As pessoas são obrigadas a compartilhar os detalhes mais íntimos de suas vidas
Na coluna da semana passada, falei um pouco sobre o desafio de escrever ficção contemporânea na era digital e usei como exemplos Steven Hall e Thomas Pynchon. Naquela ocasião, deixei de fora outra leitura recente que também se relaciona ao tema e rendia um comentário à parte: o romance “The Circle”, de Dave Eggers. Embora seja um livro comportado em termos de forma e linguagem, ele se destaca por abordar de maneira bastante direta não apenas as novas tecnologias e serviços que transformam nossas vidas, mas também as ideologias que movem muitas empresas do setor e vêm embutidas em seus produtos.
“The Circle”, o Círculo, é o nome da empresa que, dentro do futuro próximo inventado por Eggers, desbancou o Google e o Facebook e se tornou a marca dominante no ecossistema de redes sociais, gadgets e serviços on-line. A protagonista do livro, Mae Holland, é uma garota de 24 anos que consegue um cobiçado emprego no enorme e extravagantecampus (termo pelo qual as gigantes do Vale do Silício costumam se referir a suas sedes) do Círculo.
Mae começa por baixo, trabalhando no setor de atendimento aos anunciantes. Logo nos primeiros dias, precisa abrir contas em todos os serviços do Círculo, enviar todas as suas fotos e vídeos para a nuvem, comparecer ao máximo de eventos e grupos de discussão organizados por seus milhares de contatos e galgar posições em vários rankings de participação e eficiência. Eggers tira uma onda com o estilo de vida do tech people, que o livro retrata como uma massa homogênea de escravos da originalidade, carente de aprovação nas redes sociais, para quem a experiência direta foi substituída por estatísticas, interfaces virtuais, enquetes sobre o menu vegan da cantina e abaixo-assinados contra a opressão em países distantes.
Até aí, não é um retrato muito distante do imaginário comum. Mas logo o incentivo à conectividade se transforma em coação. Mae é pressionada a compartilhar seus dados médicos e os hábitos mais íntimos. Deve monitorar e exibir seus passos, sinais vitais, sentimentos e opiniões sobre tudo em nome de um valor supremo: a transparência. Ser transparente, ou seja, abrir mão da privacidade, é sinônimo de ser generoso. A ideologia do compartilhamento total vai ganhando proporções perturbadoras. As únicas vozes dissidentes, entre elas os pais e o ex-namorado de Mae, vão sendo esmagadas em nome do direito comunitário de ter acesso a toda informação concebível. Um dos projetos do Círculo é contar os grãos de areia do Saara. Na crença de seus fundadores, o compartilhamento online do pensamento humano em tempo real só dependerá da tecnologia necessária.
O livro é em parte uma distopia totalitarista no molde de “1984”, em parte uma paródia da ideologia da geração Google. Os três lemas do Círculo — Segredos são Mentiras; Compartilhar é se Importar; Privacidade é Roubo — são alicerces da visão dominante segundo a qual um estado de vigilância total traria benefícios à Humanidade reduzindo crimes, aproximando os seres humanos e aprimorando a democracia. Eggers leva essa lógica às últimas consequências, rumo ao “fechamento do Círculo”, quando as esferas privada e pública se fundem e todo o conhecimento possível fica disponível a todos.
Pode-se argumentar que há um certo desequilíbrio entre o realismo e a fantasia no mundo apresentado por Eggers, bem como personagens-espantalho facilmente incendiáveis, e leitores versados nos detalhes tecnológicos podem torcer o nariz diante de imprecisões técnicas, mas esse mundo é coerente o bastante com certas tendências atuais para que a leitura traga momentos de desconforto. Como protagonista, Mae pode parecer ingênua e submissa demais, mas ela faz parte de uma sociedade imaginada em que o conceito de privacidade já se tornou obsoleto. No mundo real, a privacidade ainda conta com legiões de defensores e é tema de debates encarniçados como o que tivemos recentemente em torno das biografias no Brasil. A força simbólica da distopia do romance depende muito da crença do leitor a respeito do valor que a privacidade continuará tendo nas próximas gerações.
De todo modo, há trechos em que o texto de Eggers consegue emular a sensação de ser tragado pelo fluxo das redes sociais com uma precisão exasperante. A vida de Mae vai sendo substituída pela administração da informação acerca da vida. É confortante ver a ficção literária dando conta disso, ou pelo menos tentando.
Dia desses o Google Plus abocanhou meus álbuns de fotos privados do Picasa e o conteúdo brotou num passe de mágica no meu smartphone. Foi tão fascinante quanto desconfortável. Em momentos assim, e ao ouvir expressões como “fulano se suicidou no Facebook”, é preciso lembrar que o Círculo não deve se fechar nunca, e que a abertura deve ser larga o bastante para que possamos sair.
25 de novembro de 2013
Daniel Galera, O Globo
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