... Que não joguem livros à fogueira, como Savonarola, sobretudo o volume da Constituição
Quem deseja salvar a Pátria deve pesar as próprias forças e fraquezas. Caso contrário pode acabar nas fogueiras. Após impor em Florença um regime de medo para vencer os corruptos, Savonarola foi às chamas sob vaias. No afã de eliminar todo o luxo, o frade jogou livros ao fogo e abriu sendas para fatos espantosos do século 20 na Alemanha. Profeta cuja arma era o terror, ele não contou com o cansaço popular em sua higiene política.
Quem condena sem as regras do Direito morre sem direitos. Maquiavel fala contra os justiceiros: a corrupção é fato constante mesmo entre pessoas educadas para o bem. “Em todas as cidades e povos há e sempre houve os mesmos desejos e humores, sendo fácil para quem examina com diligência o passado prever o futuro de toda república e aplicar os remédios empregados pelos antigos ou, caso não se encontre nenhum usado por eles, imaginar outros novos segundo os acontecimentos” (Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio, livro I).
Ética é o sistema de atitudes e hábitos que se tornam “naturais”. O povo adere a valores positivos ou negativos. Ainda segundo Maquiavel, para mudar hábitos arraigados o governante deve fingir que o costume permanece mesmo quando a sua mudança é querida nos palácios. “Quem deseja reformar o estado de uma cidade, ser aceito e manter a satisfação de todo mundo, necessita manter pelo menos a sombra dos modos antigos, de tal jeito que possa parecer ao povo que não houve mudança nas ordens, embora as novas sejam inteiramente distintas das velhas. A grande maioria dos homens se contenta com as aparências como se fossem realidades e amiúde se deixa influenciar mais pelas coisas que parecem do que por aquelas que são” (Discursos, livro I).
Gabriel Naudé usa a mesma tese para justificar os golpes de Estado.
No Brasil surgem fogueiras acesas por êmulos de Savonarola. Real ou imaginária, a corrupção é amaldiçoada por hábito, não pelos fatos. Quem estuda o empreendimento italiano chamado Mãos Limpas sabe do que falo. De tanto exorcizar a corrupção, a massa hipnotizada se contenta em moer pessoas, sem buscar novas saídas políticas e jurídicas. Brasileiros em massa assumem costumes hostis à democracia e ao Estado de Direito. Um deles é o vezo de atacar, antes do julgamento legal, reputações de acusados.
Lembremos o caso da Escola Base. A lei de Lynch cresce nas redes “sociais”, atos vis ocorrem sem informações corretas e prudência. Na internet se cumpre agora a profecia de Diderot, o grande enciclopedista do século 18: “Temos na sociedade tantos impertinentes papagaios que falam, que falam, que falam sem saber o que dizem, e mostram tanto prazer quando expandem o mal, que o maledicente ou caluniador consegue num dia mil cúmplices” (Apologia do Padre Raynal). Não devemos mascar as palavras: quem banaliza as doutrinas sobre o bem gera o mal.
O costume faz dos indivíduos impiedosas bocas do Destino. O dogmatismo das massas sustenta as piores ditaduras, à direita e à esquerda. “Nos últimos 60 anos, aproximadamente 1,5 milhão de brasileiros tomaram parte em linchamentos. No Brasil, as massas rebeladas matam, ou tentam matar, mais de um suspeito por dia”(Latin America, Awash in Crime, Citizens Impose Their Own Brutal Justice, em The Wall Street Journal, dezembro, 2018).
Os desonestos retiram das mesas o alimento necessário à vida. Larápios públicos ou particulares merecem punições. Movimentos surgiram para a luta contra o roubo dos erários. O Instituto Não Aceito Corrupção, liderado por Roberto Livianu, reúne um programa livre de partidos ou ideologias. Trata-se, naquele coletivo, de pesquisar os fatos em amplas dimensões, além de empreender análises para reduzir a sua efetividade social e política. Temos ali um esforço que merece apoio, pois combate os malefícios da corrupção sem preconceitos. Para vencer qualquer doença é preciso estudo, técnica médica, diálogo respeitoso entre o clínico e a pessoa por ele assistida. Diagnósticos parciais ou apressados causam mais dores ou mortes. Mazelas exigem cuidados não genéricos. Apelar para um só remédio significa piorar o malefício. O ressentimento das massas é desafio, impede soluções. Lutar contra a corrupção requer o contributo dos três Poderes e de setores lúcidos na sociedade. Isoladas, a promotoria ou polícia produzem resultados parciais, inoperantes.
Certas iniciativas da Justiça têm falhas na busca de combater as práticas corrosivas. A entrevista sobre a prisão de Michel Temer concedida pelo Ministério Público e pela Polícia Federal me preocupa. Antes do julgamento definitivo os acusados nela recebem epítetos infamantes, como “líderes de quadrilha”, e adjetivos depreciativos. Se posteriores à condenação definitiva, tais palavras já seriam indevidas. Até contra cidadãos de quem foi retirado o livre movimento é vetada a injúria. Acusados servem como bode expiatório para os acusadores. As falas com apodos aos políticos mostram o costume de mover ressentimentos populares.
Não é de hoje que tal hábito torce ações judiciais no Brasil. Sobral Pinto e demais causídicos, nas ditaduras do século 20, enfrentaram parquets ágeis na hora de acusar, lentos ao corrigir erros. Recordo o tratamento cruel aplicado ao magnífico reitor da Universidade de Santa Catarina dr. Luiz Carlos Cancellier, sem provas contra ele. A UFMG foi invadida e seus dirigentes, humilhados, sem provas. A corrupção (lembro Savonarola) não é vencida com autos de fé, mas com pesquisas minuciosas, cautela, respeito à Carta Magna. O linchamento impera se existe a guerra de todos contra todos.
No Estado de Direito a ira das multidões é afastada e nunca seguida pelos que têm o múnus de zelar por todos e cada um dos cidadãos. Que eles não joguem livros à fogueira, como o dominicano, sobretudo o volume da Constituição.
*Professor da Unicamp, é autor de 'Razões de Estado e outros Estados da razão' (Perspectiva)
03 de abril de 2019
Roberto Romano, O Estado de SP
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