"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

sábado, 12 de dezembro de 2015

ENTRE CUNHA E CHICUNGUNHA

No mundo real, as coisas são complexas, ainda que nem sempre complicadas. Admitir a complexidade significa reconhecer que elas são entretecidas: um fio se trança com outros. Esquecer isso pode fazer com que alguns esforços sejam inúteis, e a busca de soluções simples fique reduzida apenas a propostas simplistas, que não consideram o todo.

Quando os especialistas dizem que a proliferação do mosquito é um problema mais urbano que rural ou silvestre, não apenas distinguem a malária (transmitida peloAnopheles) das doenças transmitidas pelo Aedes aegypti. Dão também uma pista sobre as condições de um tipo de habitat que nos caracteriza e atrapalha o combate aos vírus da dengue, da chicungunha, da zica (por que escrever com k?) e outros. É incrível que, em pleno século XXI, não se consiga controlá-los.

A atuação pioneira de laboratórios em nossas universidades já descobriu formas de combatê-los, introduzindo na natureza mosquitos geneticamente modificados que sustam a proliferação da espécie. Mas não há verbas suficientes. Então essa solução não pode ser adotada na escala necessária.
Agora se anuncia que falta larvicida no Nordeste. Não surpreende: saneamento, saúde, educação, segurança não são tratados como importantes diante das despesas de custeio de uma máquina administrativa e burocrática inchada, um tanto inútil, e milhares de vezes maior do que existe no resto do mundo. Para não chover no molhado, basta um lembrete: neste ano de cortes, em que o ajuste fiscal é confessada prioridade do governo, o fundo partidário mais do que triplicou. Já outras verbas ficam na saudade. Para não falar em desvios e propinas.

Diante do alarmante crescimento dos casos de microcefalia em bebês, relacionados ao vírus zica, voltam as campanhas para que a população não deixe água limpa parada, tampe recipientes, ponha areia nos vasinhos de plantas. Decretos de situação de emergência permitem que agentes de saúde e o Exército forcem entrada em casas. Aconselham-se repelentes, meias, mangas compridas, mosquiteiros, cuidados para não engravidar. Usam-se drones para localizar possíveis focos. Em alguns casos, até caminhões são mandados para recolher lixo acumulado havia meses numa esquina ou terreno baldio.

Ainda bem, é indispensável mesmo tomar essas medidas. Mas por que só agora? Por que o lixo se acumula? Certamente, nele há muitíssimos criadouros do mosquito, após qualquer chuva que caia em qualquer plástico de formato côncavo que retenha água, em pneus acumulados, latas velhas, copos descartáveis, garrafas pet. Nossa educação precária fica evidente em cada um deles. Como se recolhe o lixo no alto de morros em que só é possível chegar por escadinhas ou vielas estreitas onde não passa caminhão? 
Há quem cuidadosamente o traga até uma caçamba mais em baixo, sem dúvida, mas há também quem simplesmente jogue um voador encosta abaixo, onde ficará criando mosquito. Cada vez que boas intenções politicamente corretas repetem que favela não é problema, é solução, deviam insistir também em dizer que é só meia solução, a ser complementada pela presença obrigatória de serviços públicos essenciais, como o secretário Beltrame não se cansa de lembrar. Inclusive boas escolas. 
Limpeza também tem a ver com educação. Mas a falta de recolhimento de lixo não é uma carência apenas das chamadas comunidades. Está nas invasões que se multiplicam pelas periferias. Nos pontos de ônibus. Ao longo de qualquer estrada brasileira. Em maior ou menos escala, está por toda parte, com poucas exceções.

Nosso problema habitacional é imenso e mal resolvido. Agravado porque o país abandona o interior e as cidades menores, de tal forma que deixa seus habitantes quase sem escolha. Suga-se gente do campo para metrópoles já abarrotadas e superpovoadas, sempre recebendo pessoas em busca de oportunidades e sonhos, fugindo de uma sina madrasta em sua terra, para esquecer a mais absoluta falta de perspectivas. 
Mesmo quando um programa como Minha Casa Minha Vida procura melhorar as coisas, ninguém se lembra de incluir telas nas esquadrias das casas para barrar a entrada de insetos, vindos das poças, valões e monturos de lixo que continuam lá fora. Nada disso é complicado: é apenas complexo, por reunir fios diferentes — saneamento e habitação, educação e saúde.
A omissão não é de admirar, num país complexo e confuso, onde tudo está ligado mas parece estanque. E onde vingança e chantagem engordam pedido de impeachment de presidente, em meio a um campeonato de ver quem mente mais. E enquanto ela jura honradez (o que ninguém lhe negou) e silencia sobre o crime de responsabilidade de que a acusam, chama-se de golpe um recurso constitucional. 
Além de convocarem a Brasília (quem pagou as passagens?) 30 juristas que pensam igual, querem nomear para a comissão oito deputados que pensam igual. Tudo entrelaçado e complexo, da chantagem à mentira, passando pelo pensamento único.
Triste país, de lama e Cunha, zica e chicungunha.


12 de dezembro de 2015
Ana Maria Machado

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