"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

sexta-feira, 16 de maio de 2014

BOLADAS

Criamos uma futebologia que, equilibradamente, reúne teoria e prática

Em vésperas de Copa do Mundo que, ouço dizer, não é mais nossa, vale dar algumas boladas sobre o football — esse esporte que, roubado da Inglaterra, virou um brasileirismo.

Com ele, criamos uma futebologia que, equilibradamente, reúne teoria e prática. Temos os comentaristas, capazes de invocar jogos e jogadas memoráveis — “gols de placa’’ ou erros clamorosos; e times de ex-jogadores e árbitros proporcionando uma visão de “dentro” porque “falar (e criticar) é fácil”, mas “fazer (ou governar) é difícil”.

Atendida essa brasileiríssima premissa, nossa futebologia tem uma poética e uma álgebra. A poética aborda o lado imprevisível; a álgebra — que se concentra na tática e na estratégia, e atua tal como eu fazia com o meu time de botão — segue tão indômita quanto a economia sobre os encadeamentos prováveis da vitória.

Mas, como vitória e derrota são no esporte e no futebol parte da mesma moeda, a futebolística tem a capa de uma disciplina exata e o conteúdo de um sujeito diante de uma mesa de jogo com o coração na mão e as mãos geladas torcendo para que caia o número jogado...

É revelador que o futebol seja um “jogo”, e não uma partida ou match. Uma partida está mais para o lado de um encontro de iguais do que um “jogo”, onde fatores imponderáveis intervêm.

Como brasileirismo, o futebol é um escudo de autoafirmação com uma ambiguidade típica: é algo que praticamos com excelência mas que não podemos prever o resultado.
Trata-se de mais um traço da nossa proverbial duplicidade: somos os melhores do mundo mas nem sempre podemos provar nossa excelência.
Ela não é precisa e volta a nos relacionar com o imponderável que aumenta a popularidade do futebol, tornando-o tanto sintoma quanto um esporte e indústria de massa. Quando ganhamos, o mundo vai bem; quando perdemos, viramos desgraçados.

Uma vez ouvi a história de um grande jogador de futebol, um goleador imbatível com um nome dissilábico — talvez Mimi, Zezé ou Mumu — cuja mulher o traía. Era atacante forte.

Um cavalo, como se dizia naquele tempo em que os brasileiros eram quase anões. A mulher era bonita e exibicionista. “Meu marido é artilheiro, mas não faz gols nimim”, lamuriava quando bebia uns chopes. Logo um entregador de lavanderia (o goleador só andava de ternos de linho cuja brancura tinha o ar da neve que não se via no Brasil) começou a goleá-la.

Enquanto o craque deleitava os teóricos da futebologia fazendo gols em campo, o amante metia quatro ou cinco na mulher. Um dia, porém, baixou uma dúvida: e se fosse descoberto? “Ele te mataria a pontapés!”, disse a musa invicta do campeão. “Então, vamos nos encontrar na hora do jogo. Solução perfeita, porque ninguém — exceto os deuses — pode estar em dois lugares ao mesmo tempo e em 90 minutos, mais as preliminares ritualísticas das entrevistas, rapapés, fotografias e voltas olímpicas, teremos não só o tempo do amor, mas a garantia de um adultério dantesco e capaz de levar-nos ao inferno.”
Devo dizer que a mulher havia lido um livreto financiado pelo Ministério do Povo chamado “Dante para idiotas”, no qual o bardo era simplificado.

Então combinamos assim, disse eu a mim mesmo quando, em 1982, publiquei “Universo do futebol’’— graças a Carlos Roberto Maciel Levi e Max Perlingeiro —, no qual reuni ensaios de pioneiros do estudo desse esporte como Luiz Felipe Baeta Neves, Simoni Guedes e Arno Vogel.

Quando terminava minha contribuição a esse livro, que hoje faz 32 anos, num tempo em que havia mais futebol do que futebologia, mercadologia e “demissociologia”, lembrei-me do caso acima.
Descobri, então, que o corno-goleador sabia de tudo, mas ficava calado porque, quando não fazia gols, era compensado pelo seu duplo que produzia escores sensacionais.

Hoje, quando vejo a nossa contumaz ambiguidade no atraso dos estádios e na ausência de infraestrutura e segurança, gerando protestos que usam a Fifa como o bode expiatório para desmascarar a insinceridade do governo, penso nessa duplicidade do futebol e da vida. Sempre exata de um lado e imprevisível de outro.

O nosso amado e puro futebol, roubado dos ingleses imperialistas, brancos azedos e civilizados que sempre faziam gols, transformou-se numa poderosa arma de protestos capitais contra a costumeira corrupção.
E aí eu pergunto se o futebol é mesmo o ópio do povo. Pois tal como o goleador, ele tem dois lados. Ele joga plausivelmente no campo, mas não deixa de pensar na liberdade imprevisível da mulher amada.
 
16 de maio de 2014
Roberto Damatta, O Globo

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