postos de trabalho, o pior resultado desde novembro de 2009. É possível empurrar com a barriga por mais quatro meses - mas não é possível procrastinar por mais quatro anos.
O ajuste terá de contemplar pelo menos quatro pontos, a começar pela recuperação das tarifas públicas, em especial o preço dos combustíveis, sem o que a Petrobrás não conseguirá fazer os investimentos com os quais se comprometeu. Em termos reais, o preço da gasolina hoje é 17% mais baixo que o preço médio durante o governo Lula. Também terá de desobstruir a agenda dos investimentos em infraestrutura, acelerando as concessões de serviços públicos, condição básica para sairmos do atoleiro. O câmbio também terá de andar, não só porque em algum momento os especuladores recusarão o "Mickey mouse money" representado pelos swaps cambiais do Banco Central, mas também porque a indústria precisa de um analgésico enquanto se busca uma solução para seus graves problemas estruturais. Por fim, será imperativo recuperar um mínimo de credibilidade para a política fiscal, o que pode ser ajudado pela inevitável troca de comando no Ministério da Fazenda, mesmo que um ajuste significativo esteja fora de cogitação.
Pode-se argumentar que a presidente Dilma não mudará sua política econômica, já que no seu segundo mandato não terá nada a perder. Será ela mesma, em versão concentrada. Não é bem assim. A presidente, em que pese sua escassa empatia popular, domina o cálculo político. Não queimará seu único passaporte para a vida civil, que é a sua relação com Lula. Não só porque a retomada de algum crescimento será fundamental para facilitar nova eleição do ex-presidente em 2018, mas também porque a continuada estagnação econômica provocaria uma crise institucional de grandes proporções. É preciso mudar para que tudo fique como está, como já se disse.
Se as mudanças com Dilma não significam reformas, também há pouco que esperar dos candidatos de oposição. Reformas pressupõem a construção de propostas minimamente consensuais, e o início da campanha eleitoral já demonstra que a falta de convicção dos candidatos se ajusta perfeitamente à inconveniência de discutir temas espinhosos durante o debate eleitoral. Há decisões duras a serem tomadas para promover a reordenação das finanças públicas. Mas parte importante da opinião pública se compraz com a tese de que tudo não passa de um problema de gestão, já que pagamos altos impostos, e que, eliminados os desvios e desperdícios, tudo voltará a bom termo.
A oposição não tem por que resistir à tentação de concordar com esse diagnóstico equivocado, já que ninguém se elege prometendo sacrifícios. Melhor tergiversar e não discutir, por exemplo, a imperiosa necessidade de acabar com a superindexação do salário mínimo. No entanto, estamos encalacrados numa armadilha fiscal que exige gastos cada vez maiores para cobrir, entre outras despesas, custos crescentes associados à cobertura de saúde universal e ao ônus de um sistema previdenciário que, em muitos aspectos, obedece a regras frouxas e, em muitos casos, benevolentes. Com o aumento contínuo da expectativa de vida da população brasileira, essas duas condições vão se manifestar de forma cada vez mais intensa. Entre 2000 e 2015 os gastos da previdência subirão 547%, segundo previsões do governo, ante um Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) de 156%. A inflação dos serviços médicos e hospitalares, por sua vez, tem sido cerca de três vezes mais alta do que o IPCA, graças ao envelhecimento populacional e à incorporação de novas tecnologias cada vez mais caras.
Deflagrar um novo ciclo de crescimento está na dependência de um novo pacto fiscal, que é tema indigesto e tem tudo para não ser debatido na campanha eleitoral. Se for, merecerá respostas evasivas, dissimuladas. Melhor nos iludirmos com a tese tão inofensiva quanto inepta de que podemos crescer de forma acelerada após uns poucos ajustes superficiais.
Sem continuísmo e sem reformas, seguiremos o caminho intermediário. Ganharemos tempo para adiar a tomada de decisões mais difíceis. Acreditaremos que a virtude está no meio. Enquanto isso, no horário político, os candidatos venderão a ideia de que tudo é fácil, simples e indolor. Dirão que o futuro nos sorri. Pode ser até verdade, mas, sem mudanças estruturais, neste sorriso sempre faltará o dente da frente. O caminho do meio nos deixará no meio do caminho.
Por exemplo, um facínora psicopata que planeja exterminar toda a humanidade e é confrontado com a ideia de que ele não deve matar ninguém pode decidir trucidar apenas mulheres e crianças, uma alternativa intermediária - nem todo mundo nem ninguém.
A digressão surge a propósito do que podemos esperar para a política econômica no primeiro ano do próximo governo. A disjuntiva diante da qual está colocada a sociedade brasileira não se dá entre continuísmo ou reformas. Não será continuísmo nem mais do mesmo. Ainda que ganhando um segundo mandato, a presidente Dilma Rousseff terá de introduzir algumas mudanças na sua atual política econômica. Os mais recentes indicadores mostram que o crescimento míngua. O mercado de trabalho, bastião da esperança petista, dá seus derradeiros suspiros. Nos últimos 12 meses, a indústria fechou 11,4 mil postos de trabalho, o pior resultado desde novembro de 2009. É possível empurrar com a barriga por mais quatro meses - mas não é possível procrastinar por mais quatro anos.
O ajuste terá de contemplar pelo menos quatro pontos, a começar pela recuperação das tarifas públicas, em especial o preço dos combustíveis, sem o que a Petrobrás não conseguirá fazer os investimentos com os quais se comprometeu. Em termos reais, o preço da gasolina hoje é 17% mais baixo que o preço médio durante o governo Lula. Também terá de desobstruir a agenda dos investimentos em infraestrutura, acelerando as concessões de serviços públicos, condição básica para sairmos do atoleiro. O câmbio também terá de andar, não só porque em algum momento os especuladores recusarão o "Mickey mouse money" representado pelos swaps cambiais do Banco Central, mas também porque a indústria precisa de um analgésico enquanto se busca uma solução para seus graves problemas estruturais. Por fim, será imperativo recuperar um mínimo de credibilidade para a política fiscal, o que pode ser ajudado pela inevitável troca de comando no Ministério da Fazenda, mesmo que um ajuste significativo esteja fora de cogitação.
Pode-se argumentar que a presidente Dilma não mudará sua política econômica, já que no seu segundo mandato não terá nada a perder. Será ela mesma, em versão concentrada. Não é bem assim. A presidente, em que pese sua escassa empatia popular, domina o cálculo político. Não queimará seu único passaporte para a vida civil, que é a sua relação com Lula. Não só porque a retomada de algum crescimento será fundamental para facilitar nova eleição do ex-presidente em 2018, mas também porque a continuada estagnação econômica provocaria uma crise institucional de grandes proporções. É preciso mudar para que tudo fique como está, como já se disse.
Se as mudanças com Dilma não significam reformas, também há pouco que esperar dos candidatos de oposição. Reformas pressupõem a construção de propostas minimamente consensuais, e o início da campanha eleitoral já demonstra que a falta de convicção dos candidatos se ajusta perfeitamente à inconveniência de discutir temas espinhosos durante o debate eleitoral. Há decisões duras a serem tomadas para promover a reordenação das finanças públicas. Mas parte importante da opinião pública se compraz com a tese de que tudo não passa de um problema de gestão, já que pagamos altos impostos, e que, eliminados os desvios e desperdícios, tudo voltará a bom termo.
A oposição não tem por que resistir à tentação de concordar com esse diagnóstico equivocado, já que ninguém se elege prometendo sacrifícios. Melhor tergiversar e não discutir, por exemplo, a imperiosa necessidade de acabar com a superindexação do salário mínimo. No entanto, estamos encalacrados numa armadilha fiscal que exige gastos cada vez maiores para cobrir, entre outras despesas, custos crescentes associados à cobertura de saúde universal e ao ônus de um sistema previdenciário que, em muitos aspectos, obedece a regras frouxas e, em muitos casos, benevolentes. Com o aumento contínuo da expectativa de vida da população brasileira, essas duas condições vão se manifestar de forma cada vez mais intensa. Entre 2000 e 2015 os gastos da previdência subirão 547%, segundo previsões do governo, ante um Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) de 156%. A inflação dos serviços médicos e hospitalares, por sua vez, tem sido cerca de três vezes mais alta do que o IPCA, graças ao envelhecimento populacional e à incorporação de novas tecnologias cada vez mais caras.
Deflagrar um novo ciclo de crescimento está na dependência de um novo pacto fiscal, que é tema indigesto e tem tudo para não ser debatido na campanha eleitoral. Se for, merecerá respostas evasivas, dissimuladas. Melhor nos iludirmos com a tese tão inofensiva quanto inepta de que podemos crescer de forma acelerada após uns poucos ajustes superficiais.
Sem continuísmo e sem reformas, seguiremos o caminho intermediário. Ganharemos tempo para adiar a tomada de decisões mais difíceis. Acreditaremos que a virtude está no meio. Enquanto isso, no horário político, os candidatos venderão a ideia de que tudo é fácil, simples e indolor. Dirão que o futuro nos sorri. Pode ser até verdade, mas, sem mudanças estruturais, neste sorriso sempre faltará o dente da frente. O caminho do meio nos deixará no meio do caminho.
29 de julho de 2014
Luis Eduardo Assis, O Estadão
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