A presidente, Dilma Rousseff, soube separar, na tribuna da ONU, os papéis que tem. Falou como chefe de Estado e sobre as escolhas permanentes do Brasil. Desafinou um pouco na parte em que fez alusão ao problema interno, mas nada próximo do vexame que se desenhava a partir das declarações do seu entorno político, e dela própria, nas vésperas da viagem aos Estados Unidos.
Um presidente é chefe de Estado e chefe de governo e seria intolerável que ela, da tribuna da Organização das Nações Unidas, misturasse os dois papéis e fosse tratar de brigas conjunturais nas quais sua administração está envolvida. Pesaram na acertada decisão de Dilma as reações antecipadas ao que estava sendo arquitetado pelo seu grupo, principalmente as declarações de ministros do Supremo. Não teria cabimento transformar a sede da ONU em palanque para sua versão dos fatos, como tem feito sistematicamente com a sede do governo.
Sua interpretação do episódio político vivido no Brasil é tão fora de propósito que só a sua ida já nega o que ela diz. Ninguém que esteja de fato sendo ameaçado de golpe deixa o país e entrega a Presidência a quem está, na sua visão, liderando a conspiração. Sete dos 11 ministros do Supremo Tribunal Federal foram indicados pelos governos Lula e Dilma. Sua versão de que está em curso a derrubada inconstitucional do governo não conversa sequer com seu discurso, no qual, na menção breve que fez à crise interna brasileira, sustentou que a democracia é pujante e que o país venceu o autoritarismo.
O Acordo de Paris foi uma conquista importante para o mundo e por isso a presidente fez bem em vencer sua hesitação inicial de estar presente junto a outros chefes de Estado. Até 48 horas antes, o Itamaraty não tinha ainda a confirmação da viagem da presidente, apesar de a casa que a receberia já ter sido preparada com antecedência. Fez bem também em deixar de lado os conselhos de que deveria usar aquele momento para dar mais um passo na sua estratégia política de enfrentar o processo de impeachment.
Ela se disse orgulhosa do trabalho do seu governo no esforço pelo Acordo de Paris. A democracia é mesmo poderosa. Ela vai empurrando os governantes para mudarem suas posturas e convicções. O governo que inicialmente era contra assumir quaisquer compromissos de redução dos gases de efeito estufa veio mudando nos últimos anos nas negociações internacionais. Internamente, o governo Dilma defendeu projetos que foram altamente lesivos ao meio ambiente, como a Usina de Belo Monte, e inverteu a tendência de queda do desmatamento. Não foram aprovadas regras favoráveis à energia fotovoltaica, a energia eólica cresceu pela insistência da indústria, e houve um aumento da presença de fósseis na matriz.
Mesmo assim, ela pôde apresentar o compromisso de reduzir 37% de redução dos gases de efeito estufa em relação a 2005. Grande parte dessa redução já foi conseguida pela diminuição do desmatamento que houve na gestão de Marina Silva no Ministério do Meio Ambiente. As decisões que a ex-ministra tomou inverteram a tendência do desmatamento. O ex-ministro Carlos Minc, que a sucedeu, manteve a mesma tendência. O desmatamento voltou a crescer nos últimos anos, mesmo assim está bem abaixo do nível de 2005.
Dilma falava na meta de desmatamento ilegal zero em 2030, o que é um absurdo porque, lido ao inverso, significa conviver com a ilegalidade por uma década e meia. Ontem, felizmente, a palavra ilegal saiu do discurso, e a meta passou a ser o desmatamento zero.
Os ambientalistas acham que ela poderia ter aproveitado o momento e ampliado os compromissos brasileiros. Foi o que disse o Observatório do Clima, que reúne um grupo de ONGs, em nota divulgada logo após o discurso. Nela, o Observatório lembra que neste momento de recessão há projetos que são ao mesmo tempo bons para o meio ambiente e bons para a economia. De fato, no governo Obama, o investimento em novas fontes e na economia de baixo carbono foi alavanca para sair da recessão.
O Brasil podia fazer mais, mas não fez feio no Acordo de Paris. E ontem evitou o pior. Seria uma confusão institucional e um erro de protocolo usar um acordo multilateral para expor um conflito local. Ainda mais divulgando uma visão que deprecia de forma injusta as instituições brasileiras.
24 de abril de 2016
Miriam Leitão, O Globo
Um presidente é chefe de Estado e chefe de governo e seria intolerável que ela, da tribuna da Organização das Nações Unidas, misturasse os dois papéis e fosse tratar de brigas conjunturais nas quais sua administração está envolvida. Pesaram na acertada decisão de Dilma as reações antecipadas ao que estava sendo arquitetado pelo seu grupo, principalmente as declarações de ministros do Supremo. Não teria cabimento transformar a sede da ONU em palanque para sua versão dos fatos, como tem feito sistematicamente com a sede do governo.
Sua interpretação do episódio político vivido no Brasil é tão fora de propósito que só a sua ida já nega o que ela diz. Ninguém que esteja de fato sendo ameaçado de golpe deixa o país e entrega a Presidência a quem está, na sua visão, liderando a conspiração. Sete dos 11 ministros do Supremo Tribunal Federal foram indicados pelos governos Lula e Dilma. Sua versão de que está em curso a derrubada inconstitucional do governo não conversa sequer com seu discurso, no qual, na menção breve que fez à crise interna brasileira, sustentou que a democracia é pujante e que o país venceu o autoritarismo.
O Acordo de Paris foi uma conquista importante para o mundo e por isso a presidente fez bem em vencer sua hesitação inicial de estar presente junto a outros chefes de Estado. Até 48 horas antes, o Itamaraty não tinha ainda a confirmação da viagem da presidente, apesar de a casa que a receberia já ter sido preparada com antecedência. Fez bem também em deixar de lado os conselhos de que deveria usar aquele momento para dar mais um passo na sua estratégia política de enfrentar o processo de impeachment.
Ela se disse orgulhosa do trabalho do seu governo no esforço pelo Acordo de Paris. A democracia é mesmo poderosa. Ela vai empurrando os governantes para mudarem suas posturas e convicções. O governo que inicialmente era contra assumir quaisquer compromissos de redução dos gases de efeito estufa veio mudando nos últimos anos nas negociações internacionais. Internamente, o governo Dilma defendeu projetos que foram altamente lesivos ao meio ambiente, como a Usina de Belo Monte, e inverteu a tendência de queda do desmatamento. Não foram aprovadas regras favoráveis à energia fotovoltaica, a energia eólica cresceu pela insistência da indústria, e houve um aumento da presença de fósseis na matriz.
Mesmo assim, ela pôde apresentar o compromisso de reduzir 37% de redução dos gases de efeito estufa em relação a 2005. Grande parte dessa redução já foi conseguida pela diminuição do desmatamento que houve na gestão de Marina Silva no Ministério do Meio Ambiente. As decisões que a ex-ministra tomou inverteram a tendência do desmatamento. O ex-ministro Carlos Minc, que a sucedeu, manteve a mesma tendência. O desmatamento voltou a crescer nos últimos anos, mesmo assim está bem abaixo do nível de 2005.
Dilma falava na meta de desmatamento ilegal zero em 2030, o que é um absurdo porque, lido ao inverso, significa conviver com a ilegalidade por uma década e meia. Ontem, felizmente, a palavra ilegal saiu do discurso, e a meta passou a ser o desmatamento zero.
Os ambientalistas acham que ela poderia ter aproveitado o momento e ampliado os compromissos brasileiros. Foi o que disse o Observatório do Clima, que reúne um grupo de ONGs, em nota divulgada logo após o discurso. Nela, o Observatório lembra que neste momento de recessão há projetos que são ao mesmo tempo bons para o meio ambiente e bons para a economia. De fato, no governo Obama, o investimento em novas fontes e na economia de baixo carbono foi alavanca para sair da recessão.
O Brasil podia fazer mais, mas não fez feio no Acordo de Paris. E ontem evitou o pior. Seria uma confusão institucional e um erro de protocolo usar um acordo multilateral para expor um conflito local. Ainda mais divulgando uma visão que deprecia de forma injusta as instituições brasileiras.
24 de abril de 2016
Miriam Leitão, O Globo
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