Hoje vou falar de “fisiologia” – ups! – de “filosofia” (barata, claro) sobre as mutações que ocorrem em nossas cabeças sob a chuva de perversões, malfeitos, burrice, incompetência, sobre a vida brasileira.
Aí, faço as perguntas “metafísicas”: Quem somos nós? De onde viemos? Para onde vamos?
Em “A República”, Platão idealizava uma cidade, na qual dirigentes e guardiões representassem a encarnação da pura racionalidade, capazes de compreender todas as renúncias que a razão lhes impõe, mesmo quando duras. O egoísmo estaria superado, e as paixões, controladas. Os interesses pessoais se casariam com os da totalidade social. O príncipe filósofo seria a tipificação perfeita do governante terreno. Ou seja, tudo ao contrário do que temos hoje no poder.
Desculpem o “bode negro”, mas a situação já passou de todos os limites. (Pare por aqui, leitor amigo, se estiver deprimido, mas é que estamos diante do insolúvel).
Tudo que acontece se coagula, coalha como uma pasta, um brejo de não acontecimentos onde nossa vida flutua sem rumo. Somos tecnicamente uma “democracia”, que é vivida como porta aberta para oportunismos. Democracia no Brasil é uma ditadura de picaretas.
Parece acontecer muita coisa no país, mas nada de real está se concretizando, além do óbvio previsto: estouro das contas públicas, obras de pacotilha, empreguismo, ideologias ridículas e terceiro-mundistas.
Os escândalos “parecem” acontecimentos. Mas são justamente a resistência do secular patrimonialismo que defende nosso atraso com unhas e dentes, contra qualquer tentativa de modernização. E diante disso tudo não conseguimos fazer nada. Aumenta o sentimento de impotência. Certamente, nuvens negras se formam. Teremos algo torto, torvo. Como diziam as três bruxas de “Macbeth”: “Alguma coisa má vem pelo caminho”.
Um país paralisado na economia e na política não gera apenas fome ou injustiça social; gera uma degradação psíquica progressiva. A zona geral do país, debaixo desse governo desgovernado, está provocando um desvio forte na cabeça das pessoas. Nossos corações estão mais duros. Para sobreviver, ficamos mais cínicos e alienados. Irracionalismos raiam. Já pensamos: “Essa bosta não tem mais solução, não. Vou cuidar da minha vida. Danem-se! Só quero ver coisas bonitas...”
Mas que “coisas bonitas”? Cada vez mais, aceitamos o feio nas paredes, nas pichações imundas, nas ruas alagadas, nas paisagens destruídas, gente desesperada, malpaga, na miséria nos rostos, nas roupas, nos gestos, nos risos boçais. Estamos nos deformando física e psiquicamente. Não só por tragédias visíveis, como guerras ou catástrofes naturais; vivemos a tragédia do nada, a tragédia do retrocesso que vai nos reduzindo a meras anomalias. A principal anomalia é a crescente consciência de que o maior inimigo da governabilidade é o governo. Tudo se restaurou. O Brasil é um flashback, um filme rebobinado. Para haver acontecimentos, tem de haver uma normalidade a ser rompida. Mas nada acontece, pois a anormalidade ficou “normal”. No caos, não há eventos.
O governo está nas mãos de comunas incompetentes. Para os “comunas” clássicos, a vida real não é verdadeira. Sua missão é algures, mais além da vida “burguesa”. Pensam: “A vida como a conhecemos é uma mentira; logo, a verdade está onde ela não está”.
Se a verdade aparecesse em sua plenitude, as instituições cairiam ao chão. Por isso, o governo acha que é preciso proteger as mentiras para que a falsa verdade do país permaneça.
Desmoralizaram o escândalo, as indignações e a ética (essa palavra burguesa e antiga para eles)...
Surge também a recente permissividade irresponsável, a ética da não ética, desde que “assumida”. Pensam: “Tem mais é que mentir mesmo. Vou pegar propina, sim, todo mundo pega. Qual é? Senão, de que adianta ser político? Tem de sujar a mão”.
E diante dessa paisagem em ruínas, quais são as propostas críticas de que dispomos?
Bem, temos vários tipos de reações: a mais comum é um ódio irracional aos políticos, como se a solução fosse acabar com a política em geral.
Aí, em decorrência desse ódio, surge um desejo de autoritarismo, até uma saudade dos militares.
Temos também o discurso muito comum do “precisamos”, uma tosca imitação do “Poema da Necessidade”, de Carlos Drummond de Andrade:
“É preciso salvar o país,/ é preciso crer em Deus/ é preciso pagar as dívidas/ é preciso comprar um rádio/ é preciso esquecer fulana”.
Mas o país não é poesia; é uma prosa “escrita por idiotas, cheia de gritos e fúria significando nada”.
Os artigos e os ensaios falam: precisamos disso, precisamos daquilo, mas ninguém sabe como agir.
Outra reação é o discurso da melancolia teórica, a nostalgia por uma “pureza” perdida, as saudades de uma ilusão: a revolução fracassada no mundo todo. Para recuperar essa ilusão, topam tudo: calúnias, números mentirosos, alianças com a direita mais maléfica, tudo para manter o terrível “patrimonialismo de Estado” que eles acham que é o controle de uma sociedade de débeis mentais (que somos nós).
Temos também o amor ao simplismo: ou um socialismo impossível, ou um liberalismo delirante para acabar com o Estado.
Tudo, menos aceitarem que temos de abrir caminho para o óbvio: reduzir o Estado, lutar por um choque urgente de administração e reformas que nos tirem do buraco. Isso, jamais; vai contra a ideia de controle, tanto à direita como à esquerda, hoje tão unidas – Lênin e Sarney.
Parecem existir dois “brasis”: um Brasil roído por ratos políticos e outro Brasil povoado de anjos puros. E o fascinante é que são os mesmos homens. O Brasil está sofrendo por causa de um secular problema fisiológico (ups!) – isto é, filosófico: “o que é a Verdade?”.
18 de agosto de 2015
Arnaldo Jabor
Aí, faço as perguntas “metafísicas”: Quem somos nós? De onde viemos? Para onde vamos?
Em “A República”, Platão idealizava uma cidade, na qual dirigentes e guardiões representassem a encarnação da pura racionalidade, capazes de compreender todas as renúncias que a razão lhes impõe, mesmo quando duras. O egoísmo estaria superado, e as paixões, controladas. Os interesses pessoais se casariam com os da totalidade social. O príncipe filósofo seria a tipificação perfeita do governante terreno. Ou seja, tudo ao contrário do que temos hoje no poder.
Desculpem o “bode negro”, mas a situação já passou de todos os limites. (Pare por aqui, leitor amigo, se estiver deprimido, mas é que estamos diante do insolúvel).
Tudo que acontece se coagula, coalha como uma pasta, um brejo de não acontecimentos onde nossa vida flutua sem rumo. Somos tecnicamente uma “democracia”, que é vivida como porta aberta para oportunismos. Democracia no Brasil é uma ditadura de picaretas.
Parece acontecer muita coisa no país, mas nada de real está se concretizando, além do óbvio previsto: estouro das contas públicas, obras de pacotilha, empreguismo, ideologias ridículas e terceiro-mundistas.
Os escândalos “parecem” acontecimentos. Mas são justamente a resistência do secular patrimonialismo que defende nosso atraso com unhas e dentes, contra qualquer tentativa de modernização. E diante disso tudo não conseguimos fazer nada. Aumenta o sentimento de impotência. Certamente, nuvens negras se formam. Teremos algo torto, torvo. Como diziam as três bruxas de “Macbeth”: “Alguma coisa má vem pelo caminho”.
Um país paralisado na economia e na política não gera apenas fome ou injustiça social; gera uma degradação psíquica progressiva. A zona geral do país, debaixo desse governo desgovernado, está provocando um desvio forte na cabeça das pessoas. Nossos corações estão mais duros. Para sobreviver, ficamos mais cínicos e alienados. Irracionalismos raiam. Já pensamos: “Essa bosta não tem mais solução, não. Vou cuidar da minha vida. Danem-se! Só quero ver coisas bonitas...”
Mas que “coisas bonitas”? Cada vez mais, aceitamos o feio nas paredes, nas pichações imundas, nas ruas alagadas, nas paisagens destruídas, gente desesperada, malpaga, na miséria nos rostos, nas roupas, nos gestos, nos risos boçais. Estamos nos deformando física e psiquicamente. Não só por tragédias visíveis, como guerras ou catástrofes naturais; vivemos a tragédia do nada, a tragédia do retrocesso que vai nos reduzindo a meras anomalias. A principal anomalia é a crescente consciência de que o maior inimigo da governabilidade é o governo. Tudo se restaurou. O Brasil é um flashback, um filme rebobinado. Para haver acontecimentos, tem de haver uma normalidade a ser rompida. Mas nada acontece, pois a anormalidade ficou “normal”. No caos, não há eventos.
O governo está nas mãos de comunas incompetentes. Para os “comunas” clássicos, a vida real não é verdadeira. Sua missão é algures, mais além da vida “burguesa”. Pensam: “A vida como a conhecemos é uma mentira; logo, a verdade está onde ela não está”.
Se a verdade aparecesse em sua plenitude, as instituições cairiam ao chão. Por isso, o governo acha que é preciso proteger as mentiras para que a falsa verdade do país permaneça.
Desmoralizaram o escândalo, as indignações e a ética (essa palavra burguesa e antiga para eles)...
Surge também a recente permissividade irresponsável, a ética da não ética, desde que “assumida”. Pensam: “Tem mais é que mentir mesmo. Vou pegar propina, sim, todo mundo pega. Qual é? Senão, de que adianta ser político? Tem de sujar a mão”.
E diante dessa paisagem em ruínas, quais são as propostas críticas de que dispomos?
Bem, temos vários tipos de reações: a mais comum é um ódio irracional aos políticos, como se a solução fosse acabar com a política em geral.
Aí, em decorrência desse ódio, surge um desejo de autoritarismo, até uma saudade dos militares.
Temos também o discurso muito comum do “precisamos”, uma tosca imitação do “Poema da Necessidade”, de Carlos Drummond de Andrade:
“É preciso salvar o país,/ é preciso crer em Deus/ é preciso pagar as dívidas/ é preciso comprar um rádio/ é preciso esquecer fulana”.
Mas o país não é poesia; é uma prosa “escrita por idiotas, cheia de gritos e fúria significando nada”.
Os artigos e os ensaios falam: precisamos disso, precisamos daquilo, mas ninguém sabe como agir.
Outra reação é o discurso da melancolia teórica, a nostalgia por uma “pureza” perdida, as saudades de uma ilusão: a revolução fracassada no mundo todo. Para recuperar essa ilusão, topam tudo: calúnias, números mentirosos, alianças com a direita mais maléfica, tudo para manter o terrível “patrimonialismo de Estado” que eles acham que é o controle de uma sociedade de débeis mentais (que somos nós).
Temos também o amor ao simplismo: ou um socialismo impossível, ou um liberalismo delirante para acabar com o Estado.
Tudo, menos aceitarem que temos de abrir caminho para o óbvio: reduzir o Estado, lutar por um choque urgente de administração e reformas que nos tirem do buraco. Isso, jamais; vai contra a ideia de controle, tanto à direita como à esquerda, hoje tão unidas – Lênin e Sarney.
Parecem existir dois “brasis”: um Brasil roído por ratos políticos e outro Brasil povoado de anjos puros. E o fascinante é que são os mesmos homens. O Brasil está sofrendo por causa de um secular problema fisiológico (ups!) – isto é, filosófico: “o que é a Verdade?”.
18 de agosto de 2015
Arnaldo Jabor
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