Artigos - Cultura
A bomba de que falava Bechara explodiu e os resultados são aterradores.
Estamos não só a escrever pior e com inadmissíveis erros, como corremos o risco de deformar a nossa fala por via do “monstro” que nasceu da ambição de um imbecil.
A morte de Vasco Graça Moura reacendeu, por breves momentos, a chama do desacordo ortográfico. Sabia-se como ele era, inteligentemente, fundadamente, contra o chamado AO e como essa oposição foi constante na sua vida e na sua obra.
Em segredo, alguns dos que o bajularam pelas suas qualidades de ensaísta, poeta ou tradutor, terão talvez pensado que se tratava de teimosias de um velho. Não eram, como alguém medianamente informado saberá.
No dia 21 de Abril desde ano, o brasileiro Sidney Silveira resolveu entrevistar o também brasileiro Sérgio de Carvalho Pachá, Lexicógrafo-chefe da Academia Brasileira de Letras (ABL) à época da promoção do acordo. A entrevista, publicada a 25 de Abril (mágica data) no YouTube (https://www.youtube.com/watch?)
v=-_wIluG3yRs) dá-nos conta de como foi engendrado o golpe e da forma, simples e rápida, como ele se concretizou. O entrevistado assistiu a tudo, incrédulo. Certo dia, a ABL elegeu para presidente um homem que gostava de andar “na mídia”, nas manchetes dos jornais, na televisão, etc. Esse presidente, Marcos Vinicios Vilaça, arranjou um assessor, de nome Antônio Carlos Athayde, para se encarregar de tal promoção. “Um belo dia, ele ouviu dizer que dormia nas gavetas, há mais de dez anos, um novo projecto de ‘unificação’ ortográfica.
É claro que esse homem não era professor de português, não era linguista, nem filólogo, era um jornalista. Ele correu para o presidente e disse: ‘Meu presidente, eu tive uma ideia que não vai tirar mais a ABL da mídia. Nós vamos promover a unificação ortográfica.’ E o presidente, que não entendia absolutamente nada de ortografia ou de sistemas ortográficos, imediatamente comprou aquela ideia ‘genial’ e a academia mais que depressa começou a promover a ‘unificação’ ortográfica.” Simples e eficaz, não acham? Mas faltava uma peça, um académico que desse cobertura ao acto. Não foi preciso procurar muito, porque já o tinham, como explica Sérgio Pachá: “Evanildo Bechara, professor de língua portuguesa, um gramaticógrafo respeitado, eu estudei pelos livros dele, fui aluno dele na pós-graduação.”
https://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=-_wIluG3yRs
Ele era contra, claramente, mas depois mudou. “Evanildo Bechara, antes de surgir o plano de ‘vamos unificar’ sob a liderança da ABL, tinha ideias radicalmente adversas àquele projecto, certa feita ele me disse: ‘Deus nos livre daquilo, aquilo é uma bomba.’ Literalmente. Um ano e meio a dois anos depois, ele se transformou no grande propagandista da ‘unificação’ que não unifica coisa nenhuma, ele sabia tão bem quanto eu.”
Claro que, rapidamente, Pachá foi afastado. E a “coisa” triunfou, como sabemos.
O que diz, hoje, o antigo Lexicógrafo-chefe da ABL? Isto: “Havia pequenas diferenças que não atrapalhavam a mínima, a mútua, intelecção, comunicação, de quem falava e escrevia português. Tentaram, uma vez mais, promover esta quase utopia da unificação gráfica de realidades fónicas distintas e deram com os burros n’água. Não só deram com os burros n’água como pioraram uma coisa que tinha defeitos mas que não era tão má assim. Isso foi mau para nós, brasileiros, e foi muito mau para os nossos irmãos portugueses.”
Claro que muitos dirão, por cá, “isso são águas passadas” e suspirarão de alívio, não pela morte mas pela “neutralização” da nobre resistência intelectual de Vasco Graça Moura. Paciência. A bomba de que falava Bechara explodiu e os resultados são aterradores. Há pouco tempo, uma leitora atenta relatou-nos o caso de uma menina cuja mãe repreendeu por ter chegado a casa a dizer que tinha de fazer um trabalho sobre a biss’triz. Assim mesmo, anulando o “e”. A menina defendeu-se, afirmando que a professora também pronunciava assim...
Pois bem: os idiotas que diziam, com um sorriso alvar, que as mudanças na escrita não iriam interferir de modo algum na fala, que isto era só uma convenção, etc., atentem no estrondo real da bomba: estamos não só a escrever pior e com inadmissíveis erros, como corremos o risco de deformar a nossa fala por via do “monstro” que nasceu da ambição de um imbecil e se propagou como fogo na palha a uma legião de pobres crédulos.
Isto tem nome? Tem, mas dói escrevê-lo. E contrariá-lo será tudo menos teimosias de um velho. É um dever!
Do jornal Público, de Portugal.
15 de maio de 2013
Nuno Pacheco
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