Os sonhos de Lula se chocam com as liberdades políticas básicas dos brasileiros e com a diversidade de pensamento existente na sociedade brasileira.
Em recente discurso, durante o 3º Congresso da Juventude do PT, Lula afirmou que o "ideal" seria que um único partido pudesse governar o Brasil todo: "O ideal de um partido é que ele pudesse ganhar a presidente, 27 governadores, 81 senadores e 513 deputados sem se aliar a ninguém". O "desejo ideológico" de Lula é transformar o PT em um pleno partido de Estado.
A fala do ex-presidente Lula não pode ser interpretada como um mero sonho pessoal de transformar o PT em um partido mais forte, capaz de conduzir os rumos da política nacional sem a necessidade de construir alianças. Não se trata também simplesmente de uma forma de dizer aos jovens petistas que a realidade política acaba por tornar necessária a articulação e ou a união com outros partidos para garantir a governabilidade. Trata-se de uma declaração que comunica aos petistas o ideal de conduzir o PT para além da hegemonia dos partidos de esquerda.
Em 2009, enquanto ainda era presidente da República, Lula tratou como uma "conquista" digna de comemoração o fato de não existirem candidatos que representassem a direita política para concorrer as eleições presidenciais de 2010. Afirmou-se nesse momento, portanto, a importância de as forças políticas de esquerda serem hegemônicas, Agora, em 2015, Lula vai além: diz que o ideal é que apenas um único partido conduza toda a política nacional.
Com suas últimas declarações, Lula acabou demonstrando que, para ele e para o PT, o pluralismo político é uma inconveniente formalidade das democracias representativas.
Ocorre, no entanto, que pluralismo político não é simples formalidade. É uma das condições de existência de uma democracia. O pluralismo político reflete ou pode refletir uma sociedade pluralista e pode favorecer a possibilidade de existência e a manutenção da mesma.
Na lição de Miguel Reale, "[...] a experiência democrática se concretiza como uma 'poliarquia', ou seja, como um governo subordinado às múltiplas fontes da vontade coletiva, numa relação dialógica e dialética entre 'poderes', mais ou menos institucionalizados, como o econômico, o militar, o universitário, o religioso, o sindical, o literário o artístico, etc., os quais se distribuem segundo círculos secantes que, em maior ou menor grau, tendem a influir sobre os centros do 'poder político'"[1].
O reconhecimento da realidade poliárquica da sociedade costuma ser uma característica das democracias representativas contemporâneas, nas quais o pluralismo existente na sociedade pode transformar-se em pluralismo político, ou seja, em uma pluralidade de forças políticas capazes de influenciar a condução do Estado.
Dentre os fundamentos do Estado Democrático de Direito brasileiro está presente o pluralismo político (inciso V do art. 1º da Constituição Federal de 1988).
Juridicamente, o pluralismo político se desdobra no direito de criar associações e cooperativas independentemente de autorização (art. 5°, XVIII da CF), na liberdade de associação para fins lícitos (art. 5°, XVII da CF) e na liberdade - não absoluta, diga-se - de criar partidos políticos (art. 17 da CF).
O pluralismo político não significa a mera existência de diversos partidos políticos, entretanto, o pluripartidarismo é, ao menos nas democracias representativas, uma de suas consequências.
A existência de mais de um partido permite a representação das perspectivas políticas, econômicas, morais, culturais e religiosas presentes na sociedade.
O pluralismo previsto na Constituição Federal é também um pluralismo de partidos. De acordo com o art. 17 Constituição, a “criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos" deve respeitar o regime democrático e o pluripartidarismo. Esta implícita no referido dispositivo a proibição do unipartidarismo.
Segundo José Afonso da Silva, a Constituição consignou o “controle qualitativo (controle ideológico)” dos partidos, sendo ilegítimo nesse sentido o partido que “[...] pleiteie um sistema de unipartidarismo ou um regime de governo que não se fundamente no princípio de que o poder emana do povo, [...] ou que sustente o monismo político em vez do pluralismo”[2]. O controle qualitativo é uma realidade em diversos textos constitucionais do mundo. O controle qualitativo decorre do reconhecimento de que algumas agremiações políticas fazem uso da legalidade democrática para destruí-la por dentro.[3]
Um Estado Democrático de Direito não pode se assentar em bases unipartidárias, tal como ocorreu nas antidemocráticas “democracias populares” dos regimes totalitários do século XX e nos ainda vigentes regimes socialistas norte-coreano, chinês e cubano. De igual forma, dificilmente a democracia poderá sobreviver por muito tempo em um sistema pluripartidário nominal, com partidos satélites vinculados ideologicamente ao partido de Estado ou sem autonomia perante ele[4]. Onde o modelo de partido de Estado prevalece, seja na forma de partido único ou na forma de pluripartidarismo nominal, a validade da dissensão acaba sendo negada e a oposição termina sendo obstada[5].
Aceitar a oposição política significa dizer “que os inimigos do Governo não são inimigos do Estado e que um oposicionista não é por isso um rebelde”[6].
Apesar de existirem 35 partidos no Brasil, vige uma homogeneidade ideológica na atuação partidária [7]. A maioria dos partidos brasileiros fortes são de esquerda. O fortíssimo PMDB, representante do centrão ideológico, dá sustentação ao PT. As últimas eleições presidenciais foram polarizadas por partidos de esquerda. Não existem partidos verdadeiramente conservadores e liberais, tampouco partidos nacionalistas e mais patrióticos. O surgimento de agremiações favoráveis ao liberalismo econômico e a existência de lideranças conservadoras e liberais pouco mudou o cenário político-partidário nacional. Esse cenário deveria satisfazer as pretensões hegemônicas de Lula, só que não. Para Lula o ideal é ir além; o ideal é o PT mandar em tudo.
Lula e o PT já conseguiram internalizar no imaginário de parte significativa da população a ideia de que fazer oposição de verdade é "baixar o nível", que opor-se é ser "golpista". A legitimidade da dissensão está sendo esvaziada. E agora a ideia é superar o pluripartidarismo quase nominal brasileiro e transformar o PT em um perfeito partido de Estado.
O sonhos Lula para o PT e o Brasil são contrários à Constituição brasileira. Nada que cause espécie, haja vista que Lula não tem compromissos com a Constituição. Mas não é somente contra a Constituição que estão os sonhos de Lula. Os sonhos de Lula se chocam com as liberdades políticas básicas dos brasileiros e com a diversidade de pensamento existente na sociedade brasileira.
Lula sonha com um PT total, que não mais terá se sujeitar às inconveniências do pluralismo político; enfim, com um PT que não precisará aguentar a democracia.
Notas:
[1] REALE, Miguel. Da revolução à democracia. São Paulo: Convívio, 1977, p. 88.
[2] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 407-408.
[3] Cf. REALE, Miguel. Da revolução à democracia. São Paulo: Convívio, 1977.
[4] Cf. SARTORI, Giovanni. Partidos e sistemas partidários. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1982, p. 60-73.
[5] SARTORI, Giovanni. Partidos e sistemas partidários.., p. 68-69.
[6] FRANCO, Afonso Arinos de Melo. História e teoria dos partidos políticos no Brasil. São Paulo: Alfa-Omega, 1980, p. 12.
[7] Cf. POWER, Timothy; ZUCCO Jr. Estimating Ideology of Brazilian Legislative Parties, 1990-2005: A Research Communication. Disponível em: <http://www.fgv.br/professor/cesar.zucco/files/PaperLARR2009.pdf> . Embora o estudo só cubra o período de 1990-2005, não é preciso muito esforço para perceber que a homogeneidade ideológica dos partidos se aprofundou.
04 de dezembro de 2015
Saulo de Tarso Manriquez é mestre em Direito pela PUC-PR.
Saulo de Tarso Manriquez é mestre em Direito pela PUC-PR.
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