"Não foi esta a minha intenção", desculpou-se uma professora da PUC do Rio, depois de publicar no Facebook a foto de um homem de bermudas e camiseta no aeroporto Santos Dumont, com a pergunta: "Aeroporto ou rodoviária?" Com apoio de seus seguidores, inclusive o reitor da UniRio, a professora continuou: "O pior é que o Mr. Rodoviária está no meu voo! Ao menos, não do meu lado! Ufa!". Diante do furor viral, a passageira insultada com a violação visual, exposta ao escárnio público, fez o que faz Justin Bieber toda semana. Pediu desculpas com a sinceridade do astro pop canadense. O homem fotografado sem sua autorização revelou-se um advogado e procurador da cidade mineira de Nova Serrana. Alguém acredita que uma acadêmica se daria ao trabalho de fotografar um gajo e escrever o que escreveu se não estivesse dizendo exatamente o que pensa?
Um consultor de empresas, falando a empresários no Fórum Econômico Mundial em Davos, pediu um cessar-fogo de pedidos de desculpas. Dov Seidman acompanha o aviltamento progressivo do pedido de desculpas público há anos. E se diz insultado com o fato de que tantos autores dos pedidos subestimam sua inteligência. A palestra de Seidman em Davos inspirou um editor de negócios do New York Times a criar uma seção, Apology Watch, para monitorar a rotina da hipocrisia e não deu outra: em poucos dias, foi brindado com a gafe épica do CEO da AOL, Tim Armstrong. Durante um telefonema para funcionários, Armstrong disse que a empresa ia reduzir seus benefícios de aposentadoria em parte porque tinha gasto US$ 2 milhões com dois bebês doentes, filhos de empregados. A mãe de um dos bebês se apresentou, contou sua história trágica e o castigado Armstrong, conhecido por sua crueldade em outro episódio público, se desculpou. De novo, ninguém o acusou de sinceridade.
O ciclo de agressão e desculpas está tão rápido que, enquanto um âncora da CNN relatava a entrevista homofóbica de um jogador de futebol americano no ar, alguém soprou no seu ponto eletrônico que o jogador já estava voltando atrás em outro canal. Como sempre, o jogador espera que a gente acredite: foi possuído por um misterioso ente do mal e disse exatamente o oposto do que pensa.
Desde que escrevi a primeira linha acima, já caiu no meu colo outra pérola da prostituição do pedido de desculpas. Isabel Allende acaba de lançar Ripper, um romance de mistério, e disse, numa entrevista à rádio pública americana, que não gosta do gênero. Antes de se lançar ao trabalho, a escritora mais conhecida pelo realismo mágico de A Casa dos Espíritos, começou a ler os autores de mistério mais bem sucedidos. Foi quando chegou à conclusão: "Não consigo escrever este tipo de livro. É macabro demais, violento demais, sombrio demais. Não há redenção ali". Confesso que tenho opinião sobre que tipo de livro Allende consegue escrever e suas chances de redenção para mim como leitora, mas isto não vem ao caso. A sandice do comentário provocou uma reação irada de fãs de livros de mistério. Allende, casada com um autor de tal literatura, Michael C. Gordon, pediu desculpas porque não foi clara. Na verdade, disse, o comentário era uma piada. Sim, uma best-seller artesã da palavra certamente encontra dificuldades em expressar opinião sobre um gênero literário.
Mas foi outro autor de best-sellers, Stephen King, que ilustrou recentemente, a meu ver, a inflação do arrependimento público. Quando Dylan Farrow acusou Woody Allen de tê-la molestado quando ela tinha 7 anos, King escreveu no Twitter: "Estou perplexo com esta, mas há um elemento de 'bitchery' palpável". Caca no ventilador. Bitch, além de cadela, é o termo chulo para prostituta. Chamar mulher de bitch é mais pesado do que chamar de jararaca. Açodado pela turba digital, King logo tuitou: "Não tenho opinião sobre as acusações; espero que não sejam verdade. Provavelmente usei a palavra errada". E, em seguida, King, calouro no meio, concluiu: "Ainda estou aprendendo a me mexer nesta coisa. Tenham misericórdia".
King expôs o fato de que, quando todo mundo publica qualquer pensamento, neste ambiente de diarreia opinativa, vivemos em estado de conflagração constante entre quem insulta e é insultado. A professora da PUC gostou de saber que seus pares concordam com ela sobre a aparência do homem que, não suspeitava, tem um canudo como o seu. Mas ela se aterrorizou quando a chusma que viaja como quer se juntou em bando para atacá-la.
As desculpas públicas perderam a legitimidade porque não são fruto de arrependimento ou da dor de ferir alguém, mas do desejo de escapar de um desconforto e administrar a própria imagem. Sua motivação é imperdoável.
Um consultor de empresas, falando a empresários no Fórum Econômico Mundial em Davos, pediu um cessar-fogo de pedidos de desculpas. Dov Seidman acompanha o aviltamento progressivo do pedido de desculpas público há anos. E se diz insultado com o fato de que tantos autores dos pedidos subestimam sua inteligência. A palestra de Seidman em Davos inspirou um editor de negócios do New York Times a criar uma seção, Apology Watch, para monitorar a rotina da hipocrisia e não deu outra: em poucos dias, foi brindado com a gafe épica do CEO da AOL, Tim Armstrong. Durante um telefonema para funcionários, Armstrong disse que a empresa ia reduzir seus benefícios de aposentadoria em parte porque tinha gasto US$ 2 milhões com dois bebês doentes, filhos de empregados. A mãe de um dos bebês se apresentou, contou sua história trágica e o castigado Armstrong, conhecido por sua crueldade em outro episódio público, se desculpou. De novo, ninguém o acusou de sinceridade.
O ciclo de agressão e desculpas está tão rápido que, enquanto um âncora da CNN relatava a entrevista homofóbica de um jogador de futebol americano no ar, alguém soprou no seu ponto eletrônico que o jogador já estava voltando atrás em outro canal. Como sempre, o jogador espera que a gente acredite: foi possuído por um misterioso ente do mal e disse exatamente o oposto do que pensa.
Desde que escrevi a primeira linha acima, já caiu no meu colo outra pérola da prostituição do pedido de desculpas. Isabel Allende acaba de lançar Ripper, um romance de mistério, e disse, numa entrevista à rádio pública americana, que não gosta do gênero. Antes de se lançar ao trabalho, a escritora mais conhecida pelo realismo mágico de A Casa dos Espíritos, começou a ler os autores de mistério mais bem sucedidos. Foi quando chegou à conclusão: "Não consigo escrever este tipo de livro. É macabro demais, violento demais, sombrio demais. Não há redenção ali". Confesso que tenho opinião sobre que tipo de livro Allende consegue escrever e suas chances de redenção para mim como leitora, mas isto não vem ao caso. A sandice do comentário provocou uma reação irada de fãs de livros de mistério. Allende, casada com um autor de tal literatura, Michael C. Gordon, pediu desculpas porque não foi clara. Na verdade, disse, o comentário era uma piada. Sim, uma best-seller artesã da palavra certamente encontra dificuldades em expressar opinião sobre um gênero literário.
Mas foi outro autor de best-sellers, Stephen King, que ilustrou recentemente, a meu ver, a inflação do arrependimento público. Quando Dylan Farrow acusou Woody Allen de tê-la molestado quando ela tinha 7 anos, King escreveu no Twitter: "Estou perplexo com esta, mas há um elemento de 'bitchery' palpável". Caca no ventilador. Bitch, além de cadela, é o termo chulo para prostituta. Chamar mulher de bitch é mais pesado do que chamar de jararaca. Açodado pela turba digital, King logo tuitou: "Não tenho opinião sobre as acusações; espero que não sejam verdade. Provavelmente usei a palavra errada". E, em seguida, King, calouro no meio, concluiu: "Ainda estou aprendendo a me mexer nesta coisa. Tenham misericórdia".
King expôs o fato de que, quando todo mundo publica qualquer pensamento, neste ambiente de diarreia opinativa, vivemos em estado de conflagração constante entre quem insulta e é insultado. A professora da PUC gostou de saber que seus pares concordam com ela sobre a aparência do homem que, não suspeitava, tem um canudo como o seu. Mas ela se aterrorizou quando a chusma que viaja como quer se juntou em bando para atacá-la.
As desculpas públicas perderam a legitimidade porque não são fruto de arrependimento ou da dor de ferir alguém, mas do desejo de escapar de um desconforto e administrar a própria imagem. Sua motivação é imperdoável.
17 de fevereiro de 2014
Lúcia Guimarães, O Estado de S. Paulo
Nenhum comentário:
Postar um comentário