-
Em 12 anos de escravidão, Steve McQueen reafirma sua conhecida aptidão para encenações de violência explícita, já demonstrada em Hunger, de 2008, e Shame, de 2011. Voltando a transformar a crueldade em espetáculo, ele parte do relato memorialístico contundente, mas antes sóbrio, de Solomon Northup e faz um filme obsceno no qual pretensamente denuncia um crime, lançando mão do mesmo instrumento dos criminosos – a brutalidade.
É falacioso usar um filme apenas de pretexto para tratar do seu tema ou assunto, deixando de lado aspectos tão essenciais quanto sua linguagem e estilo de encenação. E quando o tema é deliberadamente ambíguo, como em 12 anos de escravidão – o filme trata de um caso de injustiça individual e não da escravidão –, é grande a probabilidade de ser mal compreendido e tomado pelo que não é. Equívoco induzido, no Brasil, pela tradução do título original (12 years a slave), cujo sentido literal é Escravo por 12 anos.
Falta ao filme 12 anos de escravidão o que foi assinalado como sendo “um dos aspectos mais surpreendentes da narrativa de Northup: sua clareza sobre o funcionamento da escravidão como um sistema.” (“12 Years a Slave: the book behind the film”, Sarah Churchwell, The Guardian, 10 de janeiro de 2014).
Seguindo à risca o modelo hollywoodiano, o filme dirigido por Steve McQueen, nas palavras de Eric Foner, professor da Columbia University, sofre pela necessidade de “ter um herói ou uma figura [central]. É por isso que os historiadores tendem a ser um tanto céticos em relação à história feita por Hollywood, por que perde-se o sentido do grupo ou massa”.(“An Essentially American Narrative, A Discussion of Steve McQueen’s Film ‘12 Years a Slave’”, Interviews by Nelson George, The New York Times, 11 de outubro de 2013)
O primarismo de 12 anos de escravidão desconsidera, como escreveu Sarah Churchwell no Guardian, que “escravos não precisam ser santos ou seus senhores monstros para que a escravidão seja uma atrocidade: nossa história continuará aprisionada em simplidicações piedosas enquanto não pudermos admitir que um homem pode ser um trapaceiro e ainda assim ter sido martirizado por um sistema bárbaro.”
A versão filmada de 12 anos de escravidão renega um aspecto central da narrativa de Solomon Northup. Conforme Sarah Churchwell indica no artigo do Guardian, “a escravidão ‘brutaliza’ senhor e escravo igualmente; é por isso que os senhores de escravos eram tão monstruosos, mesmo contrariando seus próprios interesses financeiros […] Não é culpa do senhor de escravos ser cruel mas do sistema no qual ele vive. […] Eles não são crueis por natureza. É a influência do sistema iníquo que forja um espírito insensível e cruel.”
Escrevendo no New York Times, depois de ter visto duas vezes 12 anos de escravidão, Stanley Fish, professor de direito e de teoria literária americana, foi ao ponto: “[...] o filme é basicamente uma antologia de surras e chibatadas, cada uma mais violenta que a anterior, culminando em um momento de profundo horror quando o herói-vítima – Solomon Northup, um homem negro livre raptado e escravizado – pega ele mesmo o chicote e aplica chicotadas que esfolam a pele de uma menina (Patsey) cujo único crime é querer um pedaço de sabão. É como os filmes de efeitos especiais que são lançados todo dia, nos quais há uma progressão do caos: corpos e prédios explodidos de maneiras cada vez mais engenhosas levando a uma cena final em que tudo à vista é explodido para o reino que virá (kingdom come). Em 12 anos de escravidão a escalada não é técnica – realismo brutal, e não pirotecnia de video-game, é o caso – mas um aumento no nível de dor tanto para os personagens, quanto para a plateia.”
Steve McQueen alegaria, com razão, que a cena de Northup chicoteando Patsey está nas memórias de Northup. De fato, está, mas seu impacto, embora comparável ao do filme, não é o mesmo dada a diferença entre encenar com imagens e descrever em palavras: “[Epps, o proprietário da fazenda] pegou um chicote pesado, e pondo-o nas minhas mãos, mandou que eu a chicoteasse. Por mais desagradável que fosse, fui compelido a obedecê-lo. Em nenhum lugar, na face da terra, eu me arrisco a dizer, uma exibição tão demoníaca como a que se seguiu foi testemunhada.” Northup conta ter dado, primeiro, trinta chicotadas, e mais dez ou quinze por insistência de Epps, antes de se recusar a prosseguir, quando “as costas dela estavam cobertas de longos lanhos dos açoites, cruzando uns com os outros como uma rede.”
A veracidade dos fatos narrados por Solomon Northup foi comprovada por dois historiadores – Sue Eakin e David Fiske, em livros diferentes que atestaram também a significativa contribuição de Northup na redação do livro, escrito com David Wilson (um homem branco), e que se tornou um best-seller quando foi publicado em 1853.
A crítica generalizada feita à intervenção salvadora do carpinteiro canadense Bass, graças ao qual Solomon Northup acaba sendo libertado, além da inadequação da escolha de Brad Pitt para o papel, só se sustenta por ter sido dado tratamento episódico no filme ao que nas memórias tem desenvolvimento extenso. Restrições ao fato do “salvador” ser um homem branco são descabidas, uma vez que Bass era, de fato, branco, e Northup não deixa dúvida quanto à sua importância: “Devo a ele uma dívida de gratidão imensurável. Se não fosse por ele, com toda probabilidade, eu teria acabado meus dias escravizado. Ele foi meu salvador – um homem cujo verdadeiro coração transbordava de emoções nobres e generosas. Até o último momento da minha existência lembrarei dele com sentimentos de gratidão.”
14 de março de 2014
Eduardo Escorel
Revista Piauí
Eduardo Escorel
Revista Piauí
Nenhum comentário:
Postar um comentário