Todo mundo é a favor das crianças! Ressalvado o personagem bíblico Herodes, nunca conheci alguém que abertamente se declarasse inimigo daqueles pequenos seres que nos sucederão sobre a superfície deste tão belo e rico planeta
Fiquei a pensar sobre isso há alguns dias, ao ler que a cada 30 segundos morre uma criança vítima de malária pelo mundo afora - 80% delas com menos de cinco anos de idade. Eis aí algo surpreendente, considerado que a malária não é daquelas doenças cuja cura ou prevenção custe muito.
A propósito, descobri que o simples ato de pulverizar inseticida de longa duração sobre a cama de uma criança custa apenas US$ 1,40 - é incrível, mas ao preço de um simples cafezinho poderia ser salva uma vida. No que toca ao diagnóstico, ele custa meros US$ 0,50 para uma criança. O tratamento? Mínimos US$ 0,30. Tradução: gastando US$ 0,80 dá para livrar da morte um pequeno ser. Curiosamente, no entanto, este dinheiro não aparece, já que a mortandade de crianças segue firme pelo mundo.
Há também a fome. Todos são a favor das crianças, e no entanto a cada cinco segundos uma delas morre vítima de desnutrição sobre o solo tão rico deste planeta! Faça uma experiência: conte até cinco - um, dois, três, quatro, cinco e pronto! Morreu outra! É realmente estranho este nosso amor pelas crianças...
Há algum tempo o escritor norte-americano Raymond Brown, em seu livro “O Nascimento do Messias”, estimou que naqueles tempos bíblicos a cidade de Belém era habitada por cerca de mil habitantes, dos quais uns vinte se enquadrariam no bárbaro decreto de Herodes. Assim, aquele monstro teria determinado o assassinato de vinte crianças inocentes, razão pela qual tem sido amaldiçoado através dos milênios.
Hoje, aqui no Brasil, a cada dia morrem vinte crianças por conta de doenças causadas pela falta de um simples esgoto sanitário. Isto equivale a dizer que a cada dia repetimos a chacina de Herodes. Enquanto isso, alguns ficam a repetir aquela máxima segundo a qual saneamento básico não dá voto - e todos seguimos firmes e fortes no nosso amor pelas crianças.
E que dizer das guerras criadas pelos adultos? Aliás, registre-se que a esmagadora maioria dos conflitos armados surge exatamente sob o pretexto de defender os direitos das gerações vindouras - ou seja, das crianças. Daí minha surpresa ao descobrir, pelas mãos da ONG britânica “Human Rights Watch”, que em nossos dias umas 300 mil crianças participam, armas à mão, de conflitos em 21 países deste civilizado planeta.
Finalizo esta vergonhosa relação de descalabros com a exploração sexual de crianças. Segundo a ONU/UNICEF, 150 milhões de meninas e 73 milhões de meninos são vítimas de exploração sexual no mundo. Isto equivale a bem mais do que toda a população brasileira! E tal quadro em um mundo no qual todos, absolutamente todos - Herodes excetuado - sempre se declararam e se declaram a favor das crianças.
Mudar um quadro de tanta hipocrisia é difícil - principalmente em se tratando daquelas crianças pobres. A vida destas começa enfrentando as doenças, a desnutrição e o abandono típico das favelas. Em seguida não é raro encontrarem as grades dos reformatórios, onde muitas vezes aprenderão o significado da palavra “tortura”. Outras preferem a fuga das drogas, que as levará para a paz dos cemitérios.
Encerro estas linhas lembrando o alerta de Karl Mannheim: “o que se faz agora com as crianças é o que elas farão depois com a sociedade”.
21 de dezembro de 2015
Pedro Valls Feu Rosa é desembargador do Tribunal de Justiça do Espírito Santo
Fiquei a pensar sobre isso há alguns dias, ao ler que a cada 30 segundos morre uma criança vítima de malária pelo mundo afora - 80% delas com menos de cinco anos de idade. Eis aí algo surpreendente, considerado que a malária não é daquelas doenças cuja cura ou prevenção custe muito.
A propósito, descobri que o simples ato de pulverizar inseticida de longa duração sobre a cama de uma criança custa apenas US$ 1,40 - é incrível, mas ao preço de um simples cafezinho poderia ser salva uma vida. No que toca ao diagnóstico, ele custa meros US$ 0,50 para uma criança. O tratamento? Mínimos US$ 0,30. Tradução: gastando US$ 0,80 dá para livrar da morte um pequeno ser. Curiosamente, no entanto, este dinheiro não aparece, já que a mortandade de crianças segue firme pelo mundo.
Há também a fome. Todos são a favor das crianças, e no entanto a cada cinco segundos uma delas morre vítima de desnutrição sobre o solo tão rico deste planeta! Faça uma experiência: conte até cinco - um, dois, três, quatro, cinco e pronto! Morreu outra! É realmente estranho este nosso amor pelas crianças...
Há algum tempo o escritor norte-americano Raymond Brown, em seu livro “O Nascimento do Messias”, estimou que naqueles tempos bíblicos a cidade de Belém era habitada por cerca de mil habitantes, dos quais uns vinte se enquadrariam no bárbaro decreto de Herodes. Assim, aquele monstro teria determinado o assassinato de vinte crianças inocentes, razão pela qual tem sido amaldiçoado através dos milênios.
Hoje, aqui no Brasil, a cada dia morrem vinte crianças por conta de doenças causadas pela falta de um simples esgoto sanitário. Isto equivale a dizer que a cada dia repetimos a chacina de Herodes. Enquanto isso, alguns ficam a repetir aquela máxima segundo a qual saneamento básico não dá voto - e todos seguimos firmes e fortes no nosso amor pelas crianças.
E que dizer das guerras criadas pelos adultos? Aliás, registre-se que a esmagadora maioria dos conflitos armados surge exatamente sob o pretexto de defender os direitos das gerações vindouras - ou seja, das crianças. Daí minha surpresa ao descobrir, pelas mãos da ONG britânica “Human Rights Watch”, que em nossos dias umas 300 mil crianças participam, armas à mão, de conflitos em 21 países deste civilizado planeta.
Finalizo esta vergonhosa relação de descalabros com a exploração sexual de crianças. Segundo a ONU/UNICEF, 150 milhões de meninas e 73 milhões de meninos são vítimas de exploração sexual no mundo. Isto equivale a bem mais do que toda a população brasileira! E tal quadro em um mundo no qual todos, absolutamente todos - Herodes excetuado - sempre se declararam e se declaram a favor das crianças.
Mudar um quadro de tanta hipocrisia é difícil - principalmente em se tratando daquelas crianças pobres. A vida destas começa enfrentando as doenças, a desnutrição e o abandono típico das favelas. Em seguida não é raro encontrarem as grades dos reformatórios, onde muitas vezes aprenderão o significado da palavra “tortura”. Outras preferem a fuga das drogas, que as levará para a paz dos cemitérios.
Encerro estas linhas lembrando o alerta de Karl Mannheim: “o que se faz agora com as crianças é o que elas farão depois com a sociedade”.
21 de dezembro de 2015
Pedro Valls Feu Rosa é desembargador do Tribunal de Justiça do Espírito Santo
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