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No romance O Drible, o futebol é o nó que resiste à
interpretação e revela ao extremo a alma brasileira
por FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
Que tudo é traduzível nos termos da paixão pela bola é uma certeza que o ensaísmo local cultiva há muito, extrapolando a sociologia do esporte para propor diagnósticos profundos do país a partir do futebol e seus lances. Para ficarmos só em tempos e exemplos recentes, Nuno Ramos arrisca uma poética do jogo em “Os suplicantes”, seção de seu Ensaio Geral (Globo, 2007); Tales Ab’Sáber faz uma leitura psicanalítica da derrota da Seleção de 1982, lapso ou sintoma de um time talentoso que recusa o pragmatismo globalizado; e José Miguel Wisnik, em seu ambicioso Veneno Remédio: O Futebol e o Brasil (Companhia das Letras, 2008), enxerga dialeticamente na história do futebol brasileiro um espaço de conversão do reino da carência e do improviso em vantagem, de imposição do princípio do prazer à realidade, com os ganhos e impasses que o projeto comporta.
Expressão aguda de uma sociabilidade tensa sob uma mansidão de superfície, linguagem refinada e arte combinatória em si, fonte de expressões linguísticas que transitam livremente das metáforas dos analistas econômicos à filosofia popular, da retórica presidencial às reuniões de condomínio, o futebol é para os brasileiros um fato social total. Não assombra em nada, portanto, o fascínio que exerce sobre artistas, críticos de cultura e psicanalistas. Espantoso, na verdade, é o relativo silêncio da ficção brasileira ao redor do tema, hesitante como o batedor inseguro diante do pênalti decisivo. Temos cronistas memoráveis, de Nelson Rodrigues a Plínio Marcos, os clássicos pioneiros de Mário Filho, claro, mas ainda nos falta alguém que confira ao futebol brasileiro o estatuto ficcional que Zola, por exemplo, atribuiu à moda francesa em seu Au Bonheur des Dames (1883).
Publicado nos estertores de 2013, O Drible(Companhia da Letras), de Sérgio Rodrigues, carioca de Muriaé (MG), escritor, crítico literário e criador do blog Todoprosa, chega muitíssimo bem recomendado (elogios superlativos de Tostão, Luis Fernando Verissimo e Sérgio Augusto, estampados na quarta capa), disposto a jogar no vazio e ocupar esta lacuna literária.
Na ficção brasileira recente, não faltam alusões ao mundo do futebol, mas em nenhuma delas ele cresce para além de pano de fundo. Elemento entre outros, figura ora reduzido à representação mais ou menos criteriosa de uma de suas dimensões (histórico-sociológica, simbólica, ligada ao âmbito da psicologia social), ora focalizado a partir de acontecimentos traumáticos ou trajetórias individuais excêntricas. Assim se passa com o bom romance O Segundo Tempo, de Michel Laub (Companhia das Letras, 2006), em que a memória de um Gre-Nal de 1989 serve de mote ao autor para lidar com o rito de passagem do narrador ao mundo adulto, confrontado com o colapso da vida familiar.
É o caso também de Páginas sem Glória, novela de Sérgio Sant’Anna (Companhia das Letras, 2012), em que se acompanha a ascensão e queda de um jogador atípico e aristocrático, Zé Augusto, o Conde, no futebol carioca dos anos 50. Mais antigo, “No último minuto” (1973), conto do mesmo Sant’Anna, esmiúça, valendo-se de múltiplos pontos de vista e variações de ritmos narrativos, as consequências funestas de um frango humilhante para um goleiro azarado, enquanto O Paraíso é Bem Bacana, romance de André Sant’Anna (Companhia das Letras, 2006), filho de Sérgio, se instaura no mundo da globalização do futebol, do Brasil celeiro exportador de craques, surpreendentemente combinado ao tema do terrorismo fundamentalista contemporâneo.
Neste quadro, a novidade do romance de Sérgio Rodrigues está não tanto em converter a lógica do jogo em forma – como a poesia de João Cabral logrou recriar em palavras o tempo capturado no estilo de Ademir da Guia –, mas em reconhecer no futebol este nó, resistente à interpretação e revelador ao extremo, da “alma brasileira” (para falar como Villa-Lobos), e dele fazer seu material romanesco, explorando-o em múltiplas direções. As contradições estruturais que regem a vida brasileira em vários planos, as mesmas que os grandes intérpretes do Brasil, de Machado de Assis a Sérgio Buarque de Holanda, souberam apanhar e formular, podem ser rastreadas, traduzidas e trabalhadas nos termos do mundo da bola. Mais: O Drible reconhece a pertinência desta tese (o futebol é a tinta com a qual se escreve e descreve a identidade brasileira), quanto sua natureza problemática.
Ainda que a menção a Zola pareça extemporânea, não é de todo estrambótica. Não se trata de naturalismo, nem Sérgio Rodrigues é um narrador ingênuo. Seu modo hábil de manipular os fios cronológicos, alternando presente e passado na narrativa, e encaminhando o leitor para um desenlace trágico com tintas de melodrama, é claro sinal disso. Neste aspecto, a finta estrutural aludida no título lembra a solução de outro bom romance contemporâneo, O Sentido de um Fim, de Julian Barnes (Rocco, 2012). Tampouco seu estilo é árido e seco, à maneira dos neorrealistas: flerta com uma prosa que tende à multiplicação de imagens surpreendentes, ao modo de Vladimir Nabokov, grande estilista da narrativa e também apaixonado pelo futebol, em seu tempo, um bom goleiro. É a disposição de esgotar a representação de um fenômeno que lembra o espírito realista do autor de Germinal.
Em O Drible, o aparente núcleo irradiador é um romance familiar, ajuste de contas que um eterno filho – Murilo Neto, revisor de livros de autoajuda, ruim de bola e pobre-diabo assumido, quarentão curtido em ressentimento, frustração e cultura pop – se vê obrigado a levar com o pai, Murilo Filho. O velho é um cronista esportivo dos anos de ouro do Jornal dos Sports, celebridade da praia e da noite cariocas, companheiro de redação de Nelson Rodrigues e parceiro de Millôr no frescobol. Reaproximado do velho que não vê há anos e a quem culpa pela morte precoce da mãe, no intervalo espaçado dos domingos, em torno a pescarias tediosas e diálogos de surdos, o filho tenta, sem sucesso, desviar o pai, doente terminal e ao que tudo indica senil, do mar de lembranças futebolísticas, rumo à única memória que para ele conta de verdade.
Aos poucos, os múltiplos planos do romance vão se armando. Os percursos diversos, o bem-sucedido do pai e o abortado do filho, decadente antes de ter atingido o ápice, recobrem e repercutem momentos diversos. Murilo Filho vive o Rio de Janeiro dos anos 50, o otimismo em alta, acolhendo e abrindo perspectivas ao mineiro provinciano; Neto luta para se desvencilhar da sombra do pai, castradora e associada às benesses do regime militar, nos anos da redemocratização do país, aderindo à febre do rock brasileiro e afogado em séries televisivas.
As imagens borradas de videoteipes televisivos de lances míticos do futebol brasileiro – como o gol de Pelé que poderia ter sido e que não foi contra o Uruguai em 1970 – não apenas sintetizam a incapacidade de ver o essencial que corrói a vida do anti-herói protagonista, como disparam outro dos motivos condutores do romance: o fato e as versões, ou a verdade reconfigurada no circuito da comunicação, da sua reinvenção linguística. O drible em xis desconcertante que Pelé e a bola, cúmplices, impuseram a Mazurkiewicz, goleiro da seleção uruguaia no lance em questão, Murilo Filho reescreve pelos olhos de Platão, pura beleza essencial mesmo não tendo redundado em gol.
Na sua recusa em tocar a bola feito um Bartleby súbito, diz, Pelé refinou o futebol à sua essência mais rarefeita. O futebol virou ideia e de repente homens, bola, ninguém mais se comportava como seria de se esperar que se comportasse neste mundo vão [...] Pelé desafiou Deus e perdeu, mas que desafio soberbo.
Não é fortuito que o pai do protagonista seja um jornalista com pendor às matérias de interesse humano, cronista do futebol, e que Nelson Rodrigues e Mário Filho façam figuração entre os personagens. Tal qual o imbróglio familiar, a identidade brasileira e a importância do futebol vão se constituindo enquanto enigmas da narrativa, para cujos contornos épicos a fabulação hiperbólica e estilizadora representa papel essencial. Pelos pés de seus personagens, Rodrigues (o Sérgio) passeia pela assunção do futebol a mito no Brasil, ressaltando o papel central que nela joga a inventividade verbal dos locutores de rádio, convertendo peladas sofríveis em eventos memoráveis. A história da transição bem-sucedida do futebol amador ao profissional, o estabelecimento de um star systemdos boleiros locais, contra as apostas, tão carrancudas quanto furadas, de Lima Barreto ou Graciliano Ramos, coincide com as voltas da comunicação de massa no país, com mão leve e sempre a partir do mote do futebol. O amplo arco histórico coberto pelo romance expande-se até o momento da exploração televisiva das conquistas futebolísticas pela ditadura e as consequências do olhar eletrônico sobre o jogo.
No domingo em que Murilo Filho lhe mostra em sua casa no Rocio o gol que Pelé não fez, você se dá conta pela primeira vez na vida de que aquele era o mesmo dia – 17 de junho de 1970 – em que Elvira driblou a frouxa segurança de um semipronto elevado do Joá para se atirar nas pedras batidas pelo mar lá embaixo. Claramente, como se uma luz de açougue acendesse dentro da sua cabeça, vê-se preso para sempre naquele dia, play, pause, rew, play, enquanto Pelé não fizesse o gol estaria preso dentro daquele dia, sonhando que a vida tinha continuado. Nesse momento você olha para o seu pai e revive pela última vez, com violência assombrosa, o velho sonho de matá-lo.
A associação do desastre familiar insinuado à trajetória trágica de um craque mítico – o amigo da infância mineira de Murilo Filho, Peralvo, um trickstergenial que resume Macunaíma e Garrincha, filho de mãe de santo – traz ao coração do romance outra ferida fundamental que não se deixa omitir quando se fala em realidade brasileira: a ideia de uma democracia racial que o futebol traduziria em sua melhor forma e que estaria na origem da habilidade desconcertante de qualquer menino nas ruas sem calçamento. Faz parte da intriga que separa pai e filho, além de um histórico de humilhações e uma rivalidade sexual velada, a dessemelhança física de ambos, o pai alourado e o menino apelidado Tiziu, e, para evocar mais uma vez Machado de Assis e Nelson Rodrigues, a desconfiança entre ambos não foge do contexto do ciúme doentio e do fantasma onipresente da traição que assombra os cantos obscuros da mente de Bentinho e os personagens rodriguianos.
Notável como O Drible puxa do futebol brasileiro um feixe de motivos tupiniquins que não são evidentemente a ele associados, mas que nele deixam suas marcas, discretas, sob as verdades prontas e o desfile de mitos (o Maracanaço, o tricampeonato, a ginga malemolente, a folha-seca, a improvisação salvadora) com os quais costumamos recobri-lo: o mundo do personalismo e dos favorecimentos, os afetos violentos sobrepostos à razão, o autoritarismo patriarcal, o apreço supersticioso pela magia simpática. Nestes termos, Sérgio Rodrigues é parente do outro Rodrigues, o dramaturgo, na escolha da matéria turva, mescla de passado com peso de natureza e fome de modernidade, que faz a nossa sociabilidade. Se não propriamente experimental, as soluções narrativas de O Drible são avisadas e muito eficazes.
Se muitos sentem falta de uma literatura que dê conta da experiência, por mais rala política e intelectualmente que seja, vivida pela classe média urbana nos anos posteriores ao golpe de 1964 (e o protagonista vive sua educação sentimental justamente nestes anos, adolescente nos anos 80 e parte da geração perdida), Sérgio Rodrigues soma ao panorama do Rio promissor dos anos dourados e da primeira metade dos anos 60 uma incursão convincente ao cotidiano brasileiro nos grandes centros nos anos da ditadura e da redemocratização, desaguando em um misto de euforia e vazio regado a cultura pop, sepultura das grandes ambições.
15 de maio de 2014
Piauí, 90
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