Para o filósofo Michael Sandel, professor da Universidade Harvard, o combate à roubalheira precisa mais do que juízes competentes — exige uma transformação cultural do Brasil. O curso ministrado por ele tem o sugestivo nome de “Justiça” e é um dos mais populares de toda a história da instituição. Cerca de 15 mil alunos o frequentaram nas últimas duas décadas. Disponível na internet, foi visto por mais de 5 milhões de pessoas.
São números como esses que já fizeram Sandel virar uma estrela no meio acadêmico americano. No ramo editorial, seu sucesso é igualmente impressionante. Em 2009, publicou “Justiça”. Três anos depois foi a vez de “O Que o Dinheiro Não Compra”. Juntos, os dois livros venderam quase 3 milhões de cópias em todo o mundo. Antes de embarcar para o Brasil, onde veio falar sobre ética em um fórum organizado pela empresa HSM, em São Paulo, Sandel concedeu a seguinte entrevista a Exame.
De que forma a corrupção costuma se espalhar por uma sociedade?
Em alguns países, a corrupção se faz presente em todas as esferas do governo e nas empresas. Quando esse é o caso, é comum que a corrupção também esteja presente na vida cotidiana de muitas pessoas. Para combater a roubalheira, o papel da polícia e do sistema judiciário é central. E dessa forma que se encontram e se punem os poderosos. Por isso, juízes competentes e incorruptíveis são fundamentais. Leis que impeçam partidos políticos de tomar dinheiro público em benefício próprio também são imprescindíveis. Vimos isso acontecer no Brasil há alguns anos no caso do mensalão e agora estamos vendo nas investigações sobre irregularidades na Petrobras.
De que forma a filosofia pode nos ajudar a entender a lógica da corrupção?
John Locke, filósofo britânico que viveu no século 17, dizia que, antes de a sociedade ser criada, vivia-se no que ele chama de “Estado de natureza”. Ou seja, uma terra sem leis nem direitos. Cada um decide o que é certo e o que é errado. Em situações como essa, segundo Locke, as pessoas vão sempre superestimar quanto precisam para viver. Hoje em dia é comum ouvir as seguintes perguntas: “Por que fulano roubou tanto?” “Por que não para de roubar?” Acho que Locke oferece uma boa explicação.
Algumas pessoas defendem a tese da corrupção nobre. Um partido político qualquer apodera-se de dinheiro público para financiar sua campanha, chegar ao poder e adotar políticas que, supostamente, são em favor dos mais pobres. Existe uma corrupção nobre?
Em termos filosóficos, não podemos descartar essa possibilidade. O exemplo clássico não envolve a política, mas pais miseráveis que roubam um pão para dar de comer aos filhos famintos. A desonestidade é algo muito ruim, precisa ser combatida, mas é possível que haja casos que a justifiquem. Entretanto, vale lembrar que o conceito de corrupção nobre traz um enorme risco. Se essa visão de mundo se torna endêmica, as normas de toda uma sociedade começam a sofrer um forte processo de erosão. Da obediência às leis à obrigação moral de sermos honestos, tudo passa a ser negociável. Cada cidadão passa a ser o juiz do próprio caso. Cada um começa a se sentir com poder para julgar quando a corrupção pode ou não ser justificada. Tudo, claro, em nome de uma suposta causa nobre. Esse fenômeno é o que faz um país mergulhar na corrupção. E também o que acaba enfraquecendo a confiança nos governos e até no processo democrático.
É um exagero dizer que altos índices de corrupção, como os que existem no Brasil, são um sinal de deficiência moral de toda uma sociedade?
Quando a corrupção é praticada em larga escala, quando toma conta dos partidos políticos, do mundo dos negócios e da vida cotidiana, é, sim, um sinal de falência moral. E uma incapacidade generalizada de reconhecer e respeitar o direito das outras pessoas com quem dividimos um país.
Por que eleitores que se dizem enojados com a corrupção acabam votando em políticos com longos históricos de falcatruas?
De alguma forma, esse fenômeno tem a ver com a origem da corrupção — o sujeito roubando para sua família, seu grupo, sua comunidade. Uma das possíveis explicações para o fato de muitas pessoas votarem em políticos notoriamente corruptos é a ideia de que eles beneficiarão quem faz parte de seu grupo de eleitores. As pessoas querem políticos corretos e, ao mesmo tempo, querem políticos que se importem com elas. As vezes, esses desejos entram em conflito.
O que a filosofia pode nos ensinar sobre como combater a corrupção?
O que Locke e muitos outros filósofos defendem é a necessidade de criarmos um contrato social. Nesse contrato, concordamos que todos temos de obedecer às leis e que certas instituições terão o poder de fazer a lei valer para todos, de forma justa e impessoal. O contrato cria um sistema de leis, mas vários filósofos também defendem que é preciso ir além disso. Imagine um país com uma força policial altamente eficiente e um sistema legal implacável. Mesmo esse lugar imaginário precisaria de outro componente: cidadãos dispostos a fazer a coisa certa sem precisar ser forçados pelas autoridades. E por isso que digo que as virtudes cívicas devem ser cultivadas.
O que o senhor quer dizer quando fala em virtudes cívicas?
São cidadãos com atitudes e hábitos que tenham como meta o bem comum. Mesmo quando estamos dentro do carro, tremendamente atrasados e vemos que não há câmeras vigiando no semáforo, obedecemos ao sinal vermelho. Mesmo quando o poder de fiscalização do Fisco é falho, pagamos todos os impostos. Mesmo quando parece não haver alternativa, nos recusamos a dar ou a receber propinas. Em resumo, não negociamos o valor da honestidade e do respeito mútuo. Por quê? Porque esses valores são parte constitutiva do que somos. E nosso caráter. E nossa visão de democracia. () combate à corrupção envolve a aplicação das leis e também uma transformação cultural. A ideia de que sempre se deve tirar vantagem do sistema precisa ser fortemente combatida. A corrupção não é apenas um caso de lei. E de atitude diária.
Quando as pessoas não aprendem esses valores com a família, como um país pode cultivá-los?
As escolas têm um papel importante. O mesmo vale para as empresas. Empresários e executivos têm se dedicado a estabelecer regras claras e códigos de conduta para seus funcionários. Isso é positivo, mas não suficiente. Mais importante é cuidar da cultura da empresa. Muita gente ainda diz que o importante são os resultados, não o caráter dos funcionários. As companhias devem ser ponto de referência em ética nos contatos com outras instituições e também internamente. O local de trabalho é um espaço fundamental para que as pessoas sejam incentivadas a fazer a coisa certa. Cultivar as virtudes cívicas também implica dar mais atenção à esfera pública. A resposta à corrupção exige um amplo debate sobre a ética. Nas últimas décadas, os assuntos relacionados aos governos ficaram muito centrados nas questões de gestão. Temas como justiça, bem comum e ética ficaram de lado. E me parece urgente mudar isso. Tudo o que estou dizendo faz sentido no caso brasileiro?
(texto enviado pelo comentarista Mário Assis)
02 de abril de 2015
Eduardo Salgado
Exame
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