Uma dessas coisas que só existem no Brasil, como a mula sem cabeça e o adicional de moradia que os juízes recebem para viver na própria casa, é a “bala perdida”. No resto do mundo as armas de fogo nunca disparam sozinhas; se uma bala acerta alguém, é porque um ser humano deu um tiro, de propósito ou por acidente. Aqui não. Toda hora uma pistola ou fuzil abrem fogo, mas ninguém atira. O fato é que nas favelas do Rio de Janeiro e suas vizinhanças a bala perdida se tornou hoje a principal culpada por homicídios de autoria desconhecida. Mas não seriam os criminosos locais que estariam dando esses tiros que matam cada vez mais gente, sobretudo crianças? É uma hipótese que parece não ocorrer nunca no noticiário, e muito menos em qualquer avaliação da Ordem dos Advogados do Brasil, da Anistia Internacional, dos partidos de “esquerda” e outras entidades que se empenham em defender os direitos da população pobre dos morros — no momento ameaçada, segundo elas, pela presença de tropas do Exército nas ruas da cidade. Pelo que dá para entender daquilo que dizem, não há realmente bandidos matando gente nas favelas. Quem mata é “a polícia” ou, então, a bala perdida.
Eis aí uma maneira muito eficaz de esconder quem são os verdadeiros responsáveis pelo massacre em câmera lenta que os moradores mais pobres do Rio de Janeiro estão sofrendo há anos. Se eles são assassinados pela bala perdida, então ninguém é culpado, certo? Afinal de contas, não dá para dizer que a PM mata todo mundo; também ficaria chato dizer que há quadrilhas em guerra, pois isso poderia “criminalizar a pobreza” e reforçar “preconceitos” contra as “comunidades” que cobrem os morros cariocas. Assim, quando os bandidos trocam tiros de AK-47, que podem acertar uma pessoa a 1,5 quilômetro de distância, e acabam matando alguém que não conseguiu se esconder, como é comum acontecer com bebês e crianças pequenas, o assassino é a bala perdida. Pronto — problema resolvido. Todo mundo já pode voltar ao palanque para continuar pregando que o inimigo do pobre é a polícia, agora também o Exército e, se bobear, o juiz Sergio Moro e os desembargadores do TRF4, de Porto Alegre. Pensar desse jeito parece loucura — e é mesmo loucura. Mas, quando se veem as coisas com um pouco mais de atenção, dá para perceber muito bem que existe um método nessa loucura.
A “bala perdida” vem da mesma matriz onde se fabrica a linguagem politicamente correta, no Brasil de hoje, para tratar da questão do crime. Tome cuidado: utilizar um vocabulário diferente pode fazer de você um “fascista”, “direitista”, “golpista”, a favor da “ditadura militar” e sabe-se lá quantos pecados mais. Nessa linguagem o criminoso é sempre descrito como “suspeito”, mesmo que seja pego em flagrante assaltando alguém no meio da rua. Quando a polícia atira contra aqueles que estão de arma na mão em público, ou atirando contra ela, os delinquentes nunca são chamados de bandidos — são “rapazes”, “moradores” ou “pessoas”. Por exemplo: “A PM atirou ontem contra um grupo de rapazes no Complexo da Maré”. Nunca acontecem tiroteios entre quadrilhas de marginais; são “disputas entre facções”. Estão em vigor, também, regras bem claras para estabelecer diferenças morais entre militares e criminosos quando ambos praticam um mesmo ato; basicamente, para quem não quer correr o risco de parecer um extremista de direita, o mais seguro é dizer que a conduta dos militares é do mal e a dos bandidos é do bem, ou neutra.
Quando delinquentes armados invadem uma casa da favela, obrigando seus moradores a escondê-los da polícia durante tanto tempo quanto quiserem, os defensores dos direitos da “comunidade” não abrem a boca. Também não dizem nada quando cidadãos inocentes são forçados a ocultar armas ou drogas em sua residência. Quando o Exército faz uma revista domiciliar, a coisa muda: aí é uma violência contra a privacidade da população. Há grande preocupação da Ordem dos Advogados etc. com o fato de que os militares pedem e fotografam documentos de identidade, na tentativa de localizar foragidos da Justiça. Os bandidos sabem mais sobre os moradores dos morros do que o Exército, a polícia e a Justiça jamais saberão; sabem seus nomes e sobrenomes, endereço, ocupação, família, quanto dinheiro têm, quando devem pagar pela eletricidade, gás ou televisão a cabo, e mais tudo o que queiram saber. Não há lembrança de que isso tenha causado algum dia qualquer protesto por parte dos seus protetores nas classes intelectuais.
É “assim mesmo”, dizem eles — como a bala perdida.
05 de março de 2018
J.R.Guzzo, Revista VEJA
Eis aí uma maneira muito eficaz de esconder quem são os verdadeiros responsáveis pelo massacre em câmera lenta que os moradores mais pobres do Rio de Janeiro estão sofrendo há anos. Se eles são assassinados pela bala perdida, então ninguém é culpado, certo? Afinal de contas, não dá para dizer que a PM mata todo mundo; também ficaria chato dizer que há quadrilhas em guerra, pois isso poderia “criminalizar a pobreza” e reforçar “preconceitos” contra as “comunidades” que cobrem os morros cariocas. Assim, quando os bandidos trocam tiros de AK-47, que podem acertar uma pessoa a 1,5 quilômetro de distância, e acabam matando alguém que não conseguiu se esconder, como é comum acontecer com bebês e crianças pequenas, o assassino é a bala perdida. Pronto — problema resolvido. Todo mundo já pode voltar ao palanque para continuar pregando que o inimigo do pobre é a polícia, agora também o Exército e, se bobear, o juiz Sergio Moro e os desembargadores do TRF4, de Porto Alegre. Pensar desse jeito parece loucura — e é mesmo loucura. Mas, quando se veem as coisas com um pouco mais de atenção, dá para perceber muito bem que existe um método nessa loucura.
A “bala perdida” vem da mesma matriz onde se fabrica a linguagem politicamente correta, no Brasil de hoje, para tratar da questão do crime. Tome cuidado: utilizar um vocabulário diferente pode fazer de você um “fascista”, “direitista”, “golpista”, a favor da “ditadura militar” e sabe-se lá quantos pecados mais. Nessa linguagem o criminoso é sempre descrito como “suspeito”, mesmo que seja pego em flagrante assaltando alguém no meio da rua. Quando a polícia atira contra aqueles que estão de arma na mão em público, ou atirando contra ela, os delinquentes nunca são chamados de bandidos — são “rapazes”, “moradores” ou “pessoas”. Por exemplo: “A PM atirou ontem contra um grupo de rapazes no Complexo da Maré”. Nunca acontecem tiroteios entre quadrilhas de marginais; são “disputas entre facções”. Estão em vigor, também, regras bem claras para estabelecer diferenças morais entre militares e criminosos quando ambos praticam um mesmo ato; basicamente, para quem não quer correr o risco de parecer um extremista de direita, o mais seguro é dizer que a conduta dos militares é do mal e a dos bandidos é do bem, ou neutra.
Quando delinquentes armados invadem uma casa da favela, obrigando seus moradores a escondê-los da polícia durante tanto tempo quanto quiserem, os defensores dos direitos da “comunidade” não abrem a boca. Também não dizem nada quando cidadãos inocentes são forçados a ocultar armas ou drogas em sua residência. Quando o Exército faz uma revista domiciliar, a coisa muda: aí é uma violência contra a privacidade da população. Há grande preocupação da Ordem dos Advogados etc. com o fato de que os militares pedem e fotografam documentos de identidade, na tentativa de localizar foragidos da Justiça. Os bandidos sabem mais sobre os moradores dos morros do que o Exército, a polícia e a Justiça jamais saberão; sabem seus nomes e sobrenomes, endereço, ocupação, família, quanto dinheiro têm, quando devem pagar pela eletricidade, gás ou televisão a cabo, e mais tudo o que queiram saber. Não há lembrança de que isso tenha causado algum dia qualquer protesto por parte dos seus protetores nas classes intelectuais.
É “assim mesmo”, dizem eles — como a bala perdida.
05 de março de 2018
J.R.Guzzo, Revista VEJA
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