Em resposta ao comentarista Francisco Bendl, aqui na Tribuna da Internet, o advogado e pianista clássico Jorge Béja recentemente relatou três episódios ocorridos em sua atuação comunitária que muito o comoveram. Devido à importância desse depoimento pessoal, que significa uma lição de vida e serve como extraordinário exemplo às novas gerações, resolvi tomar a liberdade de publicar o texto como artigo neste blog, para abrir de forma altamente positiva mais uma semana que se inicia.
###
TOCANDO AO PIANO, PARA DESCONHECIDOS
Jorge Béja
Muito me comove tocar nos presídios e nos hospitais. Nessas apresentações humanas e modestíssimas, três momentos muito especiais me marcaram e realmente me fizeram chorar muito. Um deles foi numa penitenciária. O segundo, num hospital. E o outro, na meio da rua, aqui no Rio.
No presídio. após tocar para os presidiários, um deles subiu ao palco, me agradeceu e perguntou se poderia me prestar uma homenagem. “Claro que sim”, respondi, sob o olhar severo e quase reprovatório do diretor da penitenciária. E qual a surpresa! O detento sentou-se ao piano e tocou, com perfeição técnica e uma interpretação sublime, a peça de Bach “Jesus Alegria dos Homens”.
No café que se seguiu no refeitório, pedi que se sentasse junto de mim à mesa. Não costumo perguntar a presidiário o que ele fez para estar ali. Mas para este, delicadamente, perguntei. Eis a resposta: “Estou apenas descansando de tanto esquentar carro roubado e depois revender. Vou sair mês que vem e vou tocar o meu negócio pra frente. Dá muito dinheiro”.
No hospital. Também sempre aos domingos, entre 9 e 11 da manhã. Ao lado do piano trouxeram uma paciente deitada numa maca. Não falava, não se mexia, nada respondia. De súbito, ao ser levada de volta à enfermaria, a maca passou rente ao teclado no piano. E ela me olhou e lentamente, moveu o braço direito para o teclado.
Com minha ajuda, olhando para o teto do refeitório, dedilhou sozinha o Noturno nº 2 de Chopin. Era uma pianista. E ninguém sabia. Ninguém a visitava. Estava internada há 4 meses. Como chorei.
Na rua. Quando completou 20 anos da queda do Elevado Paulo de Frontin, no Rio (200 metros do elevado ruíram, matando 29 pessoas, 20 dentro do ônibus da linha 415 da Auto Viação Tijuca que no momento da queda passava sob o elevado pela Rua Haddock Lobo, e 9 transeuntes), mandei levar meu piano de cauda para debaixo do viaduto e toquei em memória das 29 vítimas. Interpretei a “Marcha Fúnebre”, de Chopin.
Todas as emissoras de televisão vieram gravar a apresentação, até o correspondente da CNN. O piano ficou na calçada. Junto à multidão, que não entendia o motivo daquele gesto, estava minha esposa Clarinda, segurando 29 rosas que depois depositamos ao longo da calçada, em memória das vítimas.
Tudo terminado, as TVs já tinham se retirado, apareceu uma mendiga. Empurrava um carrinho de madeira. E ela veio até mim e perguntou: “Moço, posso pegar aquelas flores pra mim?”.
“Não”, respondi. “Elas são para os mortos”, expliquei. E a mendiga me fez chorar muito quando imediatamente respondeu: “Então são minhas, porque eu estou mais morta do que viva, se é que já não morri e penso que ainda estou viva”.
Chorando muito, peguei-a pelo braço, levei até as flores e disse: “Pegue uma só e deixe as outras aí”.
23 de maio de 2016
Carlos Newton
Nenhum comentário:
Postar um comentário