O Brasil está cheio de escritores que escreveram mais de 50 ou 100 livros, dos quais não conhecemos nem os títulos. São o que chamo de escritores de Estado. Amigos do Rei e do MinC, têm suas “obras” distribuídas a bibliotecas e impostas às escolas como leitura obrigatória pela indústria nefasta da dita literatura infanto-juvenil.
Leitor mesmo – falo de quem lê por prazer e iniciativa própria - não têm nenhum.
Este parece ser o caso de Patrícia Secco, autora de mais de 250 livros, dos quais duvido que os leitores tenham ouvido falar. Nas últimas semanas, a prolífica escritora saiu do anonimato, após ter captado dinheiro graças à infame lei Rouanet, para adaptar a uma linguagem mais simplificada O Alienista, de Machado, e A Pata da Gazela, de José de Alencar, que devem sair mês que vem.
"Entendo por que os jovens não gostam de Machado de Assis", diz a escritora. "Os livros dele têm cinco ou seis palavras que não entendem por frase. As construções são muito longas. Eu simplifico isso."
Pessoalmente, não tenho maior apreço por Machado e quem me lê sabe disso. E não é por seu vocabulário. Em um universo em que existem Cervantes, Swift, Dostoievski,Kuprin, Orwell, Koestler, Huxley, Machado faz feia figura.
Entende-se que tenha sido lido em sua época: poucos escreviam no Brasil no século XIX e Machado supria uma lacuna no panorama literário nacional. Como cronista da época, passa. Como autor que tenha algo a dizer ao leitor contemporâneo, é paupérrimo.
Enquanto Dostoievski, mais ou menos na mesma época, remexia os subterrâneos da alma humana, discutia Deus, terror, crime, castigo e sentido da vida, o carioquinha construía o grande drama nacional, se Capitu traiu ou não Bentinho.
O Alienista é uma das poucas obras de Machado que me dizem algo. Mas é bom lembrar que a história já está em Swift, com a diferença de que o irlandês situava sua história em um hospital para doenças físicas, e não mentais.
Leio na Folha de São Paulo que a equipe que "descomplica" o texto é formada "por um monte de gente", entre eles a própria autora e dois jornalistas amigos. A tiragem, de 600 mil exemplares, será distribuída de graça pelo Instituto Brasil Leitor.
O lançamento será em junho, e terá direito a um túnel construído com 60 mil livros no vale do Anhangabaú, centro da cidade.
Por que Machado ainda é lido e publicado? Graças ao affonsocelsismo da intelectuália tupiniquim, que precisa encontrar algo nacional para cultuar. Não fosse a imposição da leitura de seus livros através das escolas, vestibulares e universidades, morreria à míngua o editor que o publicasse.
Imagine se, para comer em um restaurante, você fosse obrigado a consumir vinho nacional. Claro que qualquer cidadão, em nome do elementar direito a beber o que bem entendesse, estrilaria. Curiosamente, quem pretende entrar na universidade é coagido a ler autores obsoletos, só porque são nacionais. Na hora de comprar um carro, beber uísque ou vinho, o consumidor prefere os importados. Na hora da literatura, os jovens recebem goela abaixo essa excrescência, o autor nacional.
Sê como o Machado que perfuma o vândalo que o fere – parafraseou alguém. Se perfuma quem o fere, imagine o que faz a quem o incensa. Machado vale ouro. Cultuar Machado é ter passe livre na academia. Não adorá-lo é exílio perpétuo. Mas vamos ao cerne da questão: adaptá-lo ou não adaptá-lo?
A adaptação seria feita para alunos, isto é, para adolescentes. Ora, Machado, adaptado ou não, não é leitura para adolescentes, mas para adultos. Por outro lado, pelo que diz a celebérrima escritora, adaptar seria simplificar sua linguagem. Ora, um escritor é fundamentalmente sua linguagem. Se trocarmos Machado em miúdos, Machado não é mais Machado.
Esse crime já foi cometido contra autores bem mais importantes, como Cervantes, Shakespeare, Swift e vários outros. As Viagens de Gulliver, o mais virulento libelo já escrito contra o ser humano, foram transformadas em conto de fadas.
Conheço muita gente que deixou de ler uma obra de gênio por julgá-la ser um livro infantil. Não li o Quixote adaptado. Mas pode-se imaginar como fica uma história recheada de palavras que designam objetos que não mais existem, transposta para um vocabulário contemporâneo. Como será traduzido o elmo de Mambrino? O capacete de Mambrino? E adarga em riste? Cacete apoiado no peito? Escudeiro será o quê? Secretário?
Por outro lado, a adaptação redutora proposta pela conhecidíssima escritora, rouba aos alunos uma das funções da leitura, o enriquecimento do vocabulário.
Em meus dias de Folha de São Paulo, tive colegas que falavam duas ou três línguas mas desconheciam palavras banais do português, como obus ou preito. E palavra que jornalista de um grande jornal não conhece, é palavra que não existe.
O jornalista considera então que o leitor é tão inculto quanto ele e evita a palavra que desconhece. Não é inusual encontrar na Folha, como aposto à palavra marxismo: doutrina criada pelo pensador alemão Karl Marx. Hoje, com um mísero vocabulário de 500 (ou 600 palavras, vá lá!) você entende qualquer jornal. Quando fujo por um segundo desse feijão-com-arroz, não falta leitor que proteste. Uma amiga reclamou certa vez que, para ler minhas crônicas, precisava de um dicionário ao lado. Era aeromoça, dominava inglês e espanhol, tinha longa quilometragem em vôos para todos os cantos do mundo e nem sempre conseguia entender-me.
Os educadores – e a brilhante escritora – parece ter esquecido de um livrinho que deve acompanhar toda pessoa que lê, o dicionário. Me considero pessoa razoavelmente culta, mas ao lado de meu computador repousa eternamente um dicionário, que mais não seja para dirimir dúvidas. Na prateleira ao lado, tenho mais de quarenta. De vocabulário, de línguas, de história e da Bíblia. Desta, tenho três. E acho muito difícil ler o Livro sem um bom dicionário ao lado.
Em minhas aulas de sueco, fiz um desafeto, um de meus professores. Segundo ele, a forma correta de dizer “deste modo” era på det sätt. Insisti que poderia dizer på detta sätt. Para ele, era erro. Puxei então Selma Lagerlöf. Lá estava på detta sätt. Ele ficou sem graça diante dos demais alunos e fechou-se em copas comigo. Eu lia os clássicos suecos. Ele não. Provavelmente, nas versões contemporâneas, Lagerlöf já foi devidamente adaptada.
O mesmo ocorreu em Madri. Em uma das aulas de literatura espanhola, uma aluna perguntou à professora o que queria dizer “vale”. É expressão usada para manifestar acordo, adesão, seja a uma idéia, seja a um convite. Segundo a professora, era criação da gíria contemporânea dos jovens. Parece que naquele dia o bom Deus dos ateus velava por mim: para fugir das bobagens que dizia a professora, eu relia o Quixote. E lá estava, encerrando o prólogo:
“Panza, su escudero, en qien, a mi parecer, te doy cifradas todas las gracias escuderiles que en la caterva de los livros varios de caballerias etán esparcidas. Y con esto, Diós te dé salud y a mi no me olvide. Vale”.
Eu lia o Quixote. Ela provavelmente não. E considerava ser gíria dos anos 80 uma palavra usada já há quatro séculos. Li a passagem para a professora. Um anjo pareceu ter descido na sala e um silêncio constrangedor tomou conta de todos. Menos de mim, que intimamente ria às gargalhadas.
Independentemente da excelência ou não de Machado, traduzi-lo para a pobreza vocabular contemporânea é empobrecê-lo. E empobrecer Machado é empobrecer seus leitores. No que não vai nada de original. A função da escola contemporânea parece ser manter seus alunos na inciência dos infantes.
Vale?
15 de maio de 2014
janer cristaldo
Leitor mesmo – falo de quem lê por prazer e iniciativa própria - não têm nenhum.
Este parece ser o caso de Patrícia Secco, autora de mais de 250 livros, dos quais duvido que os leitores tenham ouvido falar. Nas últimas semanas, a prolífica escritora saiu do anonimato, após ter captado dinheiro graças à infame lei Rouanet, para adaptar a uma linguagem mais simplificada O Alienista, de Machado, e A Pata da Gazela, de José de Alencar, que devem sair mês que vem.
"Entendo por que os jovens não gostam de Machado de Assis", diz a escritora. "Os livros dele têm cinco ou seis palavras que não entendem por frase. As construções são muito longas. Eu simplifico isso."
Pessoalmente, não tenho maior apreço por Machado e quem me lê sabe disso. E não é por seu vocabulário. Em um universo em que existem Cervantes, Swift, Dostoievski,Kuprin, Orwell, Koestler, Huxley, Machado faz feia figura.
Entende-se que tenha sido lido em sua época: poucos escreviam no Brasil no século XIX e Machado supria uma lacuna no panorama literário nacional. Como cronista da época, passa. Como autor que tenha algo a dizer ao leitor contemporâneo, é paupérrimo.
Enquanto Dostoievski, mais ou menos na mesma época, remexia os subterrâneos da alma humana, discutia Deus, terror, crime, castigo e sentido da vida, o carioquinha construía o grande drama nacional, se Capitu traiu ou não Bentinho.
O Alienista é uma das poucas obras de Machado que me dizem algo. Mas é bom lembrar que a história já está em Swift, com a diferença de que o irlandês situava sua história em um hospital para doenças físicas, e não mentais.
Leio na Folha de São Paulo que a equipe que "descomplica" o texto é formada "por um monte de gente", entre eles a própria autora e dois jornalistas amigos. A tiragem, de 600 mil exemplares, será distribuída de graça pelo Instituto Brasil Leitor.
O lançamento será em junho, e terá direito a um túnel construído com 60 mil livros no vale do Anhangabaú, centro da cidade.
Por que Machado ainda é lido e publicado? Graças ao affonsocelsismo da intelectuália tupiniquim, que precisa encontrar algo nacional para cultuar. Não fosse a imposição da leitura de seus livros através das escolas, vestibulares e universidades, morreria à míngua o editor que o publicasse.
Imagine se, para comer em um restaurante, você fosse obrigado a consumir vinho nacional. Claro que qualquer cidadão, em nome do elementar direito a beber o que bem entendesse, estrilaria. Curiosamente, quem pretende entrar na universidade é coagido a ler autores obsoletos, só porque são nacionais. Na hora de comprar um carro, beber uísque ou vinho, o consumidor prefere os importados. Na hora da literatura, os jovens recebem goela abaixo essa excrescência, o autor nacional.
Sê como o Machado que perfuma o vândalo que o fere – parafraseou alguém. Se perfuma quem o fere, imagine o que faz a quem o incensa. Machado vale ouro. Cultuar Machado é ter passe livre na academia. Não adorá-lo é exílio perpétuo. Mas vamos ao cerne da questão: adaptá-lo ou não adaptá-lo?
A adaptação seria feita para alunos, isto é, para adolescentes. Ora, Machado, adaptado ou não, não é leitura para adolescentes, mas para adultos. Por outro lado, pelo que diz a celebérrima escritora, adaptar seria simplificar sua linguagem. Ora, um escritor é fundamentalmente sua linguagem. Se trocarmos Machado em miúdos, Machado não é mais Machado.
Esse crime já foi cometido contra autores bem mais importantes, como Cervantes, Shakespeare, Swift e vários outros. As Viagens de Gulliver, o mais virulento libelo já escrito contra o ser humano, foram transformadas em conto de fadas.
Conheço muita gente que deixou de ler uma obra de gênio por julgá-la ser um livro infantil. Não li o Quixote adaptado. Mas pode-se imaginar como fica uma história recheada de palavras que designam objetos que não mais existem, transposta para um vocabulário contemporâneo. Como será traduzido o elmo de Mambrino? O capacete de Mambrino? E adarga em riste? Cacete apoiado no peito? Escudeiro será o quê? Secretário?
Por outro lado, a adaptação redutora proposta pela conhecidíssima escritora, rouba aos alunos uma das funções da leitura, o enriquecimento do vocabulário.
Em meus dias de Folha de São Paulo, tive colegas que falavam duas ou três línguas mas desconheciam palavras banais do português, como obus ou preito. E palavra que jornalista de um grande jornal não conhece, é palavra que não existe.
O jornalista considera então que o leitor é tão inculto quanto ele e evita a palavra que desconhece. Não é inusual encontrar na Folha, como aposto à palavra marxismo: doutrina criada pelo pensador alemão Karl Marx. Hoje, com um mísero vocabulário de 500 (ou 600 palavras, vá lá!) você entende qualquer jornal. Quando fujo por um segundo desse feijão-com-arroz, não falta leitor que proteste. Uma amiga reclamou certa vez que, para ler minhas crônicas, precisava de um dicionário ao lado. Era aeromoça, dominava inglês e espanhol, tinha longa quilometragem em vôos para todos os cantos do mundo e nem sempre conseguia entender-me.
Os educadores – e a brilhante escritora – parece ter esquecido de um livrinho que deve acompanhar toda pessoa que lê, o dicionário. Me considero pessoa razoavelmente culta, mas ao lado de meu computador repousa eternamente um dicionário, que mais não seja para dirimir dúvidas. Na prateleira ao lado, tenho mais de quarenta. De vocabulário, de línguas, de história e da Bíblia. Desta, tenho três. E acho muito difícil ler o Livro sem um bom dicionário ao lado.
Em minhas aulas de sueco, fiz um desafeto, um de meus professores. Segundo ele, a forma correta de dizer “deste modo” era på det sätt. Insisti que poderia dizer på detta sätt. Para ele, era erro. Puxei então Selma Lagerlöf. Lá estava på detta sätt. Ele ficou sem graça diante dos demais alunos e fechou-se em copas comigo. Eu lia os clássicos suecos. Ele não. Provavelmente, nas versões contemporâneas, Lagerlöf já foi devidamente adaptada.
O mesmo ocorreu em Madri. Em uma das aulas de literatura espanhola, uma aluna perguntou à professora o que queria dizer “vale”. É expressão usada para manifestar acordo, adesão, seja a uma idéia, seja a um convite. Segundo a professora, era criação da gíria contemporânea dos jovens. Parece que naquele dia o bom Deus dos ateus velava por mim: para fugir das bobagens que dizia a professora, eu relia o Quixote. E lá estava, encerrando o prólogo:
“Panza, su escudero, en qien, a mi parecer, te doy cifradas todas las gracias escuderiles que en la caterva de los livros varios de caballerias etán esparcidas. Y con esto, Diós te dé salud y a mi no me olvide. Vale”.
Eu lia o Quixote. Ela provavelmente não. E considerava ser gíria dos anos 80 uma palavra usada já há quatro séculos. Li a passagem para a professora. Um anjo pareceu ter descido na sala e um silêncio constrangedor tomou conta de todos. Menos de mim, que intimamente ria às gargalhadas.
Independentemente da excelência ou não de Machado, traduzi-lo para a pobreza vocabular contemporânea é empobrecê-lo. E empobrecer Machado é empobrecer seus leitores. No que não vai nada de original. A função da escola contemporânea parece ser manter seus alunos na inciência dos infantes.
Vale?
15 de maio de 2014
janer cristaldo
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