O candidato Lula, em sua primeira disputa vitoriosa à Presidência da República, procurou distanciar-se das posições mais à esquerda de seu partido, divulgando uma carta, a “Carta ao povo brasileiro”, que balizou as posições que viria a tomar se eleito. Sabia que, se mantivesse a doutrina tradicional petista, anticapitalista e socializante, certamente iria perder novamente as eleições. Do ponto de vista do espectro político, aproximou-se do centro, capturando a simpatia de empresários e de uma classe média até então refratária ao PT. O movimento foi inteligente e o seu resultado foi o sucesso.
Ocorre, contudo, que o PT não tornou a “Carta ao povo brasileiro” um documento partidário, o que o teria obrigado a uma revisão doutrinária, optando pela social-democracia e distanciando-se de posições revolucionárias. Em vez de uma revisão doutrinária necessária, a escolha recaiu na inércia, na omissão e, na verdade, na esquizofrenia.
A esquizofrenia teve todo o caminho aberto para se desenvolver. O governo petista de Lula, sobretudo em seu primeiro mandato, fez uma escolha, de fato, pela social-democracia, com matizes liberais. O nome social-democracia permaneceu, porém, no nível partidário, um nome feio por designar o seu principal adversário. Entretanto, a prática de governar pouco tinha a ver com a doutrina partidária. Poderíamos, inclusive, dizer, com Antonio Palocci, no Ministério da Fazenda, e Henrique Meirelles, no Banco Central, que a política macroeconômica era “neoliberal”.
O PT perdeu substância do ponto de vista doutrinário, porém ganhou poder implantando-se fortemente no aparelho de Estado. Passou a ser uma máquina eficiente na conquista eleitoral, aproveitando-se da política social de seu governo, de corte social-democrata, personificada no Bolsa Família, na política de aumento do salário-mínimo e em outras formas distributivistas. A prática era uma; a teoria, outra.
O governo Dilma seguiu essa mesma política social-democrata, com as tinturas de um maior intervencionismo estatal na área econômica, já presentes no segundo mandato de Lula. Diria, mesmo, que se distinguiu de seu antecessor por uma política social muito mais responsável ao procurar a resolução e o equacionamento de conflitos sociais, em vez de potencializá-los.
Isto é particularmente visível em sua relação com o agronegócio, tornado um parceiro na condução dos assuntos do país. A CNA, presidida pela senadora Kátia Abreu, estabeleceu um diálogo com a Presidência, extremamente profícuo para o Brasil como um todo. A insegurança jurídica no campo teve uma substancial redução.
A reforma agrária, por sua vez, sofreu uma mudança de foco, passando a centrar-se na qualificação dos assentamentos, de modo a estes não se tornarem favelas rurais. A ênfase foi posta na formação técnica, na produtividade, de modo que os assentados possam se tornar agricultores familiares voltados para uma economia de mercado. A transformação foi importante.
Outro ponto que merece destaque foi sua política em relação aos meios de comunicação, não aceitando, por princípio, nenhuma forma de controle dos mesmos, em uma defesa resoluta da liberdade de imprensa. Sua é a expressão de que o único controle que admitia era o controle remoto dos aparelhos de televisão. Engavetou, inclusive, um projeto deixado por seu antecessor de “controle social dos meios de comunicação” ou de “democratização dos meios de comunicação”, conforme se queira dizer, para melhor encobrir formas propostas de censura.
Nestes dois pontos, o seu distanciamento com as formulações doutrinárias do PT só se acentuou. A eleição, contudo, está levando a uma aproximação com posições partidárias que contradizem a própria prática petista de governar nesses últimos anos. Em vez de retomar e aprofundar uma “Carta ao povo brasileiro”, que deveria ser um documento partidário, a presidente e o PT estão, em sua estratégia política, formulando praticamente uma “Carta aos petistas”. A presidente afasta-se de sua própria prática de governo e o PT retoma as suas posições doutrinárias tradicionais. A esquizofrenia ganha novos contornos.
Explico-me. Há um texto implícito na atual estratégia que merece a denominação de “Carta aos petistas”. Ela está voltada principalmente para o seu público interno. Em contradição explícita com a política do governo Dilma até aqui, ela se caracteriza, entre outros quesitos: a) pela recuperação da política de “democratização dos meios de comunicação”, com o objetivo de controle destes mesmos meios, que estariam fazendo o “papel das oposições”, o jogo dos “conservadores”; b) pela retomada da interlocução com os ditos “movimentos sociais”, em particular o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), braço urbano do MST, agora voltado contra a “especulação imobiliária”; c) pela aposta na fratura social e política por intermédio do discurso que tinha sido enfraquecido dos “ricos” contra os “pobres”, em um jogo canhestro de reafirmação da “luta de classes”; d) pela racialização da política, tornando o xingamento em um estádio a manifestação de uma “elite branca”.
É como se o partido e a presidente estivessem voltando a sua atenção, não para o eleitor em geral, mas para os simpatizantes e militantes petistas. É um discurso “intramuros”, procurando recolher o rebanho perdido. Convém ressaltar que a “Carta ao povo brasileiro” era “extramuros”. Trata-se, atualmente, de uma política de resistência, própria de um partido acuado, e não de um governo que completa 12 anos. Na experiência petista do Rio Grande do Sul aparecia que, quando o discurso eleitoral era dirigido para dentro do partido, este perdia a eleição. Quando se voltava para fora, as suas chances de sucesso eram grandes.
A atual estratégia eleitoral petista mais parece a de um partido que se prepara para ser oposição, do que a de um governo que deveria apresentar os resultados de seus três mandatos de exercício do poder.
Qual é a Carta que vale?
30 de junho de 2014
Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
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