Final de gestação na cadeia é uma pena adicional. Fernando Orotavo Neto e Rafael Faria |
A Lei nº 13.257/2016, que dispõe sobre as políticas públicas para a primeira infância, foi posta sob os holofotes, e teve seus merecidos 15 minutos de fama, quando a ex-primeira dama do Estado do Rio de Janeiro, Adriana Ancelmo, obteve a concessão de prisão domiciliar, em virtude de ter um filho com até 12 (doze) anos de idade incompletos (CPP, art. 318, V). Na esteira dela, centenas de presidiárias, na mesma situação, obtiveram igual benefício. Nada mais justo, pois a equidade, como dizia Aristóteles, é um valor supremo, vraiment, o barro do qual a justiça é forjada.
O que poucos sabem, entretanto, é que o mesmíssimo direito é assegurado às presidiárias gestantes, pelo Código de Processo Penaç (com redação dada pela Lei nº 13.257/2016): “Art. 318. Poderá o juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for(…) IV – gestante”.
DIREITO CONSTITUCIONAL – Embora a conjugação do verbo poder no futuro – poderá – venha conferir caráter facultativo à norma (poderá = a ter a faculdade de), colocando a providência no âmbito da discricionariedade do juiz responsável por sua aplicação, a nosso ver o art. 318, IV, do CPP deve ser interpretado conforme a Constituição da República, e não literalmente.
Assim como o direito de ser sepultado, belissimamente retratado na peça Antígona, de Sófocles, onde a personagem-tema enfrenta o rei Creonte, para defender o direito de enterrar seu irmão Polinices, um motineiro, considerado traidor da pátria, ou o direito de asilo, tema principal da tragédia “As suplicantes”, do dramaturgo grego Ésquilo, é firme o nosso entendimento de que a possibilidade de não nascer na prisão é também um direito natural do ser humano.
Ora, o Código Civil Brasileiro, já em seu artigo 2º, põe acima de qualquer controvérsia o fato de que o nascituro, bebê que ainda está dentro do ventre materno, é sujeito de direitos desde a concepção. Portanto, sendo sujeito de direitos, não pode o nascituro, a nosso ver, sofrer as consequências, ainda que indiretas, da pena privativa de liberdade imposta à sua mãe, porque a isto se opõe a Carta Magna, quando, em seu art. 5º, inciso XLV, garante e assegura que “nenhuma pena passará da pessoa do condenado”.
REALIDADE INSALUBRE – E como é possível que se assegure ao nascituro, nas prisões brasileiras, as condições mínimas para garantir seu desenvolvimento com vida, se isso não acontece nem para a gestante, diuturnamente obrigada a conviver com outras presas doentes, com a falta de higiene, com a ausência de alimentação saudável e tratamento médico adequado?
Se as prisões são insalubres para a gestante, que dirá para um feto em desenvolvimento, que dirá para um ser que luta para simplesmente viver em condições saudáveis. É de obviedade explícita que a dor e o sofrimento suportados pela gestante presa são imediatamente transportados para o nascituro, uma vez que, até nesse caso, a ciência do direito se aplica, pois é princípio geral que o acessório segue o principal (acessorium sequitur principallis).
Não, mil vezes não! Não vamos cansar nossos leitores elencando todos os cuidados necessários à concepção com vida. O que é necessário que se diga é que no momento em que se mantém um nascituro dentro da cadeia, o homem, o juiz, o intérprete, o promotor, ou quem quer que seja o responsável, estará violando o princípio da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), bem como justapondo o direito fundamental à vida (CF, art. 5º, caput) e à saúde (CF, art. 6º, caput).
DADOS IMPRESSIONANTES – Em reportagem do jornal O Globo, veiculada domingo, alguns dados pesquisados pela Fiocruz se mostram impressionantes: “Nada menos de 81% das entrevistadas (mais de 200 detentas, em 27 unidades prisionais) foram presas quando já estavam grávidas. A grande maioria não está condenada, e sim aguardando julgamento”.
Mas não é só isso: “Além da situação jurídica — a maioria está presa de forma preventiva, sem julgamento, e por tráfico de drogas —, o perfil das grávidas na cadeia se assemelha ao da população carcerária geral em outros aspectos. Mais da metade (57%) é de cor parda, com baixa escolaridade (53% têm menos de oito anos de estudo) e jovem (45% têm até 25 anos). Entre as detentas, 55% tiveram menos consultas de pré-natal do que o recomendado; 32% não foram testadas para sífilis; e 4,6% das crianças nasceram com a doença.” Se isso não é crueldade, certamente é suplício!
DIREITO NATURAL – Essas crianças brasileiras têm o direito natural de não nascerem na prisão, e as gestantes tem direito à prisão domiciliar, para cuidarem da saúde, alimentação e educação dos seus filhos, até pelo menos a chegada da data em que completem 12 anos, mas a falta de sensibilidade e o preconceito parecem cegar o ser humano e torná-lo indiferente à dor do seu semelhante.
Ou o Ministério Público toma alguma providência, para fazer cumprir a lei e a Constituição, ou a indiferença de hoje resultará em violência amanhã, pois como dizia o poeta George Bernard Shaw, “The worst sin toward our fellow creatures is not to hate them, but to be indifferent to them: that’s the essence of inhumanity” (O maior pecado que se comete entre as criaturas não é odiá-las, mas ser-lhes indiferente. Essa é a essência da desumanidade).
06 de junho de 2017
(Fernando Orotavo Neto é advogado civilista e Rafael Faria é advogado criminalista)
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