O lamaçal da política brasileira parece infindável e o sistema político parece estar acumulando entropia para nos levar ao caos.
Há duas narrativas possíveis sobre a conjuntura. A primeira centra-se na persona de Eduardo Cunha. Motivado por uma agenda ultraconservadora e antipetista, o presidente da Câmara teria manobrado para enfraquecer o governo e patrocinar o impeachment (no que contaria com a cooperação oportunista do PSDB).
A narrativa alternativa que exploro aqui privilegia os fatores que produziram um choque externo no equilíbrio que mantinha de pé o jogo do não enfrentamento.
A ênfase na persona de Cunha escamoteia o essencial: sua "intrepidez" é produto do enfraquecimento do governo e não da liderança "do cavaleiro das trevas".
Ela se alimenta da queda vertiginosa da popularidade presidencial, do tsunami informacional da Lava Jato, que catapulta a corrupção à preocupação central dos brasileiros, da desaceleração espantosa da economia, do encolhimento da bancada do PT para meros 13% da Câmara, do estelionato eleitoral e dos custos sociais brutais decorrentes do ajuste fiscal.
E sobretudo da estratégia malsucedida, pelo Executivo, de confronto com o principal parceiro da coalizão: apoiando a criação do PL, do PSD e do PROS.
A estratégia de confronto com o PMDB está esplendidamente escancarada nacarta do vice-presidente, Michel Temer : "O governo busca promover sua divisão, o que já tentou no passado, sem sucesso".
Em entrevista muito antes do confronto, Cunha batizou-a de "Estratégia Tabajara", e não sem razão.
O PSDB fingia que atuava ativamente pelo impeachment (algo que os movimentos envolvidos denunciaram): buscava apenas criar um ponto focal sobre a questão, sem contribuir para que que ele efetivamente ocorresse.
No equilíbrio anterior não haveria impeachment porque inexistia um conjunto de atores decisivos interessados.
A estratégia dominante do PSDB vinha sendo "deixar sangrar".
A do PMDB, extrair o máximo de "rendas" até o ponto em que ainda há governo: a lógica hospedeiro-parasita.
Pelo lado do PSDB, a lógica é similar no essencial: o objetivo é patrocinar politicamente o impeachment até o ponto em que esse possa acontecer de fato.
Sua efetivação possibilitaria o discurso de vitimização pelo PT e haveria custos reputacionais, nos planos doméstico e internacional, pelo apoio à derrubada de governo eleito. Como a bomba atômica, seria apenas arma dissuasória.
Se ninguém queria, por que aconteceu? O equilíbrio que sustentava o jogo do impeachment rompeu-se devido a pelo menos a dois fatores novos: a) o custo da barganha com Cunha tornou-se proibitivo para o PT e suas lideranças perceberam que o pouco que poderiam salvar do partido dependia de romper com o Planalto.
Por isso a negociação para salvar o Cunha foi interrompida; b) As contas de Cunha vieram à tona e forneceram o mote para sua cassação, levando-o a perceber que sua sorte estava selada e que a possibilidade –antes impensável– de sua prisão em flagrante adquiriu plausibilidade após o caso Delcídio do Amaral.
Daí a bomba atômica, o jihadismo de Cunha. Porque não tem nada mais a perder, ele cai mas leva o governo junto. Cunha produz o caos e enreda o país na lama, que é seu habitat natural.
Agora o jogo é outro e a estrutura de incentivos, nova: sob o novo equilíbrio o PMDB, partido não presidenciável, vê uma janela de oportunidade para chegar à Presidência.
Seguindo a cartilha do governador Pezão, pela qual "partido que não disputa eleição presidencial vira ONG", o partido passa a contemplar a Presidência seriamente, embora não tenha candidato competitivo, ou talvez em virtude disso mesmo.
Mas o partido está dividido, o que sempre o fortalece na barganha.
A carta de Temer oferece à nação um discurso vitimizador, que escamoteia o discurso igualmente vitimizador da Dilma, como mulher honrada, atacada por bandidos.
A vitima agora é Temer, ignorado e vilipendiado. O endereço de sua mensagem não são as elites: sua estratégica missiva dirige-se ao eleitor mediano e suas emoções.
O PSDB está agora em ponto de não-retorno e a contragosto segue em frente com a esperança de que fatos novos incriminem definitivamente a presidente, jogando a opinião pública contra ela.
Sua primeira opção é anular as eleições, mas para isso não conta com o apoio do PMDB. A dinâmica decorrente tenderá a ser fundamentalmente judicial.
Mas o PSDB não é ator unitário: José Serra pode adquirir protagonismo porque não está interessado na anulação das eleições. Geraldo Alckmin segue cálculo estratégico próprio.
Vislumbro dois cenários: Temer vira presidente de direito, ou presidente de fato. No primeiro caso, recebendo não apenas os anéis, mas os dedos do governo em cenário pós-Cunha. No segundo, com um governo de salvação nacional para o qual ele, com sua elegância sartorial e circunspecção de filme noir, está bem postado para liderar.
11 de dezembro de 2015
MARCUS ANDRÉ MELO, professor titular da UFPE, foi visiting professor na Yale University e no MIT, nos EUA.
Há duas narrativas possíveis sobre a conjuntura. A primeira centra-se na persona de Eduardo Cunha. Motivado por uma agenda ultraconservadora e antipetista, o presidente da Câmara teria manobrado para enfraquecer o governo e patrocinar o impeachment (no que contaria com a cooperação oportunista do PSDB).
A narrativa alternativa que exploro aqui privilegia os fatores que produziram um choque externo no equilíbrio que mantinha de pé o jogo do não enfrentamento.
A ênfase na persona de Cunha escamoteia o essencial: sua "intrepidez" é produto do enfraquecimento do governo e não da liderança "do cavaleiro das trevas".
Ela se alimenta da queda vertiginosa da popularidade presidencial, do tsunami informacional da Lava Jato, que catapulta a corrupção à preocupação central dos brasileiros, da desaceleração espantosa da economia, do encolhimento da bancada do PT para meros 13% da Câmara, do estelionato eleitoral e dos custos sociais brutais decorrentes do ajuste fiscal.
E sobretudo da estratégia malsucedida, pelo Executivo, de confronto com o principal parceiro da coalizão: apoiando a criação do PL, do PSD e do PROS.
A estratégia de confronto com o PMDB está esplendidamente escancarada nacarta do vice-presidente, Michel Temer : "O governo busca promover sua divisão, o que já tentou no passado, sem sucesso".
Em entrevista muito antes do confronto, Cunha batizou-a de "Estratégia Tabajara", e não sem razão.
O PSDB fingia que atuava ativamente pelo impeachment (algo que os movimentos envolvidos denunciaram): buscava apenas criar um ponto focal sobre a questão, sem contribuir para que que ele efetivamente ocorresse.
No equilíbrio anterior não haveria impeachment porque inexistia um conjunto de atores decisivos interessados.
A estratégia dominante do PSDB vinha sendo "deixar sangrar".
A do PMDB, extrair o máximo de "rendas" até o ponto em que ainda há governo: a lógica hospedeiro-parasita.
Pelo lado do PSDB, a lógica é similar no essencial: o objetivo é patrocinar politicamente o impeachment até o ponto em que esse possa acontecer de fato.
Sua efetivação possibilitaria o discurso de vitimização pelo PT e haveria custos reputacionais, nos planos doméstico e internacional, pelo apoio à derrubada de governo eleito. Como a bomba atômica, seria apenas arma dissuasória.
Se ninguém queria, por que aconteceu? O equilíbrio que sustentava o jogo do impeachment rompeu-se devido a pelo menos a dois fatores novos: a) o custo da barganha com Cunha tornou-se proibitivo para o PT e suas lideranças perceberam que o pouco que poderiam salvar do partido dependia de romper com o Planalto.
Por isso a negociação para salvar o Cunha foi interrompida; b) As contas de Cunha vieram à tona e forneceram o mote para sua cassação, levando-o a perceber que sua sorte estava selada e que a possibilidade –antes impensável– de sua prisão em flagrante adquiriu plausibilidade após o caso Delcídio do Amaral.
Daí a bomba atômica, o jihadismo de Cunha. Porque não tem nada mais a perder, ele cai mas leva o governo junto. Cunha produz o caos e enreda o país na lama, que é seu habitat natural.
Agora o jogo é outro e a estrutura de incentivos, nova: sob o novo equilíbrio o PMDB, partido não presidenciável, vê uma janela de oportunidade para chegar à Presidência.
Seguindo a cartilha do governador Pezão, pela qual "partido que não disputa eleição presidencial vira ONG", o partido passa a contemplar a Presidência seriamente, embora não tenha candidato competitivo, ou talvez em virtude disso mesmo.
Mas o partido está dividido, o que sempre o fortalece na barganha.
A carta de Temer oferece à nação um discurso vitimizador, que escamoteia o discurso igualmente vitimizador da Dilma, como mulher honrada, atacada por bandidos.
A vitima agora é Temer, ignorado e vilipendiado. O endereço de sua mensagem não são as elites: sua estratégica missiva dirige-se ao eleitor mediano e suas emoções.
O PSDB está agora em ponto de não-retorno e a contragosto segue em frente com a esperança de que fatos novos incriminem definitivamente a presidente, jogando a opinião pública contra ela.
Sua primeira opção é anular as eleições, mas para isso não conta com o apoio do PMDB. A dinâmica decorrente tenderá a ser fundamentalmente judicial.
Mas o PSDB não é ator unitário: José Serra pode adquirir protagonismo porque não está interessado na anulação das eleições. Geraldo Alckmin segue cálculo estratégico próprio.
Vislumbro dois cenários: Temer vira presidente de direito, ou presidente de fato. No primeiro caso, recebendo não apenas os anéis, mas os dedos do governo em cenário pós-Cunha. No segundo, com um governo de salvação nacional para o qual ele, com sua elegância sartorial e circunspecção de filme noir, está bem postado para liderar.
11 de dezembro de 2015
MARCUS ANDRÉ MELO, professor titular da UFPE, foi visiting professor na Yale University e no MIT, nos EUA.
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