"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

EM BUSCA DE UM CONCEITO DE POVO

           DE ATOR SECUNDÁRIO A PROTAGONISTA


Povo brasileiro
O povo brasileiro, na visão de Tarsila do Amaral
Há poucas palavras mais usadas por distintas retóricas do que “povo”. Seu sentido é tão flutuante que as ciências sociais dão-lhe pouco apreço, preferindo falar em “sociedade” ou “classes sociais”. Mas, como nos ensinava L. Wittgenstein, “o significado de uma palavra depende de seu uso”.
Entre nós, quem mais usa positivamente a palavra “povo” são aqueles que se interessam pela sorte das classes subalternas, ou povo. Vamos tentar fazer um esforço teórico para conferir um conteúdo analítico para que o uso do termo sirva àqueles se sentem excluídos.
O primeiro sentido filosófico-social deita suas raízes no pensamento clássico da Antiguidade. Cícero, santo Agostinho e Tomás de Aquino afirmavam que “povo não é qualquer reunião de homens de qualquer modo, mas é a reunião de uma multidão ao redor do consenso do direito e dos interesses comuns”. Cabe ao Estado harmonizar os vários interesses.
OUTROS SENTIDOS
Um segundo sentido de “povo” nos vem da antropologia cultural: é a população que pertence à mesma cultura, habitando determinado território. Esse sentido é legítimo porque distingue um povo do outro. Mas esse conceito oculta as diferenças e até contradições internas: tanto pertencem ao povo um fazendeiro do agronegócio como o peão pobre que vive em sua fazenda. Mas no Estado moderno o poder só se legitima se estiver enraizado no povo. Por isso, a Constituição reza que “todo poder emana do povo e em seu nome deve ser exercido”.
Um terceiro sentido é chave para a política, que é a busca comum do bem comum ou a atividade que busca o poder de Estado para, a partir dele, administrar a sociedade. Na boca dos políticos profissionais, “povo” apresenta grande ambiguidade. Por um lado, expressa o conjunto indiferenciado dos membros de uma sociedade determinada, por outro, significa a gente pobre e com parca instrução, marginalizada. Quando os políticos dizem que “vão ao povo, falam ao povo e agem em benefício do povo”, pensam nas maiorias pobres. Aqui emerge uma dicotomia: entre as maiorias e seus dirigentes ou entre a massa e as elites.
Há um quarto sentido de “povo” que deriva-se da sociologia. Aqui, se impõe certo rigor do conceito para não cairmos no populismo. Inicialmente, possui um sentido político-ideológico na medida em que oculta os conflitos internos do conjunto de pessoas com suas culturas diferentes, status social e projetos distintos. Esse sentido possui parco valor analítico, pois é globalizador demais.
Sociologicamente, “povo” aparece também como uma categoria histórica que se situa entre massa e elites. Numa sociedade que foi colonizada e constituída em classes, aponta clara a figura da elite: os que detêm o ter, o poder e o saber. O “povo” é cooptado como ator secundário de um projeto formulado pelas elites e para as elites.
POVO-MASSA
Mas sempre há rachaduras no processo de hegemonia ou dominação de classe: lentamente, da massa, surgem lideranças carismáticas que organizam movimentos sociais com visão própria. Deixam de ser “povo-massa” e começam a ser cidadãos ativos e relativamente autônomos. Já não dependem das elites. “Povo”, portanto, nasce e é resultado da articulação dos movimentos e das comunidades ativas. Esse é o fato novo no Brasil e na América Latina dos últimos decênios que culminou hoje com as novas democracias de cunho popular e republicano.
Agora podemos falar com certo rigor conceitual: aqui há um “povo” emergente enquanto tem consciência e projeto próprio para o país. Possui também uma dimensão axiológica: todos são chamados a ser povo, deixar de haver dominados e dominadores, mas cidadãos-atores de uma sociedade na qual todos podem participar.

10 de fevereiro de 2015
Leonardo Boff

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