Ao falar sobre defeitos e virtudes humanos, Spinoza afirma que "só os homens livres têm reciprocamente, uns para com os outros, o mais alto reconhecimento" (Ética). Quando, sob pressão oficial, a um povo é subtraída a escolha efetiva, torna-se uma perigosa crueldade dele exigir gratidão pelos feitos dos governantes. A lição foi dada a Spinoza por Maquiavel.
Os palácios brasileiros, movidos pela propaganda, tentam coibir a oposição e a crítica usando a chantagem orçamentária ou abusando da força física. Acostumada à demagogia que, desde Vargas, lhe rende uma legitimidade de encomenda, a cortesania não aceita que o povo, presumidamente beneficiado por suas administrações, recuse praticar as zumbaias e os rapapés tão comuns nos gabinetes. Com muitos eleitores ainda funciona o "é dando que se recebe". Mas graças às formas de comunicação como a internet, tal prática se atenua a olhos vistos. O controle face a face, tradicional no Brasil, perde terreno para formas coletivas de trato entre mandatários e cidadania. Exigir gratidão pelo favor recebido mostra pleno anacronismo e sinaliza uma tendência reacionária dos governantes.
Segundo entoam os atuais ocupantes do poder federal, imitados por seus bajuladores, vivemos sob um governo de esquerda. Toda crítica aos dirigentes é vista como atentado ao processo revolucionário que habita a alma dos líderes e militantes, mas é invisível aos seres humanos comuns. Quem está a par da teoria leninista conhece a distinção lógica entre o bom proletário e a massa apegada às reivindicações "puramente econômicas" (aumento de salário, condições de consumo, etc). O primeiro sacrifica tudo, até a vida, em favor do socialismo. A segunda só chegaria à lucidez sob o guante dos intelectuais (a consciência vinda de fora...) e do partido. Sem tal obediência o trabalhador é visto como inimigo pelos apparatchiks. Se for grato e adiar suas reclamações financeiras ou políticas, ele é reconhecido pelo Estado, recebe medalhas como digno êmulo de Alexei Stakhanov. Com semelhante domesticação se construiu o poder estatal na pátria do socialismo.
Ainda hoje, na mente de muitos líderes nominalmente de esquerda e modernizadores, a massa popular tem apenas o direito de ser tangida pelos iluminados que, em seu nome, a conduzem rumo ao melhor dos mundos possíveis. Josef Stalin, num retrocesso histórico à guisa de realismo político, retomou com mão de ferro os ritos czaristas para impor os seus planos à plebe ignara (leia-se O Homem, o Capital Mais Precioso). Nos governantes brasileiros de agora se afirma o mesmo sestro contrário à soberania popular.
Em comícios, Luiz Inácio da Silva repreende a massa e define quem deve ser por ela enaltecido ou excomungado. Na faina de controlar os adeptos e com abuso do cajado no pastoreio, chegou ao ponto sublime no enunciado (com sotaque do Antigo Regime) de que José Sarney não é um cidadão comum. A populaça levanta-se contra o patrimonialismo maranhense porque, imagina o Grande Líder, ignora o saber político. Ela precisa aprender históricas lições de realismo tendo em vista a governabilidade, ou seja, a grata obediência ao oligarca. Outra cena caricata e trágica de retorno ao passado ocorreu nos jardins da casa de Paulo Maluf num abraço que apunhalou a própria elite esquerdista.
O dono do partido considera a política pública que, desde o Plano Real, incluiu no mercado milhões de brasileiros um favor devido à sua pessoa. Stalin regrediu ao período monárquico, unindo a honraria de ser "pai do povo" (título comum aos reis europeus antes da Revolução Francesa) ao populismo sem peias. Herdeiro da cultura política imposta pelo absolutismo português, o Brasil jamais aniquilou a prática do favor, da clientela, da suposta gratidão dos pobres diante dos "benfeitores". Tais costumes vêm da República Romana, que jamais foi democrata. Nela a fé pública dependia do rico que mantinha a plebe na abjeta dependência. O favor prestado pelo patrão era retribuído agradecidamente pelo favor do voto. Como a soberania popular era um mito a ser respeitado, embora desobedecido, mesmo o aristocrata que concorria aos cargos era obrigado a pedir o voto dos clientes como se fosse um beneficium.
O eufemismo ainda encobre o controle político. Poucos (fora os ditadores que se atribuíram o título de Benefactor, como Anastasio Somoza) ousam exigir "gratidão" das massas por suas benfeitorias, reais ou imaginárias. Gilberto Carvalho, secretário da Presidência, rompeu a barreira das formas decorosas ao evidenciar o seu estado de espírito em face das manifestações populares (que ameaçam retornar em ano eleitoral). Em junho de 2013, confessa ele, "houve quase que um sentimento de ingratidão, de dizer: 'fizemos tanto por essa gente e agora eles se levantam contra nós'". O lapso revela muito da alma governista.
Temos, ademais, notícias de preparo das Forças Armadas e da polícia para a próxima Copa do Mundo. No manual repressivo com normas para o uso da força física pelos agentes oficiais (o Ministério da Defesa prepara uma edição mais branda, para inglês ler) o inimigo é o povo ingrato. Este não amadureceu o bastante para reconhecer os benefícios trazidos pelos patrões do Planalto. A fala do ministro evidencia: se houve ideal modernizante em sua grei, ele foi sepultado na vala do realismo político.
De tanto se unir aos oligarcas que forçam seus eleitores a ver como "um favor" as obras públicas e os recursos arrancados do campo federal, os governistas os mimetizam. Nunca antes neste país os nhonhôs foram tão gratos aos que habitam os palácios. A palavra "esquerda" é folha de parreira que encobre uma prática que deveria, se exibida na TV, ser proibida aos menores de idade. "Ah, sai daí", senhor ministro!
Os palácios brasileiros, movidos pela propaganda, tentam coibir a oposição e a crítica usando a chantagem orçamentária ou abusando da força física. Acostumada à demagogia que, desde Vargas, lhe rende uma legitimidade de encomenda, a cortesania não aceita que o povo, presumidamente beneficiado por suas administrações, recuse praticar as zumbaias e os rapapés tão comuns nos gabinetes. Com muitos eleitores ainda funciona o "é dando que se recebe". Mas graças às formas de comunicação como a internet, tal prática se atenua a olhos vistos. O controle face a face, tradicional no Brasil, perde terreno para formas coletivas de trato entre mandatários e cidadania. Exigir gratidão pelo favor recebido mostra pleno anacronismo e sinaliza uma tendência reacionária dos governantes.
Segundo entoam os atuais ocupantes do poder federal, imitados por seus bajuladores, vivemos sob um governo de esquerda. Toda crítica aos dirigentes é vista como atentado ao processo revolucionário que habita a alma dos líderes e militantes, mas é invisível aos seres humanos comuns. Quem está a par da teoria leninista conhece a distinção lógica entre o bom proletário e a massa apegada às reivindicações "puramente econômicas" (aumento de salário, condições de consumo, etc). O primeiro sacrifica tudo, até a vida, em favor do socialismo. A segunda só chegaria à lucidez sob o guante dos intelectuais (a consciência vinda de fora...) e do partido. Sem tal obediência o trabalhador é visto como inimigo pelos apparatchiks. Se for grato e adiar suas reclamações financeiras ou políticas, ele é reconhecido pelo Estado, recebe medalhas como digno êmulo de Alexei Stakhanov. Com semelhante domesticação se construiu o poder estatal na pátria do socialismo.
Ainda hoje, na mente de muitos líderes nominalmente de esquerda e modernizadores, a massa popular tem apenas o direito de ser tangida pelos iluminados que, em seu nome, a conduzem rumo ao melhor dos mundos possíveis. Josef Stalin, num retrocesso histórico à guisa de realismo político, retomou com mão de ferro os ritos czaristas para impor os seus planos à plebe ignara (leia-se O Homem, o Capital Mais Precioso). Nos governantes brasileiros de agora se afirma o mesmo sestro contrário à soberania popular.
Em comícios, Luiz Inácio da Silva repreende a massa e define quem deve ser por ela enaltecido ou excomungado. Na faina de controlar os adeptos e com abuso do cajado no pastoreio, chegou ao ponto sublime no enunciado (com sotaque do Antigo Regime) de que José Sarney não é um cidadão comum. A populaça levanta-se contra o patrimonialismo maranhense porque, imagina o Grande Líder, ignora o saber político. Ela precisa aprender históricas lições de realismo tendo em vista a governabilidade, ou seja, a grata obediência ao oligarca. Outra cena caricata e trágica de retorno ao passado ocorreu nos jardins da casa de Paulo Maluf num abraço que apunhalou a própria elite esquerdista.
O dono do partido considera a política pública que, desde o Plano Real, incluiu no mercado milhões de brasileiros um favor devido à sua pessoa. Stalin regrediu ao período monárquico, unindo a honraria de ser "pai do povo" (título comum aos reis europeus antes da Revolução Francesa) ao populismo sem peias. Herdeiro da cultura política imposta pelo absolutismo português, o Brasil jamais aniquilou a prática do favor, da clientela, da suposta gratidão dos pobres diante dos "benfeitores". Tais costumes vêm da República Romana, que jamais foi democrata. Nela a fé pública dependia do rico que mantinha a plebe na abjeta dependência. O favor prestado pelo patrão era retribuído agradecidamente pelo favor do voto. Como a soberania popular era um mito a ser respeitado, embora desobedecido, mesmo o aristocrata que concorria aos cargos era obrigado a pedir o voto dos clientes como se fosse um beneficium.
O eufemismo ainda encobre o controle político. Poucos (fora os ditadores que se atribuíram o título de Benefactor, como Anastasio Somoza) ousam exigir "gratidão" das massas por suas benfeitorias, reais ou imaginárias. Gilberto Carvalho, secretário da Presidência, rompeu a barreira das formas decorosas ao evidenciar o seu estado de espírito em face das manifestações populares (que ameaçam retornar em ano eleitoral). Em junho de 2013, confessa ele, "houve quase que um sentimento de ingratidão, de dizer: 'fizemos tanto por essa gente e agora eles se levantam contra nós'". O lapso revela muito da alma governista.
Temos, ademais, notícias de preparo das Forças Armadas e da polícia para a próxima Copa do Mundo. No manual repressivo com normas para o uso da força física pelos agentes oficiais (o Ministério da Defesa prepara uma edição mais branda, para inglês ler) o inimigo é o povo ingrato. Este não amadureceu o bastante para reconhecer os benefícios trazidos pelos patrões do Planalto. A fala do ministro evidencia: se houve ideal modernizante em sua grei, ele foi sepultado na vala do realismo político.
De tanto se unir aos oligarcas que forçam seus eleitores a ver como "um favor" as obras públicas e os recursos arrancados do campo federal, os governistas os mimetizam. Nunca antes neste país os nhonhôs foram tão gratos aos que habitam os palácios. A palavra "esquerda" é folha de parreira que encobre uma prática que deveria, se exibida na TV, ser proibida aos menores de idade. "Ah, sai daí", senhor ministro!
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