"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

UMA CRISE FORJADA A FERRO E FOGO

Cada um tem a crise que merece. Ao que parece, a Europa estaria passando, neste exato momento, por uma "crise de imigração".

Em nome desta "crise", o continente que mais se beneficiou da imigração durante décadas desde o século 19, mandando contingentes enormes de trabalhadores pobres para a América, além de população para suas antigas colônias, tem ultimamente recebido imigrantes com bombas e internamento em campos.

Com lágrimas de silicone abaixo dos olhos, seus dirigentes agem como se seguissem esta frase primorosa de um antigo ministro francês, Michel Rocard: "Não podemos acolher toda a miséria do mundo".

Segundo tal raciocínio, infelizmente, os países de origem desses imigrantes, com suas elites dirigentes corruptas e seus arcaísmos, teriam produzido uma situação da qual a Europa não é nem responsável nem beneficiária.

Logo, não haveria muito o que se fazer a não ser deplorar o estado atual do curso do mundo.

Mas vejam que coisa interessante. Boa parte destes que batem à porta da Europa não são imigrantes, mas refugiados que fogem de situações de guerra ou da simples desagregação de seus países, como é o caso da Síria e da Líbia.

Essa desagregação é fruto direto, entre outras coisas, das intervenções desastrosas que EUA e Europa fizeram em países como Iraque, Afeganistão, Líbia, Mali. Talvez você se lembre como, em nome de supostas "armas de destruição em massa" que colocariam em risco o Ocidente, EUA e Inglaterra invadiram o Iraque, criando um espaço de anomia, caos e ressentimento que gerou monstruosidades como o Estado Islâmico.

O mesmo EI que atualmente amedronta os sírios à procura de refúgio em todas as partes do mundo (inclusive no Brasil), que recruta entre líbios cidadãos de um país que simplesmente não existe mais e foi objeto de intervenções militares ocidentais.

Seria interessante aos europeus começarem por se perguntar quanto lhes cabe na produção da dita miséria do mundo e o quanto tais levas de refugiados são sintoma de seus arroubos militaristas desastrados.

Eximir-se completamente da responsabilidade é tão desonesto quanto colocar toda responsabilidade sobre suas costas.

Mas há ainda um ponto fundamental. Os imigrantes atualmente são os verdadeiros proletários do capitalismo global. Sem garantias trabalhistas e sem defesa, cada vez mais espoliados de direitos, obrigados a viver em situações de trabalho degradado e brutalmente precário, são o exército de mão de obra barata que faz o resto de economia produtiva nesses países funcionar. São aqueles que não têm nada, que sequer são defendidos por sindicatos, que devem permanecer invisíveis.

De nada adianta a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) lembrar que a imigração tem impacto fiscal positivo nos países receptores ou, como disse seu secretário-geral, Ángel Gurría: "Os imigrantes são recurso, não problema" (embora tratar sujeitos como "recurso" já diga muita coisa).

Quanto mais os imigrantes sentirem-se amedrontados, mais fácil espoliá-los e jogá-los contra os trabalhadores nativos que ainda têm alguma garantia. Quanto mais eles servirem de bode expiatório da crise econômica, mais os verdadeiros responsáveis, ou seja, os banqueiros de olhos azuis da City, de Paris e de Frankfurt continuarão em paz.

No entanto, não seria incorreto dizer que o projeto capitalista atual é transformar todos nós em imigrantes, ou seja, em trabalhadores precários amedrontados, invisíveis e facilmente descartáveis.

Por isto, nossa sobrevivência passa pela defesa incondicional dos direitos destes que hoje são desprovidos de todo direito.

Diga-se de passagem, não é necessário ir muito longe. Se quisermos ter uma ideia desse processo, basta lembrarmos das levas de bolivianos trabalhando em condição sub-humana nas confecções de São Paulo. Pergunte-se o quanto setores do empresariado nacional se beneficiam da imigração precária e ilegal. Pergunte-se também sobre como tratamos os haitianos que procuram sobreviver fugindo de seu país em ruínas.

Há pouco vimos casos de haitianos vítimas de insultos racistas e violência na Baixada do Glicério, isso em nome de pretensamente "roubarem nossos empregos".

Aos que realmente se preocupam com "nossos empregos", melhor pararem de atirar em haitianos e se voltarem para quem realmente ganha, e muito, com a crise que destrói nossos empregos.



04 de setembro de 2015
Vladimir Safatle

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