Qual o peso de Lula na balança eleitoral? Essa é uma das questões mais controversas do debate político ora em curso. A polêmica se estabelece a partir do reconhecimento de que Luiz Inácio Lula da Silva, retirante nordestino que, aos 7 anos, chegou em Vicente de Carvalho, no litoral paulista, num caminhão “pau-de-arara”, é o último perfil carismático da paisagem política contemporânea.
É comum se ouvir, aqui e ali, que fulano tem carisma, beltrano possui um brilho especial, é extremamente simpático, quando tais sicranos que habitam o universo da política chamam a atenção mais por conta de sua apresentação – modo de sorrir, jeito de falar, gesticular ou de vestir e de outros sinais que chamem a atenção do interlocutor – e menos em função do real significado do conceito, um composto que soma história de vida, estética e semântica, símbolos e valores que despertam nas estruturas emotivas das massas.
O líder dotado de carisma forma uma corrente magnética com seus seguidores, disparando sobre eles um foguetório de emoções, como devoção, fidelidade, paixão e, sobretudo, fé, pela qual os crentes abrem as portas do futuro, enxergando nesse “herói” um ser providencial, responsável e único capaz de propiciar o seu bem estar.
O carismático exibe um veio populista, principalmente ao agitar as massas com um discurso floreado de bordões e refrãos de fácil assimilação, particularmente aqueles que tocam diretamente os instintos de conservação do indivíduo (combativo e nutritivo) e os de preservação da espécie (sexual e paternal).
Sua linguagem cifrada, onde pontificam metáforas e expressões da oralidade das ruas, procura combinar as necessidades de cada pessoa às necessidades coletivas, particularmente das camadas mais carentes, daí a recorrência a termos como fome, medo, esperança, fraternidade, solidariedade, união, luta, vitória.
O dicionário de verbetes de Lula é o mais acessível às massas. É evidente que o portador de carisma tem de provar e comprovar que não se limita ao verbo tonitruante dos palanques. Precisa demonstrar ação.
A trajetória do pernambucano Luiz Inácio, sob esse aspecto, é cheia de atos e fatos. É um roteiro de lutas, criação de movimentos, mobilização de massas, greves, negociações com o patronato, derrotas e vitórias eleitorais.
Com direito ao mais extraordinário happy end de nossa cinematografia política: o infante que quase perdia o caminhão dos retirantes nordestinos, passando extrema necessidade, conquistou o maior posto da República Federativa do Brasil. Torna-se patente a soma de situações – incluindo a cura de um câncer - que o transforma num líder carismático.
Já não se pode dizer o mesmo da ex-senadora Marina Silva, por exemplo, em quem muitos enxergam aura carismática. Falta-lhe o tônus da ação. Um eixo largo de feitos. Sua planilha, hoje, exibe enfeites mais retóricos, apesar da atenção gerada por seu porte miúdo, voz em falsete e uma história de carências.
Ao longo do tempo, pode vir a adensar o perfil, eis que é dona da árvore da sustentabilidade, cujos galhos podem crescer nos quatro cantos do território. Sobra-lhe a imagem de logotipo ambulante, marca que a deixa próxima de Lula.
A conclusão, pois, é a de que os demais perfis inseridos na galeria do carisma não passam de imitações baratas. Alguns não passam de “bolhas de sabão”, que se elevam por instantes e logo estouram, para usar a própria comparação feita por Max Weber.
São políticos que se valem de condições abertas por nossa legislação – mídia, recursos partidários – para reforçar a imagem pessoal (de índole narcisista), identificando-a com os atributos despejados na seara eleitoral: fazedor, realizador, moderno gestor, preparado.
( À propósito, uma das campanhas de Paulo Maluf para a Prefeitura de São Paulo tinha como slogan: “Paulo fez, Paulo fará”. Lê-se que a campanha à reeleição da presidente Dilma teria como refrão: “Ela fez, faz e fará melhor”). Falta de imaginação ou o caldo de Lavoisier?
Dito isto, salta à vista a observação de que o último dos moicanos, com seu arsenal carismático, poderá abater gregos e troianos que tentem flechar a candidata petista em 2014. Certo? Não. A hipótese aponta para entraves. Primeiro, carisma não é um bem inesgotável. Trata-se de um dom que atinge um clímax em tempo determinado e, sob circunstâncias não tão favoráveis, pode declinar.
Weber lembra que o domínio carismático se impõe em momentos de crise, mas seu estado de “pureza” é afetado pelo rolo compressor da modernidade. Quer dizer, reflui ante a consolidação das instituições políticas e sociais, a melhoria dos padrões educacionais, o resgate de direitos individuais e coletivos, enfim, a elevação da cidadania.
Em outros termos, os líderes carismáticos surfam nas ondas emotivas e perdem embalo sob a égide da racionalidade. Não seria essa uma radiografia do país nos últimos anos?
O Brasil de 2002, quando Lula correu o território e ergueu ao alto o mastro da esperança, avançou muito. O corpo de Lula cabia bem na alma nacional. Sua voz ecoava alto por todos os cantos da pirâmide social. Acabou levando o troféu. Depois de 8 anos, continuou a usar a aura carismática para embalar um perfil técnico e até então apolítico, a ex-ministra Dilma Rousseff. Um achado que deu certo.
Fez o mesmo na capital paulista com o atual prefeito Fernando Haddad. Será o mesmo blindado carismático em 2014? A elevação dos índices de racionalidade (particularmente nos bolsões que ascenderam socialmente); o desgaste do PT com o episódio da ação penal 470 (mensalão); e a polarização entre tucanos e petistas, com sinais de saturação, parecem indicar obstáculos no caminho de Lula.
O eventual sucesso da presidente Dilma, é consenso, terá como leit motiv o cenário econômico. Não se descarta a carta de Lula no baralho eleitoral. Mas a estrutura da fortaleza que construiu no campo do carisma não é tão sólida como há 20, 30 anos. Vaza água por alguns canos.
10 de novembro de 2013
Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP, consultor político e de comunicação.
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