Quando eu era Juiz de Direito em atividade, causava-me certo incômodo o tratamento “meritíssimo”. Meritoso, adjetivo que significa digno de apreço ou de elogios, ainda seria aceitável. Mas meritíssimo, superlativo de meritoso, parecia-me um exagero totalmente sem propósito. Mas se eu advertisse a parte, fosse advogado ou cidadão comum, a respeito da impropriedade do tratamento, certamente não seria entendido. A ressalva, que eu fizesse, seria recebida como censura ou descortesia. Por esta razão, se o advogado, com a melhor das intenções, colocava a frase “meritíssimo, peço a palavra”, eu simplesmente respondia: “tem a palavra, doutor”.
O homem do povo, o trabalhador, o agricultor fica perturbado com o palavrório da Justiça. A palavra deve ser fonte de entendimento. Através do verbo as pessoas se comunicam, agradecem, fazem pedidos, manifestam sentimentos. No caso da Justiça, as expressões difíceis, as sessões secretas, as cancelas e muros, as togas, o aparato, tudo isto dificulta a relação dos cidadãos com as cortes forenses. Daí que os excessos devem ser evitados. Entretanto, numa outra vertente, há um certo encantamento com o mistério das palavras e a solenidade judicial. Relato um episódio a respeito deste ângulo da questão.
Numa comarca do interior onde judiquei, havia um homem que amava o vocabulário refinado. Ele era muito estimado na cidade. Fazia parte do júri. Vibrava de contentamento quando era sorteado para o conselho de sentença. Alguém lhe deu um dicionário de presente e ele se deliciava mergulhando naquele mundo encantado.
Certo dia ele foi ao forum e disse ao porteiro dos auditórios que desejava uma audiência com o juiz. Conduzido até a sala onde eu me encontrava e pretendendo me dirigir um grande elogio, disse-me com reverência:
“Meritíssimo, eu admiro sua petulância senil.”
Certamente o Santiago (que era o nome desta pessoa) ficou maravilhado com a sonoridade do proparoxítono petulância e com a força do oxítono senil. A junção das duas palavras pareceu-lhe maravilhosa. Deve ter consumido muito tempo em esforços, pesquisas e canseiras para construir aquela frase através da qual pretendia homenagear o meritíssimo.
Eu não podia responder apenas com um “muito obrigado”. Iria decepcioná-lo se me valesse de uma forma tão modesta de agradecimento. Era preciso manifestar minha alegria no mesmo diapasão. Foi o que tentei fazer, dizendo:
“Muito obrigado, preclaro amigo Santiago, muito obrigado por sua nobilíssima intenção”.
Falando desta forma eu não estava mentindo ou sendo hipócrita. Na verdade, estava agradecendo ao grande Santiago seu desejo de prestar sincero tributo ao juiz que ele tanto estimava.
04 de setembro de 2013
João Baptista Herkenhoff, 77 anos, é Livre-Docente da Universidade Federal do Espírito Santo e escritor.
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