País rico é país sem pobreza?
Nos últimos quatro anos, os brasileiros tiveram que conviver com a frase “país rico é país sem pobreza”. Ela esteve em toda logomarca, em toda propaganda do governo federal. Por isso é o caso de perguntar: é válida a afirmação do slogan de Dilma?
A princípio, é difícil não concordar com a frase. Mesmo se parte da população tiver picanha na mesa e iPhone no bolso, ainda estaremos mal se a outra parte seguir faminta. Em 2011, quando o governo lançou o slogan, houve quem reclamasse da obviedade da afirmação – é claro que país rico é país sem pobreza, disseram.
Mas a frase não é óbvia. Na verdade, ela esconde um problema fundamental: é muito difícil não haver pobres num país rico. Essa condição não é estável, pois países ricos atraem pobres. Um país rico e sem pobreza até é possível, mas somente se o mundo todo enriquecer ao mesmo tempo ou se impedirmos migrações erguendo muros e cercas nas fronteiras.
O problema fica claro se o leitor imaginar exatamente o que o slogan propõe, um país rico e sem pobreza. Digamos que, ao acordar amanhã de manhã, você percebe que tudo deu certo no Brasil.
O menor salário pago no mercado chega a 3 000 reais. Mesmo a turma do último tijolo da pirâmide social vive com alguma dignidade.
Não há favelas ou indigentes; não sobrou sequer um único sujeito que reutilize o copo de requeijão ou seque roupa atrás da geladeira. Incrível.
A alta de salários causa mudanças no estilo de vida dos brasileiros. Vagas em trabalhos menos produtivos que 3 000 reais por mês se extinguem. Uma família de classe média, que dispõe de apenas 900 reais para pagar alguém que limpe a casa, passe a roupa e passeie com o cachorro, terá de se virar com o serviço doméstico.
Mas 900 reais por mês é luxo em alguns países latino-americanos. Haitianos logo perceberão a demanda não atendida por empregos domésticos no Brasil e virão contentes trabalhar aqui.
Como demonstram os haitianos que já se mudaram ao Brasil, 900 reais para eles significa um ganho e tanto. Podem economizar todo mês o equivalente ao salário integral que ganhariam no Haiti – onde o salário mínimo, para quem não está entre os 40% de desempregados, é de 13 reais por dia.
Acontece assim o jogo preferido dos economistas: o jogo de soma diferente de zero. No futebol ou no pôquer, a soma dos resultados é nula.
Um time precisa perder para o outro ganhar. Quem tem duas damas no pôquer perde as fichas para o sortudo que tirou uma trinca de setes. Não é assim nos acordos voluntários da economia.
As fichas se multiplicam; todos voltam para casa com um pote maior. Você e o haitiano jogam. E os dois ganham.
A chegada em massa de haitianos, ainda maior que a atual, faria bem a eles e às famílias brasileiras que os contratariam, mas há uma consequência. Eles trariam pobreza para dentro das linhas imaginárias brasileiras.
Alguns dos recém-chegados morariam em cortiços com cinco pessoas no mesmo quarto. Outros, para economizar no transporte, montariam casebres em terrenos próximos à casa de brasileiros enriquecidos, criando cenas tocantes de contraste.
Em pouco tempo, não seríamos mais um país rico e sem pobreza.
Os jornais mostrariam fotos de gente pobre no Brasil, e essas imagens circulariam pelo mundo. Os políticos da oposição alardeariam dados sobre a péssima qualidade de vida dos novos moradores que, segundo eles, seriam explorados pelas famílias de classe média. Ainda que todos os pobres envolvidos na história tivessem melhorado de situação.
Quanto esse exercício de imaginação explica a realidade brasileira? Um bocado. Muita gente entristece diante da desigualdade sem notar que aquelas pessoas estão numa situação melhor que no passado. É o caso da famosa foto acima, da favela de Paraisópolis ao lado de apartamentos de luxo do Morumbi.
Quando livros didáticos ou provas de vestibular escolhem essa imagem para retratar a desigualdade social – e fazem isso com frequência –, comparam a riqueza dos apartamentos com a miséria da favela.
Mas a comparação mais adequada é dos moradores da favela hoje e no passado, antes de mudarem para a metrópole.
“A pobreza urbana não deveria ser comparada à riqueza urbana”, diz o economista Edward Glaeser, professor de Harvard e o mais celebrado especialista em economia urbana dos Estados Unidos.
“As favelas do Rio de Janeiro parecem terríveis se comparadas a bairros prósperos de Chicago, mas os índices de pobreza no Rio são bem menores que no interior do Nordeste brasileiro.”
Por essa nova comparação, a famosa foto da desigualdade social mostra uma excelente notícia. Quem mora em Paraisópolis vive muito melhor do que se tivesse permanecido no sertão nordestino, nas lavouras de boias-frias do Paraná ou entre os escombros de Porto Príncipe.
Não importa se a miséria está mais aparente ou mais próxima; o principal é que para os miseráveis ela tenha diminuído. Glaeser arremata:
A pobreza urbana não deveria envergonhar as cidades. As cidades não criam pobres. Elas atraem pobres. Elas atraem pobres justamente porque fornecem o que eles mais precisam – oportunidade econômica.
Esse raciocínio vale não só para cidades, mas para países. Mesmo se enriquecer, o Brasil jamais será um país sem pobreza. E é bom para os pobres que seja assim.
04 de dezembro de 2014
Leandro Narloch
A princípio, é difícil não concordar com a frase. Mesmo se parte da população tiver picanha na mesa e iPhone no bolso, ainda estaremos mal se a outra parte seguir faminta. Em 2011, quando o governo lançou o slogan, houve quem reclamasse da obviedade da afirmação – é claro que país rico é país sem pobreza, disseram.
Mas a frase não é óbvia. Na verdade, ela esconde um problema fundamental: é muito difícil não haver pobres num país rico. Essa condição não é estável, pois países ricos atraem pobres. Um país rico e sem pobreza até é possível, mas somente se o mundo todo enriquecer ao mesmo tempo ou se impedirmos migrações erguendo muros e cercas nas fronteiras.
O problema fica claro se o leitor imaginar exatamente o que o slogan propõe, um país rico e sem pobreza. Digamos que, ao acordar amanhã de manhã, você percebe que tudo deu certo no Brasil.
O menor salário pago no mercado chega a 3 000 reais. Mesmo a turma do último tijolo da pirâmide social vive com alguma dignidade.
Não há favelas ou indigentes; não sobrou sequer um único sujeito que reutilize o copo de requeijão ou seque roupa atrás da geladeira. Incrível.
A alta de salários causa mudanças no estilo de vida dos brasileiros. Vagas em trabalhos menos produtivos que 3 000 reais por mês se extinguem. Uma família de classe média, que dispõe de apenas 900 reais para pagar alguém que limpe a casa, passe a roupa e passeie com o cachorro, terá de se virar com o serviço doméstico.
Mas 900 reais por mês é luxo em alguns países latino-americanos. Haitianos logo perceberão a demanda não atendida por empregos domésticos no Brasil e virão contentes trabalhar aqui.
Como demonstram os haitianos que já se mudaram ao Brasil, 900 reais para eles significa um ganho e tanto. Podem economizar todo mês o equivalente ao salário integral que ganhariam no Haiti – onde o salário mínimo, para quem não está entre os 40% de desempregados, é de 13 reais por dia.
Acontece assim o jogo preferido dos economistas: o jogo de soma diferente de zero. No futebol ou no pôquer, a soma dos resultados é nula.
Um time precisa perder para o outro ganhar. Quem tem duas damas no pôquer perde as fichas para o sortudo que tirou uma trinca de setes. Não é assim nos acordos voluntários da economia.
As fichas se multiplicam; todos voltam para casa com um pote maior. Você e o haitiano jogam. E os dois ganham.
A chegada em massa de haitianos, ainda maior que a atual, faria bem a eles e às famílias brasileiras que os contratariam, mas há uma consequência. Eles trariam pobreza para dentro das linhas imaginárias brasileiras.
Alguns dos recém-chegados morariam em cortiços com cinco pessoas no mesmo quarto. Outros, para economizar no transporte, montariam casebres em terrenos próximos à casa de brasileiros enriquecidos, criando cenas tocantes de contraste.
Em pouco tempo, não seríamos mais um país rico e sem pobreza.
Os jornais mostrariam fotos de gente pobre no Brasil, e essas imagens circulariam pelo mundo. Os políticos da oposição alardeariam dados sobre a péssima qualidade de vida dos novos moradores que, segundo eles, seriam explorados pelas famílias de classe média. Ainda que todos os pobres envolvidos na história tivessem melhorado de situação.
Quanto esse exercício de imaginação explica a realidade brasileira? Um bocado. Muita gente entristece diante da desigualdade sem notar que aquelas pessoas estão numa situação melhor que no passado. É o caso da famosa foto acima, da favela de Paraisópolis ao lado de apartamentos de luxo do Morumbi.
Quando livros didáticos ou provas de vestibular escolhem essa imagem para retratar a desigualdade social – e fazem isso com frequência –, comparam a riqueza dos apartamentos com a miséria da favela.
Mas a comparação mais adequada é dos moradores da favela hoje e no passado, antes de mudarem para a metrópole.
“A pobreza urbana não deveria ser comparada à riqueza urbana”, diz o economista Edward Glaeser, professor de Harvard e o mais celebrado especialista em economia urbana dos Estados Unidos.
“As favelas do Rio de Janeiro parecem terríveis se comparadas a bairros prósperos de Chicago, mas os índices de pobreza no Rio são bem menores que no interior do Nordeste brasileiro.”
Por essa nova comparação, a famosa foto da desigualdade social mostra uma excelente notícia. Quem mora em Paraisópolis vive muito melhor do que se tivesse permanecido no sertão nordestino, nas lavouras de boias-frias do Paraná ou entre os escombros de Porto Príncipe.
Não importa se a miséria está mais aparente ou mais próxima; o principal é que para os miseráveis ela tenha diminuído. Glaeser arremata:
A pobreza urbana não deveria envergonhar as cidades. As cidades não criam pobres. Elas atraem pobres. Elas atraem pobres justamente porque fornecem o que eles mais precisam – oportunidade econômica.
Esse raciocínio vale não só para cidades, mas para países. Mesmo se enriquecer, o Brasil jamais será um país sem pobreza. E é bom para os pobres que seja assim.
04 de dezembro de 2014
Leandro Narloch
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