Que estamos vivendo uma época de nivelamento por baixo, isto não é novidade. Os jornais, em vez de manter uma linguagem culta e precisa, optam pelo genérico e ao alcance de todos.
Em vez de excitar o leitor a buscar o sentido de um conceito mais complexo, preferem respeitar seu patamar de ignorância e dispensá-lo da leitura de um dicionário. Não sei se já foi feita alguma pesquisa sobre o assunto, mas duvido que no Brasil alguém precise conhecer mais de quinhentas palavras para ler as notícias da imprensa diária. Televisão, nem falar. Orangotango que conseguir dominar a proeza de entender cem palavras, já domina o universo da rede Globo.
Ora, lidar com quinhentas palavras pouco ou nada nos distingue de nosso primo, o Pithecanthropus erectus. Pode ser suficiente para candidato a deputado, animador de auditório, campeão de futebol ou de fórmula 1. Ou fórmula 2. Aliás, já começo a falar de coisas que não entendo, até hoje não sei qual é a diferença entre uma e outra. Ou melhor, talvez saiba. De meus dias de Florianópolis, fui contemplado pela ingrata epifania: uma polui mais, sonoramente, que a outra. Qual polui mais ou menos, não sei. Deixo a resposta a esses analfabetos de final de milênio, que já se julgam eruditos mal conseguem pronunciar um quadrissílabo tipo cilindradas.
Este reducionismo, rumo ao primo aquele que até hoje anda pendurado pelo rabo nas árvores, parece estar contaminando até mesmo este jornal. Outro dia, nesta página, falei em Cérbero. Foi overdose, as sinapses de meu revisor entraram em curto circuito e ele preferiu, por via das dúvidas, grafar cérebro. Acontece que Cérbero é Cérbero e cérebro é mercadoria cada vez mais escassa. Outro dia, escrevi que a avenida Berrini, em São Paulo, era uma contrafação de La Défense, em Paris. Parece que a palavra já não tem registro no cérebro de quem é pago para bem grafá-las. Saiu contratação. Outra vez, falei na polícia turística da Grécia. Não deu outra, o redator grafou política turística. Ainda no Egeu: certa vez falei na cidade cultual de Delos. Claro que o redator corrigiu para cidade cultural. Fora outras que já nem lembro. Mas não era disto que pretendia falar.
Minto. Era disto mesmo que estava falando, desta tendência cada vez mais freqüente no jornalismo contemporâneo de descer ao nível do analfabeto, ao invés de tentar erguê-lo ao nível da língua culta. Orwell já analisou em profundidade o assunto em 1984, quando criou a novilíngua, que aliás não foi criação sua, mas dos finados (perdão, leitor!) comunossauros. Pois esta saudade de selva e cachos de banana, ainda embutida nos genes do homem contemporâneo, manifestou-se agora com vigor em uma das últimas determinações da alcaiceria de São Paulo. Os cardápios da capital devem agora ter seus pratos traduzidos ou explicados em português.
O que me faz voltar a Florianópolis e à praça XV. O penúltimo prefeito, ilustre representante da cultura ilhoa, não conseguia se fazer entender quando falava em praça Xivi. Uma vez esclarecido, não teve dúvidas. Baixou bando: ficam proibidos, a partir de agora, números romanos na designação de ruas ou praças. Para contentamento geral da nação, digo, da ilha, a praça Xivi agora é praça 15. Volto a São Paulo. Vai ver que a Erundina andou se atrapalhando em algum restaurante francês e decidiu seguir o safado exemplo do prefeito florianopolitano.
Acontece que gastronomia é um nível superior de cultura. Comer, todos comem. Até o faminto come. Se não comesse, não seria faminto, mas defunto. Comer é um imperativo orgânico, que gere a agenda tanto da ameba quanto a do Lula. Saber comer já é outro assunto. Quanto a comer, não para encher a pança, mas para satisfazer o palato, bom, isso é privilégio de quem já não tem a premência metabólica da ameba ou do classe média inculto.
Em Florianópolis, cheguei a fazer campanha, não para que os cardápios fossem traduzidos, mas que pelo menos fossem grafados corretamente. Pois restaurador que não sabe escrever o que serve, não tem a mínima idéia do que está servindo. Lá eu vi, juro que vi, filé à guarani por filé garni. Vi camarão à ilha-e-óleo por camarão ao alho-e-óleo. Eu não pedia tradução. Fossem os pratos grafados com acerto e servidos honestamente, já me dava por contente.
Sem falar que culinária é geralmente intraduzível. Churrasco, por exemplo. Americanos ou europeus podem achar que entenderam o prato ao pedir barbecue. Mas o churrasco mesmo é outra coisa. Mocotó ou dobradinha podem lembrar as trippes à Caen, mas com elas nada têm a ver. Cassoulet não é feijoada e duvido que alguém possa traduzir paella, sem pelo menos usar uma dez palavras. A intenção da prefeitura paulistana parece ser dicionarizar o cardápio. Melhor faria se nos explicasse porque desvia verbas da merenda escolar para financiar congressos da CUT.
Pois é o que andam fazendo os salvadores da humanidade, cá em São Paulo. Para proclamar ao mundo que as criancinhas do Brasil passam fome, consomem a verba destinada a alimentar crianças que passam fome, na organização de congressos onde denunciam a fome das criancinhas. Mas falava no nivelamento por baixo. Na Bahia, estado que nos legou dois dos maiores embustes nacionais - o Rui Barbosa e o Jorge Amado - a prefeitura sancionou lei que proíbe nomes estrangeiros em prédios residenciais e comerciais em Salvador. Parece que para evitar que o cidadão médio confunda, por exemplo, Bois de Boulogne com bois da Bolonha. Avante, baianada. Mais um esforço e este país ainda vira uma imensa Santa Catarina!
Que estamos rumando ligeirinho à noite dos tempos, disto não tenho dúvida alguma. Outro dia, a respeitável Folha de São Paulo cometeu uma gafe que é sinal dos tempos. A notícia era sobre Malcolm X, o líder terrorista negro aquele que só tem mídia entre os botocudos, pois nossas esquerdas ainda sofrem da doença infantil do anti-americanismo. Pois bem, a redatora, sem saber do que falava e tentando se fazer entender junto ao leitor, não teve dúvidas: tascou Malcolm 10. Cá entre nós, Praça Xivi tem mais charme.
Cardápios, era disto que eu falava. Em Madri, lá pelas dez da madrugada, eu adorava começar o dia tomando um carajillo con porras. Nestas circunstâncias, até concordo com a alcaidessa, é melhor traduzir: café batido com conhaque e uma espécie de biscoito que na Espanha se chama porra. Em Cuenca, me encharquei em litros de Q, o vinho da região. Brasileiro que sabe como se chama em espanhol esta letra, já deve estar imaginando minha perplexidade quando o garçom me perguntou:
- El Q, usted lo quiere blanco, tinto o rosado?
Enfim, espanhol não é vernáculo. Mas em Lisboa, cansei de comer febras, pregos, bifanas e safadinhas. Nestes dias em que o Antônio Hoauiss fala em unificação do idioma, como é que ficamos? Teríamos de traduzir do português para o brasileiro? Mas isto implica admitir que uma língua já são duas, fato que qualquer tradutor europeu ou americano já conhece, mas que os universitários brasileiros teimam em negar.
Lisboa, além das ginjas (com elas ou sem elas?) e fados, me faz lembrar dois outros pratos, a sopa de grelos e os percebes. De grelos, gosto em qualquer geografia. Quanto aos percebes, ainda não firmei opinião. É um bichinho asqueroso, que parece ainda não ter decidido se pertence ao reino vegetal ou animal, mas muito apreciado pelos gastrônomos. Como as angulas e santolas, não têm gosto de nada. Resumindo, é aquela craca que dá em cascos de navios e postes submersos. O verme custa caro, se faz de difícil ao ser descascado, e o único prazer que nele encontrei foi literário. Como as colônias de percebes levam tempo para se formar junto a cascos, madeiras ou rochas, os espanhóis encontraram uma bela metáfora para definir um homem de raciocínio lento: es que tiene percebes en los pendejos.
Em bom português: tem percebes nos pentelhos. Este é, a meu ver, o mal que está afetando a alcaidessa.
14 de novembro de 2013
janer cristaldo
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