'Há várias formas para um líder fazer notar sua capacidade de de orientar e de comandar', diz, em artigo, o ex-presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso
RIO - O mundo inteiro chora a morte de Nelson Mandela. Para nós, brasileiros, sua ação representou, além de um apelo forte à consolidação de uma nação independente, a luta pela liberação do ser humano das amarras, tanto do racismo, como da revanche. Sua vida foi envolta por uma aura de grandeza, de decência e de humildade. Ninguém definiu melhor a relação entre Mandela e seus contemporâneos que sua conterrânea Manphela Ramphele: “Não foi ele quem buscou a glória, foi esta que o procurou”.
Encontrei-me com Mandela em várias oportunidades. A primeira, em 1995, dois anos depois de ele ter sido eleito presidente da África do Sul. A última, em maio de 2010. Mandela formara um grupo, o Elders — antigos líderes dispostos a continuar pelejando pela paz e pela decência no mundo — e teve a generosidade de me incluir entre os dez escolhidos. Em nosso último encontro, de maio passado, em Johannesburgo, embora já fragilizado pela idade e pelas marcas de tantos anos de lutas e sofrimento, jantou conosco. Continuava lúcido e atento às tragédias do mundo, principalmente, às que ocorriam na África.
Sua simplicidade e, ao mesmo tempo, a imantação que decorria de sua presença deixaram marcas fortes nos que conviveram com ele. Há várias formas para um líder fazer notar sua capacidade de orientar e de comandar. Alguns a demonstram com energia e denodo. Outros com certa demagogia e proximidade com os comandados. Há ainda os que utilizam a persuasão intelectual-emotiva das palavras para serem ouvidos. Mandela dispensava tudo isso: sua presença de homem esguio, elegante, suave, com voz entre rouca, estridente, marcante, dava a seus gestos e a suas palavras uma quase santidade. Por trás de cada movimento seu, sem que ele precisasse recordar, vinha à memória dos interlocutores — fosse uma pessoa ou uma multidão — a história de um lutador que não fugiu aos desafios da luta armada, de um advogado que abraçava as causas dos humilhados e dominados, do prisioneiro que se igualava aos demais no trabalho pesado de quebrar pedreiras, do político que, ainda não liberado, se recusava a compromissos, mas que, tão logo teve a voz livre, pregou a reconciliação sem mentiras.
Era tão forte a impressão de quase sobre-humano que Mandela deixava entre os que com ele conviviam, ouviam ou sabiam de suas ações e palavras que ele próprio se assustou. No último livro que publicou, “Conversations with myself” (que tive a honra de receber das mãos de Graça Machel, com dedicatória do autor, quando ela veio a São Paulo inaugurar, no ano passado, o centro que leva o nome de quem foi sua amiga e minha mulher, Ruth Cardoso), Mandela adverte para os erros que cometeu e recusa o altar em que quase todos o colocaram: “O problema, naturalmente, é que muitos homens de sucesso se dobram a algumas formas de vaidade. Chega um momento de suas vidas em que consideram aceitável serem egoístas e vangloriam-se de suas realizações diante do público em geral como se fossem únicas” (p. 6).
Contrapondo-se a esta atitude, Mandela deixa uma lição diferente. Há um estágio na vida no qual cada reformador social se baseia, fundamentalmente, em plataformas tonitruantes como um modo de se desculpar dos fragmentos de informação mal digeridas que acumulou em sua mente; trata-se de tentativas para “impressionar as multidões, em vez de começar pela simples e calma exposição de ideias e princípios cuja verdade universal se faz evidente pela experiência pessoal e o estudo profundo” (p. 41).
Acrescenta ele, “fui vítima das fraquezas de minha geração, não uma, mas centenas de vezes. Devo ser franco e dizer-lhes que, ao olhar para o passado e ver meus primeiros escritos e discursos, fico chocado por seu pedantismo, artificialidade e falta de originalidade. A urgência de impressionar e de propagandear é claramente perceptível neles” (p. 45).
Na maturidade, declarou com serenidade: “Eu não desejo incitar as multidões. Desejo que elas entendam o que estamos fazendo; desejo incutir-lhes o espírito da reconciliação” (p. 326).
Não é preciso acrescentar mais nada para registrar a grandeza de quem soube mostrar a seu povo e a todos nós o caminho da sinceridade, da fraternidade e da luta contínua pela igualdade que a simplicidade só faz enaltecer. Choremos sua morte; guardemos seu testemunho e suas lições.
06 de dezembro de 2013
Fernando Henrique Cardoso é sociólogo e ex-presidente da República (1995-2002)
O Globo
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