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"A expansão do gasto público na área das políticas sociais clássicas constitui uma exigência mínima de uma sociedade democrática", sentenciava o histórico programa partidário.Não se tratava de um documento do PT, ainda jovem naquele final de 1982. Intitulado "Esperança e Mudança" -antecipando em duas décadas e meia os lemas do americano Barack Obama- e apresentado como "uma proposta de governo para o Brasil", o texto foi publicado na "Revista do PMDB".
Inspirado pelas experiências da social-democracia europeia e pela crise da ditadura militar, o partido lançava a pedra fundamental do que viria a ser a principal obra da história recente da República brasileira: a versão tropical do Estado de bem-estar social.
A explosão da dívida externa havia sepultado o crescimento econômico vendido como milagroso pelos militares, e uma bandeira caía no colo dos adversários do regime: era hora de enfrentar, por meio da ação social do poder público, a escandalosa desigualdade entre ricos e pobres.
É curioso que, enquanto ganhava impulso no Brasil, o ideário social-democrata se enfraquecia na Europa. Cinco anos antes fora dado à luz o manifesto "A Correta Abordagem da Economia", do Partido Conservador britânico, que consagrava o que se convencionou chamar de neoliberalismo.
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Bem-estar à brasileira - Chamada |
O panfleto apresentava o diagnóstico e a agenda que seriam aplicados por Margaret Thatcher: os excessos do gasto público exigiam impostos extorsivos, inibiam a ambição individual e paralisavam a economia; deveriam ser corrigidos com privatização e livre mercado.
Depois que o PMDB passou de maior partido de oposição a maior partido governista da redemocratização, ideias neoliberais e social-democratas nativas travaram o maior de muitos duelos na elaboração da Constituição de 1988. As primeiras se abrigavam em um bloco parlamentar heterogêneo apelidado pejorativamente de "Centrão"; as segundas já haviam batizado um partido, o PSDB, dissidência da nave-mãe peemedebista.
INGOVERNÁVEL
"Carta deixa país ingovernável, diz Sarney", foi a manchete da Folha em 27 de julho de 88, com o relato de um pronunciamento dramático do então presidente em cadeia de rádio e TV, no qual se antevia uma "brutal explosão de gastos públicos".
No começo do mês, o jornal havia noticiado que, com as imposições constitucionais, as despesas da Previdência poderiam saltar para Cz$ 1,6 trilhão -volume de cruzados, moeda da época, equivalente a 4% do Produto Interno Bruto.
Líder do PSDB no Senado, Fernando Henrique Cardoso respondia que os benefícios aprovados eram "o mínimo". Já presidente da República, tentou inutilmente conter os gastos previdenciários, que hoje rondam a casa de 7% do PIB.
Entre os direitos estabelecidos na Carta, estava o piso de um salário mínimo para os benefícios, inclusive para trabalhadores rurais que nunca contribuíram; assistência a idosos e deficientes de baixa renda; e acesso universal aos serviços públicos de saúde.
SUÉCIA
"Vamos discutir o tamanho do Estado? É um bom debate", dizia o secretário da Receita Federal. "Na Suécia, a carga [tributária] é de 50%, e o Estado oferece tudo; nos Estados Unidos, a carga é menor, e o cidadão paga tudo; no Brasil, há essa desigualdade de renda."
O ano era 2007, e Jorge Rachid, um dos principais tecnocratas do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, tentava convencer uma comissão de deputados a prorrogar a CPMF. A Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira, ou "imposto do cheque", havia sido criada em caráter temporário para financiar a saúde -e àquela altura era destinada também à Previdência e à assistência.
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O argumento se valia do fascínio exercido na classe política nacional pelo modelo do "Estado que oferece tudo", cujo exemplo mais lembrado é o sueco. O país escandinavo é um dos poucos no planeta capazes de fazer parecer modesta a carga brasileira de impostos e contribuições sociais. Se lá os cidadãos entregam metade de sua renda ao governo, aqui a conta fica pouco acima de um terço.
As receitas e despesas públicas no Brasil são quase incomparáveis, se considerados os parâmetros do mundo emergente.
Como exemplo, podemos nos limitar ao peso que têm, em diferentes economias, os programas de proteção social -nome dado a mecanismos de inclusão social e de combate à pobreza, como o Bolsa Família.
Na modelar Suécia, estima-se que os gastos em proteção social consumam 21,5% do PIB. No Brasil, a parcela é de 12,5%. Os EUA, contraexemplo de Rachid, colocam na área 9,2%. E o México gasta só 2,8% do PIB no setor.
Na história do Brasil republicano, é notável o salto dos gastos públicos dos anos 1990 para cá. A carga não passava de 10% do PIB no início da República; um século depois, estava na casa dos 25%; em pouco mais de uma década dividida entre os governos FHC e Lula, saltou para 35%.
HIPERINFLAÇÃO
Em seus primeiros anos, o Estado de bem-estar tropical foi diluído em uma hiperinflação que corroía o valor dos benefícios, o que permitia ao governo fechar suas contas. Depois que o Plano Real civilizou a alta dos preços, os impostos subiram.
Temores neoliberais e esperanças social-democratas se confirmaram: a economia não reencontrou o caminho do crescimento acelerado e duradouro, mas a concentração de renda finalmente entrou em trajetória de queda.
Tensões se acumulam entre os dois polos ideológicos à medida que os movimentos políticos oscilam entre um e outro. Tucanos e petistas, em meio a acusações, elevaram gastos e privatizaram, criaram programas sociais e elevaram os juros para conter a inflação.
O Bolsa Família é um exemplo de vitória discreta do pensamento liberal que defende ações focadas nos mais miseráveis em vez das políticas sociais clássicas preconizadas no documento do PMDB.
Uma das responsáveis pelo manifesto, a mais tarde petista Maria da Conceição Tavares, chamou de "débeis mentais" os economistas da Fazenda do primeiro mandato de Lula que defenderam a focalização do gasto social.
A agenda social do PT, ao chegar ao Planalto, era ambiciosa e incluía a ampliação das políticas universais e da reforma agrária; sua principal marca, porém, acabou sendo a opção mais barata.
O debate nos meios político e acadêmico em torno dos programas mais decisivos para a redução da pobreza e da desigualdade segue ainda hoje. Dilma Rousseff, com menos dinheiro à disposição que Lula, optou por privilegiar educação e Bolsa Família.
TOLERÂNCIA
Em 2007, aprovada pela Câmara, a CPMF não conseguiu os necessários três quintos do Senado e foi extinta. Para Samuel Pessôa, professor de economia e colunista da Folha, a derrota sinalizou que a tolerância da sociedade ao aumento da carga tributária não é infinita.
Nos anos seguintes, as despesas públicas e o bem-estar social se mantiveram em alta graças a um já esgotado ciclo de prosperidade mundial que favoreceu o país, escreve Pessôa em "O Contrato Social da Redemocratização e seus Limites", publicado há um ano.
Em entrevista, Pessôa opinou que o próximo governo pode ser obrigado a lidar com uma repactuação desse contrato, seja com a revisão da política de valorização do salário mínimo, seja com uma nova rodada de alta de impostos.
A ofensiva do prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, pela elevação do IPTU pode funcionar como balão de ensaio para a segunda opção, "se ele não se machucar muito", especula o pesquisador da Fundação Getulio Vargas (RJ).
Previsões de que o aparato de proteção social levará a um colapso das contas públicas têm sido contestadas por estudiosos como Eduardo Fagnani, da Unicamp.
"O projeto inspirado nos valores do Estado de bem-estar social foi progressivamente tensionado de 1990 em diante. Abriu-se um novo ciclo de contrarreformas antagônicas à cidadania social recém-conquistada", escreveu em artigo para a revista petista "Teoria e Debate".
A argumentação seguida por Fagnani identifica os juros pagos aos credores da dívida pública, entre os mais altos do mundo, como a real ameaça à estabilidade fiscal e a origem de interesses contrários à expansão da seguridade.
O mais novo embate se dá em torno das transformações demográficas do país. Um lado calcula que o envelhecimento da população levará à multiplicação das já generosas despesas com aposentados; o outro atribui à recuperação da economia o papel de produzir a receita necessária.
Debate econômico à parte, a política da redemocratização ensina que, se pode tornar o país ingovernável, a expansão do gasto social tem sido a garantia da governabilidade -mais ou menos como uma aliança com o PMDB.
10 de novembro de 2013
GUSTAVO PATU, 43, é repórter especial da Folha na Sucursal de Brasília.
MARIO KANNO, 48, é editor-adjunto de Arte da Folha.
ANDRÉS SANDOVAL, 39, é artista plástico e ilustrador.
infografia MARIO KANNO
ilustração ANDRÉS SANDOVAL
Folha de São Paulo
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