ARTIGOS - CULTURA
Vivemos num Estado que ainda não é nosso, desligados da raiz histórica que nos explica e argumenta.
Para mim é no mínimo interessante que a Constituição de 1891 – a primeira promulgada após o golpe dos militares e a expulsão da família real brasileira – tenha sido escrita num cassino. Isto mesmo: num cassino. O Governo Provisório de Marechal Deodoro ainda adaptava as construções do Rio de Janeiro à estrutura republicana. Não havia lugar apropriado, segundo consta, para discutir e votar a famosa Carta de Rui Barbosa (leiam História da República, de José Maria Bello).
Entre doses de uísque, jogos de dados e cartas de baralho, os líderes dos Estados Unidos do Brazilpactuaram o novo Estado de forma absolutamente artificial. Aliás, o próprio republicanismo era incipiente. Apesar de algumas organizações em São Paulo, por exemplo, é de se lembrar de que nas eleições legislativas que antecederam o golpe de 15 de novembro apenas três deputados eram antimonárquicos. O povo, em sua esmagadora maioria, havia escolhido - mais uma vez - políticos que expressavam o conjunto (tradicional) de crenças do século XIX: Monarquia, Poder Moderador, Parlamentarismo, Catolicismo, etc.
No excelente A formação das almas, José Murilo de Carvalho demonstra a falta de intimidade do projeto republicano com a vida e os sonhos dos brasileiros que assistiram “bestializados” à deposição de Pedro II. Não existia qualquer correspondência entre os projetos dos militares e positivistas com as aspirações do povo comum. Por isso foi preciso forjar símbolos nacionais, inventar heróis (como Tiradentes), emular a história e princípios de outras nações (como a norte-americana e a francesa). O Hino Nacional também teve seu capítulo tragicômico: numa das reuniões dos republicanos governistas fez-se uma sessão espírita a fim de tentar ouvir os músicos franceses que haviam composto a Marselhesa.
De lá para cá, a República tem se esmerado em se infiltrar no imaginário nacional (esta é a conclusão de Carvalho). Ao mesmo tempo, a história do século XX mostra as imensas falhas neste processo e a falta decontinuidade num projeto de nação democrática. República da Espada, República Velha (aquela, dos coronéis), Período Vargas, Ditadura, Redemocratização (com queda de presidente, inclusive): o alto e baixo da vida política brasileira, marcada pela transitoriedade e ausência de verdadeiros símbolos que, emanados das mais sinceras aspirações do povo, traduzam-se na cena pública pela ação de seus agentes mais destacados.
A tese de Luís Martins em O patriarca e o bacharel pode nos ajudar a compreender a tragédia nacional: em 1889 expulsamos nosso “pai” do trono e nos sentimos culpados por isso. Sabemos que aquilo foi covarde e injustificado. Por isso, desde então, procuramos alguém que nos socorra e expie nossa culpa sendo não apenas um líder, mas também um amoroso chefe. Getúlio, Juscelino ou Lula só foram possíveis porque os filhos do Brasil querem um novo pai que lhes diga o que fazer, a que horas comer e no que acreditar.
Somos, assim, um povo neurótico: pressionado a acreditar nos símbolos republicanos inventados (o que torna o fundo de nossa imaginação falsa) e culpados pela morte que causamos (no caso, a do Imperador). Para usar um conceito de Julián Marias, desinstalados: vivemos num Estado que ainda não é nosso, desligados da raiz histórica que nos explica e argumenta. Ruptura é oposta à continuidade, e não há como nos entendermos numa narrativa interrompida, de tempos em tempos, por novos assaltos ao ethos social.
Por isso precisamos de tantas leis e intervenções: porque a ordem tem de vir de fora. Um povo que expressa uma crença inabalável nas instituições não acredita em si mesmo. É preciso que os ministros do STF nos digam o que é certo; que as Casas legislativas promulguem leis sobre as coisas mais corriqueiras e imbecis; que os governos determinem limites que sozinho este mesmo povo não pode fazê-lo.
Somos neuróticos. E toda ação política deveria ser precedida por uma profunda ação psiquiátrica e salvadora.
21 de dezembro de 2015
Tiago Amorim
Vivemos num Estado que ainda não é nosso, desligados da raiz histórica que nos explica e argumenta.
Para mim é no mínimo interessante que a Constituição de 1891 – a primeira promulgada após o golpe dos militares e a expulsão da família real brasileira – tenha sido escrita num cassino. Isto mesmo: num cassino. O Governo Provisório de Marechal Deodoro ainda adaptava as construções do Rio de Janeiro à estrutura republicana. Não havia lugar apropriado, segundo consta, para discutir e votar a famosa Carta de Rui Barbosa (leiam História da República, de José Maria Bello).
Entre doses de uísque, jogos de dados e cartas de baralho, os líderes dos Estados Unidos do Brazilpactuaram o novo Estado de forma absolutamente artificial. Aliás, o próprio republicanismo era incipiente. Apesar de algumas organizações em São Paulo, por exemplo, é de se lembrar de que nas eleições legislativas que antecederam o golpe de 15 de novembro apenas três deputados eram antimonárquicos. O povo, em sua esmagadora maioria, havia escolhido - mais uma vez - políticos que expressavam o conjunto (tradicional) de crenças do século XIX: Monarquia, Poder Moderador, Parlamentarismo, Catolicismo, etc.
No excelente A formação das almas, José Murilo de Carvalho demonstra a falta de intimidade do projeto republicano com a vida e os sonhos dos brasileiros que assistiram “bestializados” à deposição de Pedro II. Não existia qualquer correspondência entre os projetos dos militares e positivistas com as aspirações do povo comum. Por isso foi preciso forjar símbolos nacionais, inventar heróis (como Tiradentes), emular a história e princípios de outras nações (como a norte-americana e a francesa). O Hino Nacional também teve seu capítulo tragicômico: numa das reuniões dos republicanos governistas fez-se uma sessão espírita a fim de tentar ouvir os músicos franceses que haviam composto a Marselhesa.
De lá para cá, a República tem se esmerado em se infiltrar no imaginário nacional (esta é a conclusão de Carvalho). Ao mesmo tempo, a história do século XX mostra as imensas falhas neste processo e a falta decontinuidade num projeto de nação democrática. República da Espada, República Velha (aquela, dos coronéis), Período Vargas, Ditadura, Redemocratização (com queda de presidente, inclusive): o alto e baixo da vida política brasileira, marcada pela transitoriedade e ausência de verdadeiros símbolos que, emanados das mais sinceras aspirações do povo, traduzam-se na cena pública pela ação de seus agentes mais destacados.
A tese de Luís Martins em O patriarca e o bacharel pode nos ajudar a compreender a tragédia nacional: em 1889 expulsamos nosso “pai” do trono e nos sentimos culpados por isso. Sabemos que aquilo foi covarde e injustificado. Por isso, desde então, procuramos alguém que nos socorra e expie nossa culpa sendo não apenas um líder, mas também um amoroso chefe. Getúlio, Juscelino ou Lula só foram possíveis porque os filhos do Brasil querem um novo pai que lhes diga o que fazer, a que horas comer e no que acreditar.
Somos, assim, um povo neurótico: pressionado a acreditar nos símbolos republicanos inventados (o que torna o fundo de nossa imaginação falsa) e culpados pela morte que causamos (no caso, a do Imperador). Para usar um conceito de Julián Marias, desinstalados: vivemos num Estado que ainda não é nosso, desligados da raiz histórica que nos explica e argumenta. Ruptura é oposta à continuidade, e não há como nos entendermos numa narrativa interrompida, de tempos em tempos, por novos assaltos ao ethos social.
Por isso precisamos de tantas leis e intervenções: porque a ordem tem de vir de fora. Um povo que expressa uma crença inabalável nas instituições não acredita em si mesmo. É preciso que os ministros do STF nos digam o que é certo; que as Casas legislativas promulguem leis sobre as coisas mais corriqueiras e imbecis; que os governos determinem limites que sozinho este mesmo povo não pode fazê-lo.
Somos neuróticos. E toda ação política deveria ser precedida por uma profunda ação psiquiátrica e salvadora.
21 de dezembro de 2015
Tiago Amorim
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