"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

ESSE TANGO EU JÁ OUVI (E VIVI)


Sucessivos governos argentinos foram incapazes de acabar com o esporte nacional: comprar dólares


Quando me instalei em Buenos Aires, como correspondente da Folha, no início de 1981, o dólar estava congelado e, por isso, era o único produto barato em um país de inflação tresloucada, conduzido por uma ditadura genocida.

Ao tentar matricular as crianças (três) na escola, verifiquei que o custo da matrícula, dos uniformes (sim, era obrigatório à época) e do material escolar comeria todo o meu salário. Todinho. Não sobraria nem para uma miserável empanada.

Liguei para Boris Casoy, meu chefe à época, e lhe disse que voltaria ao Brasil no dia seguinte pela óbvia razão de que não dava para viver assim. Boris dobrou meu salário.

Mas, ainda assim, só podíamos comprar três casquinhas de sorvete para dividir pelos cinco membros da família.

O dia de receber o salário, em vez de ser de festa, era de tormento. Não dava para ficar com um bolo de belas notas coloridas de peso, que, ao fim do mês, valiam a metade ou menos. Era preciso correr para trocar por dólares.

Passava a manhã na rua San Martín, então concentração de casas de câmbio, para ver qual delas oferecia a melhor cotação para a compra de dólares.

Era o esporte nacional. Uma vez, um grupo de estudantes juntou suas economias, foi à San Martín, escolheu o melhor preço para o dólar, trocou seus pesos e sentou-se a uma mesa de café próximo para esperar. De vez em quando, um deles levantava e fazia uma incursão pelas casas de câmbio para ver a cotação da moeda americana. Até que decidiram retrocar os dólares por um peso já mais fraco, ganhando uma "mesada" na operação sem fazer força.

Três meses depois, mudou o general-presidente e, com ele, o ministro da Economia, que convocou uma entrevista coletiva.

Na hora em que anunciou uma desvalorização de 30% do peso, os correspondentes estrangeiros quase jogamos para o alto nossos cadernos de anotação para festejar o começo do fim do sufoco.

Era só o começo mesmo. O primeiro apartamento que alugamos em Buenos Aires, velho, sem iluminação natural na cozinha, dois dormitórios (um dos filhos dormia na sala), custava US$ 1.000. No fim de nosso período lá, três anos depois, morávamos em um apartamento de quatro dormitórios, novo e iluminadíssimo, por um terço do custo do primeiro (exatamente US$ 340).

Conto essa história para que o leitor, que recebeu no fim de semana boas análises técnicas sobre a crise argentina, entenda como é a coisa na prática, ao rés-do-chão.

Trinta anos depois, comprovo que o argentino continua tratando o dólar como o seu "verdadeiro metal precioso", como escreveu o sociólogo Eduardo Fidanza, especialista em opinião pública. Nem a ditadura, nem a democracia, nem governos liberais, nem governos populistas conseguiram devolver a confiança do público na moeda nacional. Esse é o real fundo da crise.

Nesse ponto, o Brasil descolou-se da Argentina. Tem fraquezas que poderiam levar ao contágio, que até está ocorrendo com outros emergentes, mas, pelo menos, o real não queima nas mãos.

 
28 de janeiro de 2014
Clovis Rossi, Folha de SP

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