"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

domingo, 4 de maio de 2014

O VOTO E A RODA

 

Naquele tempo, ainda havia trem. Na estação da estrada de ferro, o jovem aprendiz, ansioso, apresentou-se logo de manhãzinha para seu primeiro dia de trabalho no serviço de manutenção. O chefe do setor apresentou-o ao funcionário mais antigo e recomendou a este último que se encarregasse de transmitir, pouco a pouco, todo o seu saber ao novato.
 
Após rápida consulta ao relógio, o veterano conduziu o recém-chegado à beira de um trem que estava para partir dali a meia hora. Pediu ao jovem que observasse atentamente o que ele ia fazer. Tomou uma marreta e deu três pancadinhas numa roda do primeiro vagão.
Em seguida, passou à segunda roda e repetiu o movimento. E assim por diante, roda por roda, vagão por vagão, deu a volta ao trem.
 
Train 5
 
Terminado o peculiar balé, o aprendiz perguntou timidamente qual era a serventia daquela tarefa. O velho funcionário disse que não fazia a menor ideia, mas repetia esse movimento diariamente fazia 35 anos. Porque lhe tinham ensinado no seu primeiro dia de trabalho.
 
Essa fábula ilustra a força inercial de certos fatos e atos que se transmitem de geração em geração e varam os séculos sem que ninguém saiba ao certo por quê. A obrigatoriedade do voto é um bom exemplo.
 
Pelo ordenamento constitucional do Brasil imperial, o voto era obrigatório. Fazia sentido. No imenso território que ensaiava seus primeiros passos como nação independente, os alfabetizados eram poucos. O legislador brasileiro decidiu manter distância da visão democrática e universalista que Rousseau lançava sobre a política. Preferiu outra abordagem: o voto censitário.
 
Considerando que a massa não estava apta a escolher seus próprios representantes, confiou o encargo a cidadãos selecionados. Para fazer parte do colégio de eleitores, havia que preencher alguns requisitos: ser homem livre com mais de 25 anos e, sobretudo, dispor de determinada renda.
 
Essa seleção, ressentida como se honraria fosse, instituía a «função» de eleitor. Por esse entendimento, o voto «pertencia» à nação, cabendo a ela designar aqueles que estavam aptos a desempenhar a tarefa. Era natural, portanto, que os eleitores, uma vez convocados pelo Estado, tivessem a obrigação de votar. Em caso de impedimento, era até autorizado o voto por procuração – o eleitor transferia o encargo a um representante.
 
O método de escolha dos representantes do povo sofreu transformação radical de lá para cá. Tivesse essa mudança ocorrido de golpe, talvez a estrutura tivesse sido integralmente repensada e fosse, hoje, harmoniosa. Não foi o que aconteceu. Quis o destino que a evolução do sistema eleitoral se estendesse, gradual, por decênios ‒ um conserto aqui, um remendo ali. O resultado carece de coerência.
 
A sequência de modificações transfigurou o modelo originário. O caráter censitário do colégio eleitoral foi-se esgarçando à medida que novas categorias de cidadãos eram autorizadas a votar. A idade mínima do eleitor foi baixando, degrau após degrau, dos 25 para os atuais 16 anos. A participação foi aos poucos franqueada a um número crescente de cidadãos: mulheres, militares, analfabetos. A exigência de renda mínima foi abolida.
 
O sistema atual, após todas essas mudanças, nem de longe lembra o modelo de 200 anos atrás. A «função» de eleitor cedeu lugar ao direito de ser eleitor. À primeira vista pode não parecer, mas tivemos aí profunda guinada conceitual. O voto não mais «pertence» à nação, mas a cada eleitor. A escolha dos dirigentes deixou de ser feita por cidadãos aos quais o Estado atribuiu uma tarefa. Passou a ser feita, em tese, por todos os cidadãos.
 
Urna 5
 
O «eleitorado de função» era obrigado a exercer seu papel, exatamente como conscritos têm de servir nalguma das Armas. A obrigatoriedade do voto estava, assim, justificada. O atual «eleitorado de direito» tem a faculdade de escolher seus representantes. Quem diz faculdade não diz obrigação. Se obrigação for, não será mais um direito.
 
No contexto atual, o voto obrigatório é contrassenso. Cidadão constrangido a praticar um ato qualquer não estará exercendo seu direito, mas cumprindo obrigação.
 
Muita atenção: que ninguém acuse os atuais inquilinos do andar de cima por essa incoerência. Ela lhes foi legada por seus antecessores que, por sua vez, já a tinham herdado de seus respectivos predecessores. O descuido do legislador vem de longe, mas nunca é tarde para consertar.
 
E então? Varremos essa relíquia anacrônica ou continuamos a dar marretadas na roda?
 
04 de maio de 2014
José Horta Manzano
Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 3 maio 2014

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