Nas democracias, após o estabelecimento do contraditório, nada mais natural do que a revisão de posições. Isto faz crescer quem não fica apegado a dogmas e quem leva em consideração a legítima pressão dos meios de comunicação e da opinião pública. A mudança de posição não é demérito para ninguém. Ao contrário, é indicativo de humildade e espírito democrático, daqueles que tem capacidade de ouvir, refletir e avançar.
É com este olhar que devem ser avaliados os movimentos mais recentes dos integrantes do grupo Procure Saber. Tanto no vídeo divulgado na semana passada - e onde Gilberto Gil, Erasmo Carlos e Roberto Carlos sugerem uma mudança de posição em relação às biografias não autorizadas -, quanto a decisão tomada por Roberto Carlos de simplesmente deixar o Procure Saber. Mesmo que de forma titubeante, é possível perceber nestas atitudes uma certa autocrítica. Ou, como disse Gil no vídeo, “mas também queremos afastar toda e qualquer hipótese de censura prévia” (http://www.youtube.com/watch?v=j76YMPhFHEY&feature=youtu.be).
Salve a mudança!
Antes disso, Gil, Erasmo e Roberto, junto com Chico Buarque, Milton Nascimento, Caetano Veloso e outros, defendiam a censura prévia a este tipo de biografia, pois insistiam em apoiar o dispositivo 20 do Código Civil. Aprovado na Reforma em 2001, esse dispositivo claramente estabelece a censura prévia no caso das biografias não autorizadas, ao afirmar: os retratados podem proibir uma biografia se considerarem que lhes "atinge a honra, a boa fama ou a respeitabilidade" ou se "se destinar a fins comerciais”.
O substantivo é que, no vídeo, os três músicos dizem reconhecer a necessidade do fortalecimento do direito coletivo, portanto da plena liberdade de expressão que é, diga-se de passagem, assegurada pelo artigo 220 da Constituição. Estas palavras podem ser um indicativo de que a posição anterior tenha sido um ponto fora da curva na trajetória destes artistas. Ainda que Chico e Milton Nascimento tenham mantido o mutismo em que submergiram a partir da repercussão negativa da posição adotada pelo grupo Procure Saber. O único que se mantém firme na posição original é Caetano Veloso que chegou a produzir um artigo raivoso no Globo do último domingo contra o “rei” Roberto Carlos.
São inegáveis as contribuições desses nomes para a cultura brasileira. Quase todos fizeram de sua arte uma trincheira e, a seu modo, travaram o bom combate contra a ditadura militar. Mais ainda: eles próprios foram vítimas da censura prévia e de outras perseguições, durante o regime ditatorial.
Dai a estranheza de todos nós diante da posição inicial que tiveram, no caso das biografias não autorizadas. Agora as coisas talvez estejam voltando ao seu leito natural. Quanto mais cedo se reconciliarem com sua própria história, melhor para a democracia, melhor para o país.
A batalha pela plena liberdade expressão é permanente. No caso das biografias não autorizadas urge a revogação do dispositivo 20 do Código Civil, uma excrecência autoritária. Se estivesse em vigor no ano 2000, os brasileiros provavelmente não teriam acesso à história do delegado Sérgio Fleury. Se à época existisse a censura prévia às biografias não autorizadas, dificilmente teria sido publicado o livro “Autopsia do Medo”, do jornalista Percival de Souza. Por sorte, a reforma do Código foi em 2001.
Naquela virada de milênio, ganhou o Brasil. Ficamos sabendo quem foi o delegado Sérgio Fleury: torturador, chefe do esquadrão da morte, umbilicalmente ligado a traficantes.
Na recente Feira Internacional do Livro de Frankfurt o escritor Laurentino Gomes fez uma afirmação sobre a qual devemos refletir: "Essa situação ameaça transformar o Brasil no paraíso da biografia chapa-branca, aquela que só é publicada mediante autorização prévia".
As biografias “autorizadas”, ou apologéticas, sempre frutificaram em regimes totalitários ou ditatoriais. Durante o Estado Novo, Getúlio Vargas encomendou várias biografias laudatórias de sua personalidade.
E mesmo quando não são manipuladas politicamente, as biografias autorizadas podem sonegar aos leitores fatos relevantes na vida de uma personalidade. Este tipo de biografia tende a ser “seletiva”, portanto, ainda que tenham valor documental, são unilaterais e incompletas.
Fui presidente da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. À época, ampliei o estatuto social da empresa para que ela também pudesse ser a editora do Estado, tendo como um dos objetivos a publicação de livros que contribuíssem para a recuperação da memória e da história do país.
Dentro dessa linha editorial lançamos diversas biografias com reconhecida contribuição para a análise e reflexão de aspectos recentes da nossa história. O carro chefe foi a Coleção Aplauso, que trouxe a biografia de mais de 200 personalidades entre atores, atrizes, cineastas e dramaturgos, nomes como Fernanda Montenegro, Liliam Lemmertz, Tatiana Belinky, Carlos Reichembach, Walmor Chagas ou Gianfrancesco Guarnieri.
Como se tratava de biografias autorizadas, dávamos a liberdade ao retratado de escolher o jornalista que faria o texto. A grande maioria dos biografados falou sem ressalvas, em depoimentos francos, transparentes e verdadeiros. Outros simplesmente se negaram a falar sobre qualquer aspecto que considerasse como “assunto pessoal”. Nos casos extremos, recusamos a publicação do texto. E todos perdemos algumas biografias que poderiam ser relevantes fontes de informações sobre o Brasil.
A vida nos ensina que os problemas da democracia se resolvem com mais democracia. Daí a convicção de que a preservação do direito à privacidade não pode ter como preço o sacrifício da liberdade de expressão.
10 de novembro de 2013
Hubert Alquéres é vice-presidente de comunicação da Câmara Brasileira do Livro (CBL).
Hubert Alquéres é vice-presidente de comunicação da Câmara Brasileira do Livro (CBL).
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