Centenário da 1ª Guerra Mundial encontra refeitos alguns princípios que, por um bom tempo, o século 20 acreditou ultrapassados
Muitas certezas, nem todas descabidas, acalentavam o espírito europeu de um século atrás. Parcela importante da humanidade começava a beneficiar-se de um padrão de vida inédito na história.
A ciência e a tecnologia realizavam, de modo ininterrupto, feitos impressionantes. O desenvolvimento industrial e o crescimento das cidades estendiam a instrução, os direitos políticos e os benefícios sociais a contingentes cada vez maiores da população.
Nesse ambiente de otimismo e progresso civilizacional, outras duas constatações, igualmente plausíveis, mas contraditórias, circulavam nos meios informados.
Um embate generalizado entre as nações europeias, dizia-se às vésperas de 1914, seria extremamente improvável. Os meios técnicos de destruição haviam chegado a tais níveis de poder e eficiência que mesmo um país eventualmente vitorioso emergiria do conflito em estado de completa ruína. Uma grande guerra seria o suicídio da civilização no continente.
Ao mesmo tempo, cresciam os sinais de que a batalha tendia a ser inevitável. A corrida armamentista entre Inglaterra e Alemanha, no plano naval, e os crescentes investimentos de franceses e russos em seus Exércitos eram a face mais visível de uma rotina de atritos e crises que, em torno de longínquas possessões africanas ou asiáticas, opunham entre si potências imperiais --e eram debeladas a custo.
Se era inevitável, melhor travá-la o mais cedo possível, antes que o inimigo se tornasse ainda mais forte. O raciocínio, presente entre importantes lideranças alemãs ou russas, por exemplo, acrescentava-se, perversamente, de uma argumentação inversa.
Se ninguém, de fato, desejava a guerra, tornava-se mais vantajosa a situação do país que mais se mostrasse disposto a empreendê-la. Como num arriscadíssimo jogo de cartas, as apostas se duplicavam na expectativa de que o adversário estivesse apenas blefando.
Na ausência de mecanismos estáveis de arbitragem internacional, confiava-se no equilíbrio em tese proporcionado por um sistema de pactos multilaterais, impondo a intervenção de um país sempre que seu aliado fosse ameaçado pelo bloco rival.
O mecanismo apoiava-se em bases frágeis, todavia, e ademais remanescentes de uma realidade econômica e política em declínio.
Com efeito, entidades multinacionais como o Império Austro-Húngaro e o Império Otomano cediam, década após década, à vaga dos movimentos de emancipação que criariam o caleidoscópio de países até hoje presente no Leste Europeu e na península Balcânica.
A mais complexa crise diplomática da história humana teve seu desfecho, como se sabe, na Primeira Guerra Mundial (1914-1918), cujo centenário de início se rememora nesta data, ainda com um sentimento de horror e perplexidade.
Comparado ao que viria mais adiante no século 20, o conflito de 1914-1918 chega a diminuir em proporções. O cálculo conservador de 10 milhões de mortos por engenhos inovadores em seu diabólico poder de devastação, mais o inumerável contingente de mutilados de forma inédita, pode não ter, depois de Hitler e Stálin, o mesmo efeito de causar horror em quem dele toma conhecimento.
Mesmo assim, a Primeira Guerra significaria, para seus contemporâneos, algo que as experiências posteriores não mais seriam capazes de transmitir.
Ideias como civilização, paz e progresso entravam então em amargo colapso; a barbárie tecnológica, a impotência da razão e do bom senso, a violência militarizada não mais confinada aos campos de batalha --tudo isso sepultava as certezas a que se aludiu no começo deste texto.
Entretanto, depois de inúmeros traumas e tragédias, o centenário daqueles enfrentamentos parece encontrar refeitos, naturalmente sem a antiga ingenuidade, alguns dos princípios que o século 20, por um bom tempo, acreditou ultrapassados.
A proteção aos direitos individuais, a democracia, a liberdade de pensamento, o livre-comércio, o investimento na cultura e na ciência sobreviveram aos seguidos golpes civilizacionais que se inauguraram em 1914.
Estenderam-se depois a outras partes do planeta, acrescidos de avanços impensáveis há um século em termos de tolerância religiosa, liberdade sexual e descrédito num modo repressivo e reprimido de conduzir a vida.
A humanidade aprendeu a descartar o otimismo de outros tempos; mas pode desacreditar, igualmente, do pessimismo daqueles que viam, em 1914, a inutilidade de todas as suas esperanças.
Muitas certezas, nem todas descabidas, acalentavam o espírito europeu de um século atrás. Parcela importante da humanidade começava a beneficiar-se de um padrão de vida inédito na história.
A ciência e a tecnologia realizavam, de modo ininterrupto, feitos impressionantes. O desenvolvimento industrial e o crescimento das cidades estendiam a instrução, os direitos políticos e os benefícios sociais a contingentes cada vez maiores da população.
Nesse ambiente de otimismo e progresso civilizacional, outras duas constatações, igualmente plausíveis, mas contraditórias, circulavam nos meios informados.
Um embate generalizado entre as nações europeias, dizia-se às vésperas de 1914, seria extremamente improvável. Os meios técnicos de destruição haviam chegado a tais níveis de poder e eficiência que mesmo um país eventualmente vitorioso emergiria do conflito em estado de completa ruína. Uma grande guerra seria o suicídio da civilização no continente.
Ao mesmo tempo, cresciam os sinais de que a batalha tendia a ser inevitável. A corrida armamentista entre Inglaterra e Alemanha, no plano naval, e os crescentes investimentos de franceses e russos em seus Exércitos eram a face mais visível de uma rotina de atritos e crises que, em torno de longínquas possessões africanas ou asiáticas, opunham entre si potências imperiais --e eram debeladas a custo.
Se era inevitável, melhor travá-la o mais cedo possível, antes que o inimigo se tornasse ainda mais forte. O raciocínio, presente entre importantes lideranças alemãs ou russas, por exemplo, acrescentava-se, perversamente, de uma argumentação inversa.
Se ninguém, de fato, desejava a guerra, tornava-se mais vantajosa a situação do país que mais se mostrasse disposto a empreendê-la. Como num arriscadíssimo jogo de cartas, as apostas se duplicavam na expectativa de que o adversário estivesse apenas blefando.
Na ausência de mecanismos estáveis de arbitragem internacional, confiava-se no equilíbrio em tese proporcionado por um sistema de pactos multilaterais, impondo a intervenção de um país sempre que seu aliado fosse ameaçado pelo bloco rival.
O mecanismo apoiava-se em bases frágeis, todavia, e ademais remanescentes de uma realidade econômica e política em declínio.
Com efeito, entidades multinacionais como o Império Austro-Húngaro e o Império Otomano cediam, década após década, à vaga dos movimentos de emancipação que criariam o caleidoscópio de países até hoje presente no Leste Europeu e na península Balcânica.
A mais complexa crise diplomática da história humana teve seu desfecho, como se sabe, na Primeira Guerra Mundial (1914-1918), cujo centenário de início se rememora nesta data, ainda com um sentimento de horror e perplexidade.
Comparado ao que viria mais adiante no século 20, o conflito de 1914-1918 chega a diminuir em proporções. O cálculo conservador de 10 milhões de mortos por engenhos inovadores em seu diabólico poder de devastação, mais o inumerável contingente de mutilados de forma inédita, pode não ter, depois de Hitler e Stálin, o mesmo efeito de causar horror em quem dele toma conhecimento.
Mesmo assim, a Primeira Guerra significaria, para seus contemporâneos, algo que as experiências posteriores não mais seriam capazes de transmitir.
Ideias como civilização, paz e progresso entravam então em amargo colapso; a barbárie tecnológica, a impotência da razão e do bom senso, a violência militarizada não mais confinada aos campos de batalha --tudo isso sepultava as certezas a que se aludiu no começo deste texto.
Entretanto, depois de inúmeros traumas e tragédias, o centenário daqueles enfrentamentos parece encontrar refeitos, naturalmente sem a antiga ingenuidade, alguns dos princípios que o século 20, por um bom tempo, acreditou ultrapassados.
A proteção aos direitos individuais, a democracia, a liberdade de pensamento, o livre-comércio, o investimento na cultura e na ciência sobreviveram aos seguidos golpes civilizacionais que se inauguraram em 1914.
Estenderam-se depois a outras partes do planeta, acrescidos de avanços impensáveis há um século em termos de tolerância religiosa, liberdade sexual e descrédito num modo repressivo e reprimido de conduzir a vida.
A humanidade aprendeu a descartar o otimismo de outros tempos; mas pode desacreditar, igualmente, do pessimismo daqueles que viam, em 1914, a inutilidade de todas as suas esperanças.
29 de julho de 2014
Editorial Folha de SP
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