Vinha pela rua, a empregada regava a calçada, eu disse amavelmente:
- Desculpe-me, a senhora não sabe que a água está sendo um problema?
Ah! É?
Não tem chovido, precisamos economizar a água.
Hum, hum...
E continuava sem me olhar.
A senhora ouviu o que eu disse?
Ouvi.
E...?
O senhor se meta com a sua vida.
Outro dia, cena semelhante. Um senhor atirava o jato de água contra as folhas, conduzindo-as aos bueiros. Divertia-se. Interpelei:
Por que faz isso?
O quê? O que estou fazendo para irritar o senhor?
Mudei o tom, não percebi, devia ter me exaltado.
- Primeiro, gastando água. Segundo, mandando as folhas para o bueiro, que vai entupir. E quando as chuvas chegarem vai ser aquela calamidade.
- Quem é o senhor? Fiscal?
- Não.
- Por que se preocupa com a água? Está faltando?
- Pode ser que falte, olhe a seca, o sol, o calor.
- Quando faltar o problema é meu.
Em um terceiro encontro, adverti a empregada que lavava usando motorzinho, o jato levantava poeira, folhas, galhos, tampinhas, maços de cigarros, frascos de iogurte. Nas ruas tem de tudo, jogam a torto e a direito.
Não sabe que o governo está pedindo para racionar água?
Não sei de nada.
- Com o calor, sem as chuvas, as represas estão vazias, vai dar o maior problema.
- Que represas? Do que o senhor fala?
- As represas que abastecem a cidade. A água pode acabar.
- Se acabar, meu patrão compra. Sabe quem é meu patrão?
- Não, não tenho ideia.
- Um ricão. Não se preocupe, aqui nunca vai faltar água.
A via-sacra se estendeu, porque, como diz o povinho humilde, quando "encatiço" com uma coisa, prossigo. Nova cena.
- Por que você está gastando água desse jeito, se começou a faltar?
Aqui ainda não. Quem disse que vai faltar?
Os jornais, o noticiário da televisão.
- Bobagem. Se fosse faltar, o Boechat tava mandando o pau, ele é bom. O José Paulo Andrade ia pegar no pé do prefeito. Se fosse faltar, a Sabesp ia avisar. Tudo o que vi da Sabesp foram comerciais dizendo que o litoral está limpo, saneado. O senhor pensa que está falando com um bobo? Leio, converso, sei, sou instruído, sou zelador aqui do prédio. O síndico daqui não deu nenhuma orientação, a piscina está cheia, tudo em paz. O senhor quer é pentelhar. É um missionário?
Não sou, tenho meus ataques, ainda que nesta cidade os ataques sejam perigosíssimos, você pode estar morto no minuto seguinte a uma palavra mal interpretada. Está todo mundo ouriçado, estressado, o calor abafando, antessala do inferno, os bandidos atacando, o Haddad nem se importando, o transito congestionando, o sol queimando, a chuva desaparecida. Está na hora de convocar a dança da chuva pelos índios. Uma senhora de seus 60 anos, varria cuidadosamente a calçada, apanhou o lixo num saquinho, fechou e amarrou. Fiquei olhando. Finalmente alguém consciente. Ia elogiar quando ela puxou a mangueira, abriu a torneira e começou a molhar a parede. Não resisti:
O que está fazendo?
Molhando a parede.
Para que molhar?
Não vê? É de pedra. Para esfriar, Molho três vezes ao dia.
Não devia! Não sabe que com a seca a água está a perigo?
- Só sei que faço o que me mandam fazer. O senhor não é meu patrão. Venha falar com ele. Isso é briga de grandão, não me meta, não me encha. Com esse calor, vou molhar a parede até esfriar quantas vezes eu quiser. Ou molho ou sou despedida. O problema da água não é comigo, é com o prefeito, com o governador, é com a Dilma. Vai falar com eles, já que é tão intrometido.
- Bem que queria, bem que devia, mas eles estão em campanha eleitoral. A senhora tem razão. Pena! Muita pena que todos nós não estejamos nos intrometendo, não estejamos pentelhando. Quando faltar água, vamos trazer da Bolívia, de Cuba, da Venezuela, dos países amigos...
A senhora me olhou intrigada, deu as costas, mandou o jato na parede, o sol se refletiu, formou um arco-íris lindo, as cores da seca que se anunciam, da calamidade anunciada.
- Desculpe-me, a senhora não sabe que a água está sendo um problema?
Ah! É?
Não tem chovido, precisamos economizar a água.
Hum, hum...
E continuava sem me olhar.
A senhora ouviu o que eu disse?
Ouvi.
E...?
O senhor se meta com a sua vida.
Outro dia, cena semelhante. Um senhor atirava o jato de água contra as folhas, conduzindo-as aos bueiros. Divertia-se. Interpelei:
Por que faz isso?
O quê? O que estou fazendo para irritar o senhor?
Mudei o tom, não percebi, devia ter me exaltado.
- Primeiro, gastando água. Segundo, mandando as folhas para o bueiro, que vai entupir. E quando as chuvas chegarem vai ser aquela calamidade.
- Quem é o senhor? Fiscal?
- Não.
- Por que se preocupa com a água? Está faltando?
- Pode ser que falte, olhe a seca, o sol, o calor.
- Quando faltar o problema é meu.
Em um terceiro encontro, adverti a empregada que lavava usando motorzinho, o jato levantava poeira, folhas, galhos, tampinhas, maços de cigarros, frascos de iogurte. Nas ruas tem de tudo, jogam a torto e a direito.
Não sabe que o governo está pedindo para racionar água?
Não sei de nada.
- Com o calor, sem as chuvas, as represas estão vazias, vai dar o maior problema.
- Que represas? Do que o senhor fala?
- As represas que abastecem a cidade. A água pode acabar.
- Se acabar, meu patrão compra. Sabe quem é meu patrão?
- Não, não tenho ideia.
- Um ricão. Não se preocupe, aqui nunca vai faltar água.
A via-sacra se estendeu, porque, como diz o povinho humilde, quando "encatiço" com uma coisa, prossigo. Nova cena.
- Por que você está gastando água desse jeito, se começou a faltar?
Aqui ainda não. Quem disse que vai faltar?
Os jornais, o noticiário da televisão.
- Bobagem. Se fosse faltar, o Boechat tava mandando o pau, ele é bom. O José Paulo Andrade ia pegar no pé do prefeito. Se fosse faltar, a Sabesp ia avisar. Tudo o que vi da Sabesp foram comerciais dizendo que o litoral está limpo, saneado. O senhor pensa que está falando com um bobo? Leio, converso, sei, sou instruído, sou zelador aqui do prédio. O síndico daqui não deu nenhuma orientação, a piscina está cheia, tudo em paz. O senhor quer é pentelhar. É um missionário?
Não sou, tenho meus ataques, ainda que nesta cidade os ataques sejam perigosíssimos, você pode estar morto no minuto seguinte a uma palavra mal interpretada. Está todo mundo ouriçado, estressado, o calor abafando, antessala do inferno, os bandidos atacando, o Haddad nem se importando, o transito congestionando, o sol queimando, a chuva desaparecida. Está na hora de convocar a dança da chuva pelos índios. Uma senhora de seus 60 anos, varria cuidadosamente a calçada, apanhou o lixo num saquinho, fechou e amarrou. Fiquei olhando. Finalmente alguém consciente. Ia elogiar quando ela puxou a mangueira, abriu a torneira e começou a molhar a parede. Não resisti:
O que está fazendo?
Molhando a parede.
Para que molhar?
Não vê? É de pedra. Para esfriar, Molho três vezes ao dia.
Não devia! Não sabe que com a seca a água está a perigo?
- Só sei que faço o que me mandam fazer. O senhor não é meu patrão. Venha falar com ele. Isso é briga de grandão, não me meta, não me encha. Com esse calor, vou molhar a parede até esfriar quantas vezes eu quiser. Ou molho ou sou despedida. O problema da água não é comigo, é com o prefeito, com o governador, é com a Dilma. Vai falar com eles, já que é tão intrometido.
- Bem que queria, bem que devia, mas eles estão em campanha eleitoral. A senhora tem razão. Pena! Muita pena que todos nós não estejamos nos intrometendo, não estejamos pentelhando. Quando faltar água, vamos trazer da Bolívia, de Cuba, da Venezuela, dos países amigos...
A senhora me olhou intrigada, deu as costas, mandou o jato na parede, o sol se refletiu, formou um arco-íris lindo, as cores da seca que se anunciam, da calamidade anunciada.
07 de fevereiro de 2014
Ignácio de Loyola Brandão, O Estado de S. Paulo
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