Ainda há pouco, os movimentos negros brasileiros reivindicavam a eliminação do item cor nos documentos de identidade. Com a malsinada lei de cotas que hoje assola o ensino superior, os negros insistem em declarar a cor na inscrição no vestibular. Estes mesmos movimentos negros sempre consideraram que qualquer critério supostamente científico para determinar a cor de alguém é racista. Quem então é negro para efeitos legais? No caso da lei estadual no Rio e do projeto de lei federal, o critério é o da autodeclararão. Pardo ou negro é quem se considera pardo ou negro, mesmo que branco seja. Ora, neste país em que impera a chamada lei de Gérson, não poucos brancos se declararam negros no último vestibular da UERJ, a primeira universidade pública brasileira a estabelecer o sistema de cotas. Grita dos líderes negros: vamos determinar cientificamente quem é branco e quem é negro e processar os brancos que se declaram negros. Ou seja, as palavras de ordem da afrodescendentada são mais cambiantes que as nuvens. Mas mudam num só sentido, na direção de obter vantagens para os negros, não só dispensando méritos como também passando por cima dos eventuais méritos de quem se declara branco.
O atual presidente da República está longe de ser o primeiro apedeuta a assumir o poder neste país. Câmara e Senado estão repletos de analfabetos jurídicos, que nada entendem da confecção de leis nem sabem sequer distinguir lei maior de lei menor. Embalados por palavras de ordem estúpidas, em geral oriundas dos Estados Unidos, criam leis irresponsáveis, com a tranqüilidade de quem não precisa prestar contas a ninguém. É o caso da lei de cotas. Só agora, após o vestibular da UERJ e de uma enxurrada de ações judiciais, argutos analistas descobriram que a famigerada lei fere o artigo 5º da Constituição: "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza."
Não bastasse esta tremenda mancada jurídica, que daqui para frente só servirá para entupir ainda mais os já entupidos tribunais — gerando grandes lucros aos advogados, os reais beneficiados pela lei de cotas — o presidente da República, mal assumiu o poder, sancionou lei que obriga a inclusão da temática História e Cultura Afro-brasileira no currículo oficial da rede de ensino Fundamental e Médio. As aulas abordarão desde a história da África e dos africanos até a luta dos negros no Brasil. A medida é de um racismo evidente. E por que não a História de Portugal e a luta dos portugueses no Brasil? Ou a história da Itália e as lutas dos italianos? Ou a história do Japão e a luta dos japoneses? O Brasil é um cadinho de culturas e a contribuição africana a seu desenvolvimento está longe de ser a única ou a mais importante. O estudo da história afro-brasileira tem no entanto suas complicações.
Para os próceres do movimento negro, não basta historiar a cultura afro-brasileira. É preciso embelezá-la. É o que se deduz da proibição do livro Banzo, Tronco e Senzala, de Elzi Nascimento e Elzita Melo Quinta, na rede pública do Distrito Federal por ordem do governador Joaquim Roriz, em acatamento ao pedido do senador petista Paulo Paim. Um garoto teria ficado impressionado com as informações contidas no livro dizendo que os "negros perdiam a condição humana assim que eram aprisionados na África para se tornarem simples mercadoria à disposição dos brancos" e que aprisionar os negros não era difícil. "Principalmente, depois que os traficantes passaram a contar com o auxílio de negros traidores que prendiam elementos de sua própria raça em troca de fumo, cachaça, pólvora e armas."
"Qual é a auto-estima de uma criança negra quando recebe um livro que diz que, se seu povo um dia foi escravo, os culpados foram os negros, e não os europeus da época, mercadores de escravos?" — pergunta Paim. O deputado parece ignorar — ou propositadamente omite — o fato de que a escravidão não é invenção dos europeus. Ela já está na Bíblia e em momento algum é condenada pelos profetas ou patriarcas. Nem mesmo Paulo, reformador do Livro Antigo, a condena.
Foi norma na Grécia antes de a Europa existir. Séculos antes de o primeiro navio negreiro europeu aportar no continente africano, ela lá já existia, sem a interferência do Ocidente. O presidente do Senegal, Abdoulaye Wade, que o diga. Comentando as reivindicações dos movimentos negros, identificou-se como descendente de uma rica família de senhores de escravos e perguntou se alguém iria pedir-lhe indenização. Ainda bem que não o fez em jornais do Distrito Federal, ou seria censurado pelo governador Joaquim Roriz.
Que os chefes tribais negros facilitavam a tarefa dos negreiros, vendendo escravos de outras tribos, isto tampouco é ignorado. Vendiam e continuam vendendo até hoje, em pleno século XXI. Na Mauritânia, Sudão e Gana, no Benin, Burkina Fasso, Mali e Niger, a escravidão ainda persiste como nos tempos dos navios negreiros. Ano passado, a GNT mostrava brancos europeus comprando escravos no Sudão. Não que fossem negreiros. Eram representantes de Ongs européias, que compravam negros para libertá-los. O propósito pode ser nobre. Mas toda procura gera oferta e os dólares dos ongueiros só serviram para estimular o tráfico de escravos. Esta é a história da África. E se algum autor relega a escravidão para tempos passados, o livro está desatualizado.
A nova lei assinada pelo presidente da República acrescenta ao calendário escolar o dia da morte de Zumbi (20 de novembro) como o Dia Nacional da Consciência Negra. Esta ambição patrioteira de ter heróis, típica de países subdesenvolvidos, levou políticos negros a elegeram Zumbi como herói da raça. Ora, o herói negro também era proprietário de escravos. Como é que ficamos? Irão as autoridades censurar qualquer livro que ateste esta condição de escravagista de Zumbi?
Ao defender os sistemas de cotas na universidade, os negros caíram em uma tosca armadilha. Podem hoje ter facilidades na obtenção de um diploma. Mas quem, amanhã, irá contratar os serviços de profissional que entrou na universidade pela porta dos fundos? Ao exigir a inclusão da história africana nos currículos, caíram em armadilha mais sofisticada. A história da África é a história das guerras tribais e da escravidão, da lapidação por adultério, da mutilação física como punição e da mutilação sexual como costume. Democracia, direitos humanos, liberdade de imprensa, emancipação da mulher, são instituições desconhecidas no continente. Seis mil meninas têm o clitóris extirpado, diariamente, em vinte países do Oriente Médio e da África. Por barbeiros locais ou parteiras, com instrumentos não-esterilizados.
A África, até hoje, está mais para Idi Amin Dada do que para Mozart. Mais para Bokassa que para Einstein. Estudar sua história, seja a passada, seja a presente, não leva criança alguma a nenhuma autoestima.
Jamais tivemos leis Jim Crow— Em crônica passada, comentei o sistema de cotas para negros na universidade e o estudo obrigatório da História africana nas escolas brasileiras. O artigo rendeu uma saraivada de mensagens, em geral iradas, nas quais invariavelmente sou acusado de racista. "A doença do racismo é uma invenção européia" – escreve um dos leitores – "Você não pode infetar uma pessoa com a doença sem esperar ficar doente. Seu artigo mostra a doença que você ainda tem". Tantas foram as objeções, que responder a todas é impossível. Atenho-me então a comentar os pontos mais recorrentes, como racismo, sistema de cotas, escravidão e história da África. Deixo de lado minha surpresa ao tomar conhecimento de que os hutus e tutsis que se cortam aos pedaços em Ruanda estão contaminados por uma invenção européia.
Comecemos por meu suposto racismo. Nasci no Rio Grande do Sul, Estado que, por sua forte colonização européia, tem a fama de ser o Estado mais racista do Brasil. Apesar de ser constituído por uma expressiva maioria branca, foi o primeiro Estado do país a eleger um governador negro, Alceu Collares. Ora, nem a Bahia, Estado majoritariamente negro, teve um governador negro. Collares não só foi governador, como também prefeito de Porto Alegre, capital também majoritariamente branca. Antes de ser prefeito da capital gaúcha, foi prefeito de Bagé, cidade da fronteira oeste do Rio Grande do Sul, onde os brancos constituem maioria esmagadora. Desde minha infância, de meus estudos primários aos universitários, convivi afavelmente com negros. Em meus anos de Porto Alegre, por noites a fio participei da mesa de Lupicínio Rodrigues, no bar da Adelaide, e por ele sempre nutri admiração. Lupicínio –que compôs os mais belas letras de samba do Brasil – era universalmente querido pelos gaúchos. Hoje, noto que tive entre os negros bons amigos. E por que hoje? Porque na época nem notava que eram negros. Com o acirramento recente da luta racial, passamos a conviver com pessoas que insistem em se definir como negras, quando nem cogitávamos de que o fossem.
Entre os mails recebidos, sou acusado de defender a tese de que no Brasil não existe racismo. De certa forma, a defendo. Algum racismo existe entre nós, ou humanos não seríamos. Mas jamais ao nível dos EUA ou países europeus. O negro, quando rico ou bem-sucedido, é estimado e mesmo invejado no Brasil. Milhões de brancos brasileiros se sentiriam sumamente honrados sendo fotografados junto a um Pelé. O rechaço existe em relação ao negro pobre ou miserável. Neste caso, o fator de distanciamento não é a negritude do negro, mas sua miséria. Exceto padres católicos e assistentes sociais, ninguém gosta de miséria. Nem negro gosta de negro pobre.
Nunca tivemos, no Brasil, leis proibindo a negros qualquer direito. As chamadas leis Jim Crow, declaradas inconstitucionais pela Suprema Corte americana em 1954, constituíram a partir de 1880 a base legal da discriminação contra negros nos Estados do Sul, proibindo até mesmo um estudante passar um livro escolar a outro que não fosse da mesma raça. No Alabama, nenhum hospital podia contratar uma enfermeira branca se nele estivesse sendo tratado um negro. As estações de ônibus tinham de ter salas de espera e guichês de bilhetes separados para cada raça. Os ônibus tinham assentos também separados. E os restaurantes deveriam providenciar separações de pelo menos sete pés de altura para negros e brancos.
No Arizona, eram nulos casamento de qualquer pessoa de sangue caucasiano com outras de sangue negro, mongol, malaio ou hindu. Na Florida, proibia-se o casamento de brancos com negros, mesmo descendentes de quarta geração. Neste mesmo Estado, quando um negro compartilhasse por uma noite o mesmo quarto que uma mulher branca, ambos seriam punidos com prisão que não deveria exceder 12 meses e multa até 500 dólares. Na Geórgia, cerveja ou vinho tinham de ser vendidos exclusivamente a brancos ou a negros, mas jamais às duas raças no mesmo local. No Mississipi, mesmo as prisões tinham refeitórios e dormitórios separados para prisioneiros de cada raça. No Texas, cabia ao Estado providenciar escolas para crianças brancas e para negras. As leis Jim Crow explicam a mauvaise conscience ianque, que se traduziu na ação afirmativa.
20 de novembro de 2013
janer cristaldo
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