"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

A BRASÍLIA DE CLARICE

O dramaturgo americano Arthur Miller, autor, entre outros, de “A morte de um caixeiro-viajante” e fino observador das vicissitudes humanas, sempre acompanhou à distância o exercício da política e as demandas do poder. “Quer seja para o bem ou para o mal, é inevitável que líderes políticos recorram a artifícios e exerçam ilusionismo teatral. Em política a distância mais curta entre dois pontos costuma ser uma linha torta”, concluiu em 2001, quatro anos antes de morrer.

Um exemplo clássico desse virtuosismo teatral na arena política americana ocorreu nas 72 horas que se seguiram ao assassinato do presidente John Kennedy em Dallas, Texas, em novembro de 1963.
A partir do instante em que o vice Lyndon Johnson fora empossado às pressas no avião que retornava a Washington com o caixão do morto na cabine presidencial, o seu relógio político começara a ticar.

Execrado pelos que idolatravam Kennedy e de aceitação difícil por um país ainda tragicamente enviuvado e em choque, Johnson tinha tudo para demorar em ser visto como chefe da nação. Além do pecado original de ser texano, portanto originário do estado onde ocorrera a tragédia, Johnson era visto como conservador, grosseiro, arqui-inimigo dos sindicatos e avesso aos direitos civis em ascensão.

Assumiria portanto uma Casa Branca esvaziada das cabeças estelares da intelectualidade e da academia que serviram a JFK. E tampouco haveria de contar com quem comandava massas. Chefiaria um reles governo-tampão até eleições gerais um ano depois, que seriam disputadas e provavelmente vencidas por outro Kennedy.

Só que Lyndon Johnson era um exímio leitor de vaidades humanas. Virou o jogo em 72 extraordinárias horas, como conta Robert Caro no quarto volume da biografia a ele dedicada.
O primeiro telefonema foi para o inimigo número 1: o poderosíssimo líder sindical George Meany. Durante os três anos anteriores, os dois haviam trocado xingamentos públicos e de baixo calão. “George”, começou Johnson, “...preciso de você mais do que o país jamais precisou...”. Entenderam-se.
Telefonemas quase idênticos, mas com fisgada específica visando à arrogância intelectual de um James Schlesinger, ao idealismo de um Kenneth Galbraith, ao apego ao cargo de um Pierre Salinger e tantos outros também funcionaram. Ao final do terceiro dia, o resultado que nenhum analista político podia imaginar: o Ministério do presidente Kennedy permaneceu virtualmente intacto sob a chefia de Lyndon Johnson até após a eleição de 1964. Eleição essa que Johnson ainda por cima venceu.

Neste caso, o ilusionismo teatral deu certo porque estava assentado em intenções e promessas políticas que foram cumpridas no essencial. Até mesmo com Martin Luther King o presidente eleito se entendeu.

Para quem está enojado pelo noticiário político nacional, mas quer degustar o complexo ofício de fazer política por linhas tortas, este estupendo tijolaço de 600 páginas publicado quatro anos atrás em inglês (“The Passage of Power”) está disponível na rede. Sai mais barato do que uma dúzia de bolas de Natal.

Já para quem quer se dar um presente da terra ou regalar alguém querido com um recuo da obscenidade política nacional, recomenda-se a inigualável e cristalina Clarice Lispector. Vale ler, reler, devorar, anotar, degustar as duas crônicas da escritora sobre a capital —“Brasília” e “Brasília: esplendor”, reunidas em “Para não esquecer” (1999). Nelas, Clarice jorra suas impressões e sentença sobre a cidade que visitou em 1962 e 1974, e que a deixou perplexa. “A alma, aqui, não faz sombra no chão”, observou.

É quase pecaminoso extrair apenas frases ou trechos de uma narrativa tão rica, densa e bela. Contudo, após termos sido submetidos a um ano inteiro de noticiário brasiliense acachapante, a própria Clarice talvez nos desse a licença de citá-la em pedaços e outro contexto.

“Aqui o ser orgânico não se deteriora. Petrifica-se... Se há algum crime que a humanidade ainda não cometeu, esse crime novo será aqui inaugurado... Aqui é o lugar onde o espaço mais se parece com o tempo... Brasília é um futuro que aconteceu no passado... Brasília diz que quer mas não quer; negaceia. Brasília é um dente quebrado bem na frente. E é cúpula também. Tem um motivo principal. Qual é? Segredo, muito segredo, sussurros, cochichos e chichos. Diz-se-que-diz que não acaba mais...”

“Foi construída sem lugar para ratos. Toda uma parte nossa, pior, exatamente a que tem horror de ratos, essa parte não tem lugar em Brasília. Eles quiseram negar que a gente não presta. Construção com espaço calculado para as nuvens. O inferno me entende melhor. Mas os ratos, todos muito grandes, estão invadindo. Essa é a manchete invisível nos jornais. Aqui eu tenho medo. A construção de Brasília: a de um Estado totalitário....”.

21 de dezembro de 2015
Dorrit Harazim

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