Está na TV (ou estava até outro dia) uma campanha publicitária em que um automóvel promete entregar a revolução na garagem do freguês. Parece uma insanidade, mas o slogan é este mesmo: "A revolução na sua garagem". Na propaganda, o carro viaja no tempo e aparece em momentos históricos ditos revolucionários.
A Revolução Francesa é o primeiro deles, claro. Em câmera lenta, o SUV avança, com suas rodas de liga leve, sobre as ruas de Paris sob o olhar deslumbrado dos sans-culotte hipermaquiados, ensaiadinhos, sans-culotte hipsters, sans-culotte com sex-appeal, sans-culotte de haute couture. Entre as tomadas gerais da turba bastilhesca, a montagem vai entremeando closes do interior do veículo, cheio de recursos supostamente revolucionários, eles também, com sua utopia touch screen.
Passados uns poucos segundos, o mesmo automóvel, sempre limpíssimo, reluzente, impecável, cruza os séculos e, num átimo, salta da fúria incendiária dos jacobinos para o amor libertário dos hippies. Sempre em câmera lenta. Jovens cabeludos, mas bonitinhos, tomam a tela com suas celebrações lisérgicas.
Mais um corte e, depois de uma brevíssima escala na queda do Muro de Berlim, ninguém menos que Martin Luther King vira garoto-propaganda da fábrica japonesa (um garoto-propaganda post mortem, é verdade, mas ainda assim um garoto-propaganda). Ao fundo, a canção em inglês promete: "Chega de lágrimas, chega de medo". Até atingir o refrão em suave apoteose: "Revolution again".
Finalmente, o impassível SUV vai parar no solo da Lua, refletido no visor do capacete dos astronautas que por lá perambularam.
Dos delírios psicóticos típicos da nossa era, talvez nenhum se iguale ao discurso publicitário. Nele o culto da mercadoria alucina, endoida, surta, desconectado de qualquer princípio de realidade. O mecanismo é desbragadamente delirante, mas o que mais chama a atenção é que esse delírio parece ocorrer num espaço em que ele tem autorização para isso, quer dizer, num espaço em que ele tem permissão social para delirar o quanto quiser.
O consumidor da indústria automobilística sabe muito bem que o que se passa na tela é um faz de conta total. Ele seguramente não acredita que, ao comprar aquele automóvel, vá levar a revolução para a garagem. Imagine. O consumidor não acredita nisso, o publicitário sabe que o consumidor não acredita e o consumidor, em retorno, sabe que o publicitário sabe que ele não acredita. O que liga um ao outro com a força de um ímã imperioso não é credibilidade, crédito ou confiança; o que os une é uma cumplicidade da ordem fantasia. A publicidade dá a forma visível, ainda que absurda, às fantasias que tiranizam o consumo.
Por isso, para que possa cumprir essa função, a publicidade precisa desse espaço ritual, o espaço em que está autorizada a delirar à vontade. Em outras sociedades esse espaço costuma ocorrer nos ritos religiosos. Na nossa, o mesmo espaço está na publicidade. Fazer o quê? Quem nunca se sentiu VIP ao sacar um cartão de crédito que atire a primeira pedra. As mulheres que nunca experimentaram uma bolsa na frente do espelho (uma bolsa que deveria ser apenas uma sacola para carregar quinquilharias inúteis) que atirem a primeira pedra. Os homens que, ao volante de um quatro por quatro em pleno congestionamento, não fantasiam trafegar por um penhasco íngreme e publicitariamente desafiador que atirem a primeira pedra.
A propaganda do carro, porém, não virou artigo de jornal só porque ela promete uma doidice ao cliente (que vai comprá-la mesmo sabendo que aquilo não passa de uma rematada doidice). Nisso ela não é diferente das outras. O que mais interessa nesse caso é o modo como essa propaganda em especial sintetiza a ideia que temos de revolução. É verdade que muitas outras mercadorias prometem pequenas revoluções - o sabão em pó, o tecido, o tratamento médico, a peça de teatro, um ou outro partido político (sim, um partido na televisão se vende como mercadoria) -, mas aqui a mitologia da revolução invoca toda a história das sociedades democráticas. Não se trata de um conceito, mas de uma mitologia. Mitologia é a palavra.
Na publicidade do novo SUV, muito mais do que nas outras, a mitologia da revolução se revela uma mitologia burguesa. Esqueça a Revolução Soviética. Ela não aparece na TV.
A Revolução Francesa é o primeiro deles, claro. Em câmera lenta, o SUV avança, com suas rodas de liga leve, sobre as ruas de Paris sob o olhar deslumbrado dos sans-culotte hipermaquiados, ensaiadinhos, sans-culotte hipsters, sans-culotte com sex-appeal, sans-culotte de haute couture. Entre as tomadas gerais da turba bastilhesca, a montagem vai entremeando closes do interior do veículo, cheio de recursos supostamente revolucionários, eles também, com sua utopia touch screen.
Passados uns poucos segundos, o mesmo automóvel, sempre limpíssimo, reluzente, impecável, cruza os séculos e, num átimo, salta da fúria incendiária dos jacobinos para o amor libertário dos hippies. Sempre em câmera lenta. Jovens cabeludos, mas bonitinhos, tomam a tela com suas celebrações lisérgicas.
Mais um corte e, depois de uma brevíssima escala na queda do Muro de Berlim, ninguém menos que Martin Luther King vira garoto-propaganda da fábrica japonesa (um garoto-propaganda post mortem, é verdade, mas ainda assim um garoto-propaganda). Ao fundo, a canção em inglês promete: "Chega de lágrimas, chega de medo". Até atingir o refrão em suave apoteose: "Revolution again".
Finalmente, o impassível SUV vai parar no solo da Lua, refletido no visor do capacete dos astronautas que por lá perambularam.
Dos delírios psicóticos típicos da nossa era, talvez nenhum se iguale ao discurso publicitário. Nele o culto da mercadoria alucina, endoida, surta, desconectado de qualquer princípio de realidade. O mecanismo é desbragadamente delirante, mas o que mais chama a atenção é que esse delírio parece ocorrer num espaço em que ele tem autorização para isso, quer dizer, num espaço em que ele tem permissão social para delirar o quanto quiser.
O consumidor da indústria automobilística sabe muito bem que o que se passa na tela é um faz de conta total. Ele seguramente não acredita que, ao comprar aquele automóvel, vá levar a revolução para a garagem. Imagine. O consumidor não acredita nisso, o publicitário sabe que o consumidor não acredita e o consumidor, em retorno, sabe que o publicitário sabe que ele não acredita. O que liga um ao outro com a força de um ímã imperioso não é credibilidade, crédito ou confiança; o que os une é uma cumplicidade da ordem fantasia. A publicidade dá a forma visível, ainda que absurda, às fantasias que tiranizam o consumo.
Por isso, para que possa cumprir essa função, a publicidade precisa desse espaço ritual, o espaço em que está autorizada a delirar à vontade. Em outras sociedades esse espaço costuma ocorrer nos ritos religiosos. Na nossa, o mesmo espaço está na publicidade. Fazer o quê? Quem nunca se sentiu VIP ao sacar um cartão de crédito que atire a primeira pedra. As mulheres que nunca experimentaram uma bolsa na frente do espelho (uma bolsa que deveria ser apenas uma sacola para carregar quinquilharias inúteis) que atirem a primeira pedra. Os homens que, ao volante de um quatro por quatro em pleno congestionamento, não fantasiam trafegar por um penhasco íngreme e publicitariamente desafiador que atirem a primeira pedra.
A propaganda do carro, porém, não virou artigo de jornal só porque ela promete uma doidice ao cliente (que vai comprá-la mesmo sabendo que aquilo não passa de uma rematada doidice). Nisso ela não é diferente das outras. O que mais interessa nesse caso é o modo como essa propaganda em especial sintetiza a ideia que temos de revolução. É verdade que muitas outras mercadorias prometem pequenas revoluções - o sabão em pó, o tecido, o tratamento médico, a peça de teatro, um ou outro partido político (sim, um partido na televisão se vende como mercadoria) -, mas aqui a mitologia da revolução invoca toda a história das sociedades democráticas. Não se trata de um conceito, mas de uma mitologia. Mitologia é a palavra.
Na publicidade do novo SUV, muito mais do que nas outras, a mitologia da revolução se revela uma mitologia burguesa. Esqueça a Revolução Soviética. Ela não aparece na TV.
Os "revolucionários" supostamente "proletários" que me desculpem, mas a revolução sobrevive como um mito burguês. O próprio Karl Marx sabia disso, mais do que eu ou você. E bem antes de nós. Ele tinha 30 anos de idade, em 1848, quando publicou, em parceria com Friedrich Engels, de 28, o Manifesto Comunista, onde se lê: "A burguesia só pode existir com a condição de revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de produção e, com isso, todas as relações sociais. (...)
Essa subversão contínua da produção, esse abalo constante de todo o sistema social, essa agitação permanente e essa falta de segurança distinguem a época burguesa de todas as precedentes. Dissolvem-se todas as relações sociais antigas e cristalizadas, com seu cortejo de concepções e de ideias secularmente veneradas, as relações que as substituem se tornam antiquadas antes mesmo de ossificar-se. Tudo o que é sólido desmancha no ar".
Essas linhas não envelheceram. Revolucionária, subversiva é, e sempre foi, a burguesia, não o "proletariado". A banalização do mito da revolução em bordões publicitários sem pés nem cabeça também é obra da burguesia, que vive de profanar o que sacraliza. Hoje a mitologia da revolução só adquire sentido épico no discurso dos que esperam fazer acontecer a última de todas, depois da qual tudo será paz e previsibilidade.
As ironias da História são impiedosas. Uns compram a marca do automóvel. Outros, a marca da revolução. Entre uma e outra, parece não haver mais diferença de qualidade.
30 de abril de 2015
Eugênio Bucci
Essas linhas não envelheceram. Revolucionária, subversiva é, e sempre foi, a burguesia, não o "proletariado". A banalização do mito da revolução em bordões publicitários sem pés nem cabeça também é obra da burguesia, que vive de profanar o que sacraliza. Hoje a mitologia da revolução só adquire sentido épico no discurso dos que esperam fazer acontecer a última de todas, depois da qual tudo será paz e previsibilidade.
As ironias da História são impiedosas. Uns compram a marca do automóvel. Outros, a marca da revolução. Entre uma e outra, parece não haver mais diferença de qualidade.
30 de abril de 2015
Eugênio Bucci
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