Com a coreografia mal ensaiada, o bloco do governo submeteu Dilma Rousseff a um constrangimento no Senado. Deu-se na noite passada. Os senadores debatiam a elevação dos gastos da União no setor de saúde. Com uma proposta mais mixuruca do que a da oposição, o Planalto tramara uma incursão rápida pelo plenário.
Os operadores de Dilma fariam uma votação simbólica, na qual apenas os líderes votam. E o governo prevaleceria sobre a minoria sem impor aos aliados o inconveniente de ter que expor a cara no painel eletrônico. Deu errado. No comando, Renan Calheiros adiou a votação para a terça-feira (12). Pelos próximos seis dias, Dilma percorrerá o noticiário arrastando as correntes algoz da saúde.
O financiamento da saúde foi enfiado, meio de contrabando, no miolo da ‘PEC do Orçamento Impositivo’, aquela proposta que obriga o governo a pagar as emendas orçamentárias dos parlamentares. O texto-base, conforme já noticiado aqui, havia sido aprovado na véspera.
Faltava apreciar os ‘destaques’, como são chamados os pedidos de votação em separado de fatias do projeto. Havia sobre a mesa quatro destaques. O governo planejara matar todos numa única votação simbólica. Prevaleceu em três emendas. Mas tropeçou na quarta, justamente a que exige mais generosidade de Dilma com a saúde pública.
“Queremos voto aberto”, disse o líder do DEM, José Agripino Maia, ao defender que a votação fosse nominal, não simbólica. Foi a voto um requerimento do líder do PSDB, Aloysio Nunes Ferreira. Por 39 votos a 28, a maioria dos senadores optou por expor seus rostos no painel.
As cenas mais inusitadas da sessão foram protagonizadas pelo senador pernambucano Humberto Costa. Ex-ministro da Saúde de Lula e ex-líder da bancada petista, ele travou uma batalha verbal com os dois generais da tropa de Dilma: os líderes Eduardo Braga (PMDB-AM), do governo, e Wellington Dias (PI), do PT.
“Certamente vou viver um dos maiores dilemas da minha vida”, disse Humberto a alturas tantas. Médico, ele lamentava que sua consciência sobre as limitações fiscais do governo o impedissem de votar a favor da emenda de um senador do PSDB, o paraibano Cícero Lucena.
Lucena sugere que o governo destine à saúde 18% de suas receitas líquidas. Hoje, a União aplica no setor algo como 13%. Os percentuais subiriam gradativamente durante quatro anos. Assim, os 18% seriam atingidos em 2017. Coisa de R$ 128 bilhões, segundo as previsões disponíveis no Senado.
A cifra é muito superior à que propõe Eduardo Braga. Na proposta redigida pelo líder de Dilma, as despesas com saúde subiriam para 15% das receitas líquidas da União num prazo de cinco anos. Em 2018, os gastos rodariam na casa dos R$ 64 bilhões.
Humberto Costa tentou emplacar três emendas ao texto de Eduardo Braga. Numa delas, a mais factível, sugeriu abreviar em um ano a implantação dos 15% já digeridos por Dilma. Em vez de 2018, o percentual seria assegurado em 2017. Eduardo Braga encaminhou contra. E a emenda caiu.
Da tribuna, Humberto lembrou que, na fase de negociação, o governo esteve na bica de aceitar o prazo de 2017. Insinuou que a coisa foi empurrada para 2018 porque o líder do governo não teve habilidade para negociar.
“Houve um esforço enorme de todos nós para construir a negociação com o governo”, rebateu Eduardo Braga. “O financiamento para a saúde não estava na PEC do Orçamento Impositivo. A inclusão foi uma vitória das lideranças do Senado e da presidenta Dilma. [...] Se não chegamos ao melhor dos sonhos, garantimos um avanço de R$ 64 bilhões para a saúde. Essa é uma verdade incontestável, porque é numérica.”
Humberto Costa não se deu por achado. Chamou Eduardo Braga de mentiroso. Fez isso com toda a lhaneza: “O que falou há pouco o líder Eduardo Braga, por quem tenho o mais absoluto respeito, infelizmente não corresponde à verdade.” Humberto recordou que o debate não era novo. Vinha sendo travado em comissões do Senado há muito tempo. Há na Casa, inclusive, uma proposta de iniciativa popular.
“Como não gosto de sofisma, é importante que o líder do governo diga que essa negociação, na verdade, foi muito boa para o governo”, alfinetou Humberto. “Agora, para viabilizar aqui uma votação que melhore esses percentuais [de verbas para a saúde] seriam necessários 49 votos.”
O que Humberto Costa disse, com outras palavras, foi que o Planalto se valeu de uma esperteza. Antes, o debate sobre a saúde era travado ao redor de projetos de lei cuja aprovação exigia maioria simples. Ao acomodar a encrenca numa proposta de emenda à Constituição, Eduardo Braga elevou o quórum para a aprovação à casa dos 3/5. Num colégio de 81 votos, agora são necessários 49.
O piauiense Wellington Dias, líder do PT, tomou as dores de Eduardo Braga. “Quero dizer, como líder do PT, que temos todo o respeito pelo líder do governo e relator dessa matéria.” Afagado por Wellington, suposto líder de Humberto, Edaurdo voltou a brandir, como uma cartola retirada de dentro do coelho, a cifra mágica: “Garantimos mais de R$ 64 bilhões para a saúde até 2018.”
Humberto Costa não depôs a língua. “Acho que é importante colocarmos os devidos acentos nas palavras”, afirmou, antes de puxar a cadeira dos números esgrimidos pelo líder de Dilma. “É necessário que a gente diga que, em verdade, serão R$ 25 bilhões a mais”. Segundo ele, os R$ 64 bilhões de que fala Eduardo Braga incluem verbas que, pela lei, adensarão o orçamento da saúde de qualquer jeito a partir de 2014, com ou sem PEC. “Não é pouca coisa, mas é importante reconhecer que o que há de novo é um acréscimo de R$ 25 bilhões.”
Em meio à troca de chumbo da infantaria companheira, o presidenciável Aécio Neves foi ao microfone para endossar a proposta do correligionário Cícero Lucena. E aproveitou para tirar uma casquinha da antagonista Dilma Rousseff. “Me parece incoerente que o governo, por um lado, apresente o programa ‘Mais Médicos’, com uma bilionária propaganda na tevê, e esse mesmo governo que fala em mais médicos vem defender aqui a proposta de menos recursos para a saúde.”
O ringue será reativado na terça-feira. Em minoria, a oposição terá de rebolar para obter os votos de que precisa. Ao aprovar o requerimento que garante a votação nominal da emenda do tucano Cícero, roçou o queixo de Dilma. Porém, terá de azeitar a dissidência se quiser aplicar o mata-leão dos 49 votos na semana que vem. A despeito do reforço do neo-oposiocionista PSB, não será fácil.
07 de novembro de 2013
Josias de Souza - UOL
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