TRATADO DO PORÃO (2a PARTE)
Os porões fazem lembrar lugares furtivos onde se ocultam produtos do roubo, atividades ilícitas, fugitivos da resistência armada, vítimas de sequestros e cadáveres recém encomendados. Com esses escusos empregos que deles se faz, somado à habitual falta de cuidados e de limpeza em sua manutenção, acabam se constituindo em habitats perfeitos para baratas, aranhas, cupins, ratos e outros animais escrotos que sobreviverão à hecatombe nuclear.
Por outro lado, a ameaça do holocausto atômico pode vir a reabilitar esses execrados aposentos subterrâneos como última esperança de sobrevivência da raça humana, reserva de vida no planeta. Esse espaço agourento nem mesmo a radioatividade ousa invadir. Tal redentora perspectiva não é, todavia, suficiente para recobrar sua desgastada imagem ante as honoráveis famílias.
Ninguém pensa em mostrá-los às visitas. “E aqui o nosso lindo porão: latas de tinta, tênis furado, ladrilhos de banheiro, roupas velhas da vovó, desentupidor de privada, raticida, caixa de arruelas, uma mala sem alça, o sofá roxo rasgado, baralho de mico, LPs Xou da Xuxa, um bambolê torto, livros de aritmética, coleção Barsa juvenil, revistas Sentinela e Amiga, um mapa de Aparecida, três vidros de maionese vazios e enfeites de presépio. Adiante uma linda barata morta. Aceita mais um pedaço de bolo de tâmara?”
Alguns dão-lhes um fim mais digno, transformando-os em adegas ou estúdios. Uma exceção às regras dos porões, tanto que, quando é trocada sua finalidade, o nome ‘porão’ é imediatamente suprimido.
Nas antigas residências, o porão era item obrigatório, não apenas como local para guarda de objetos e mantimentos, mas também como refúgio, proteção contra intempéries e entesouramento de valores. A arquitetura moderna, mais funcional e minimalista, defrontando-se com a problemática da escassez de espaço, tentou relegá-lo aos porões da história. Todavia, percebe-se que outros cômodos, como o quarto de empregada ou a área de serviço passaram a desempenhar a mesma função de despensa, indispensável. O que demonstra que os tempos não extinguiram a necessidade que motivou sua concepção original.
Mesmo tendo o porão sido suprimido das novas residências, assim como o foram os sótãos (ainda populares em filmes de terror), como seus préstimos ainda eram requisitados, criaram nova versão, localizando-os, no caso de edifícios, em minúsculos espaços ao lado da garagem, possivelmente para sanar algum problema de engenharia. Aliás, esse é o meu caso. Conferi a condição de ‘porão’ a uma espécie de antro adjacente ao estacionamento do prédio em que resido, o qual cada condômino pode utilizar para depositar suas inutilidades.
Essa confusão de nomenclatura explica-se pelo fato de que o conceito ’porão’, outrora caracterizado pela sua subterrânea localização geográfica, passou, em alguns casos, a ser tipificado pelo ofício que desempenha. O porão, independente de sua localização, é apenas depositário de bugigangas e afins. Ou seja, pelos entulhos e bagulhos que nele se porão.
(continua...)
(Texto extraído do livro O QUE DE MIM SOU EU)
À Cíntia
15 de maio de 2014
Sérgio Sayeg
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