Cobiça de prêmios literários é confissão de vulgaridade, mesmo em autores que ganharam muitos
Escritores: haverá raça mais abençoada e mais patética? Talvez não.
Tempos atrás, recebi um livro de um autor conhecido com uma dedicatória hiperbólica à minha pessoa. Estranhei. Não conhecia pessoalmente a criatura e já tinha escrito sobre ela em termos particularmente severos. Ali estava uma prova de "fair play" que me envergonhava profundamente: cresce e aparece, João.
Semanas depois, o editor de um jornal português enviava-me o mesmo livro —sem dedicatória, claro— perguntando se eu queria escrever a crítica. Segundo me disseram, o autor fazia questão que fosse eu debruçar-me sobre a sua prosa.
Sorri melancolicamente. O mundo ainda era um lugar previsível. E declinei o convite. A crítica lá apareceu, escrita por um colega de ofício, com elogios de fazer corar Narciso "lui même". Tudo está bem quando acaba bem, certo?
Certíssimo. Mas a minha desilusão não lidava com a hipocrisia do sujeito. Lidava apenas com a preguiça dele em não disfarçar um pouco, o que não deixava de ser um insulto à minha inteligência.
Vaidades todos temos. Inseguranças, também. Mas, nestes casos, é sempre bom aprender com os mestres: quando "No Caminho de Swann" apareceu na França, Marcel Proust escreveu críticas ao próprio livro e publicou-as nos periódicos do seu tempo.
A mais conhecida surgiu na primeira página do Le Figaro e o crítico não se conteve: o livro era uma "pequena obra-prima" que banhava "os vapores soporíferos" das letras francesas com "ar fresco". Consta que Proust pagou qualquer coisa como R$ 4.500 por esta imparcial resenha.
Moral da história: se Proust, que é Proust, vivia consumido pelas inseguranças da arte (e pela magreza da bolsa), quem somos nós para atirar a primeira pedra? A única diferença é que Proust ainda teve a elegância de ocultar a sua ambição.
Infelizmente, estas civilidades vão-se perdendo no meio literário. Não falo apenas do meu fã desinteressado, que nunca mais me enviou livro nenhum.
Falo de nomes como Margaret Atwood, Ian McEwan ou Zadie Smith. Segundo informa o The Guardian, os três fazem parte de um lista generosa de escritores e editores que não querem americanos na competição do Man Booker Prize.
Segundo os paladinos da pureza literária, o prêmio deve consagrar apenas autores do Reino Unido ou da Commonwealth. Só assim, dizem os paladinos, é possível dar visibilidade a autores "marginais", prontamente esmagados pelos George Saunders desta vida (Saunders, com "Lincoln no Limbo", venceu em 2017; Paul Beatty, outro americano, venceu o prêmio no ano anterior, com "O Vendido").
Os jurados do prêmio discordam. E lembram que a língua inglesa é mais importante do que a nacionalidade dos escritores. É a língua e o talento, independentemente da origem, que devem ser premiados.
Como é evidente, a polêmica não lida com a visibilidade dos escritores "marginais". O problema está nos escritores "centrais" que cobiçam o prêmio e temem a competição americana.
Esta revelação entristece qualquer literato.
Primeiro, porque a cobiça pública de prêmios literários é uma confissão de vulgaridade, mesmo em autores que já os ganharam em abundância. Cuidado: falo de cobiça "pública", não privada.
Em privado, sempre vi com graça as espantosas acrobacias dos autores para caírem nas graças de um jurado: elogios, dinheiro, juras de amor —ou, em alternativa, violências e ameaças.
E até conheço escritores que cobiçam os prêmios simplesmente para os recusar —uma espécie de glória sobre a glória que não tem paralelo em qualquer currículo.
Mas o temor explícito dos autores americanos revela outra coisa: um complexo de inferioridade que muitos escritores ingleses ou irlandeses não mereciam. Pessoalmente, não conheço nenhum escritor americano vivo e ativo (o que exclui imediatamente Philip Roth) que escreva como John Banville, sobretudo nesse primor que é "O Mar". Que o mesmo Banville também apoie o boicote aos americanos, eis a prova de que ninguém é perfeito.
Repito: vaidades todos temos. Inseguranças, também. Mas um escritor que não sabe escondê-las do público é como um ilusionista que, antes de executar o truque, explica à audiência como os coelhos saem da cartola.
06 de abril de 2018
João Pereira Coutinho, Folha de SP
Escritores: haverá raça mais abençoada e mais patética? Talvez não.
Tempos atrás, recebi um livro de um autor conhecido com uma dedicatória hiperbólica à minha pessoa. Estranhei. Não conhecia pessoalmente a criatura e já tinha escrito sobre ela em termos particularmente severos. Ali estava uma prova de "fair play" que me envergonhava profundamente: cresce e aparece, João.
Semanas depois, o editor de um jornal português enviava-me o mesmo livro —sem dedicatória, claro— perguntando se eu queria escrever a crítica. Segundo me disseram, o autor fazia questão que fosse eu debruçar-me sobre a sua prosa.
Sorri melancolicamente. O mundo ainda era um lugar previsível. E declinei o convite. A crítica lá apareceu, escrita por um colega de ofício, com elogios de fazer corar Narciso "lui même". Tudo está bem quando acaba bem, certo?
Certíssimo. Mas a minha desilusão não lidava com a hipocrisia do sujeito. Lidava apenas com a preguiça dele em não disfarçar um pouco, o que não deixava de ser um insulto à minha inteligência.
Vaidades todos temos. Inseguranças, também. Mas, nestes casos, é sempre bom aprender com os mestres: quando "No Caminho de Swann" apareceu na França, Marcel Proust escreveu críticas ao próprio livro e publicou-as nos periódicos do seu tempo.
A mais conhecida surgiu na primeira página do Le Figaro e o crítico não se conteve: o livro era uma "pequena obra-prima" que banhava "os vapores soporíferos" das letras francesas com "ar fresco". Consta que Proust pagou qualquer coisa como R$ 4.500 por esta imparcial resenha.
Moral da história: se Proust, que é Proust, vivia consumido pelas inseguranças da arte (e pela magreza da bolsa), quem somos nós para atirar a primeira pedra? A única diferença é que Proust ainda teve a elegância de ocultar a sua ambição.
Infelizmente, estas civilidades vão-se perdendo no meio literário. Não falo apenas do meu fã desinteressado, que nunca mais me enviou livro nenhum.
Falo de nomes como Margaret Atwood, Ian McEwan ou Zadie Smith. Segundo informa o The Guardian, os três fazem parte de um lista generosa de escritores e editores que não querem americanos na competição do Man Booker Prize.
Segundo os paladinos da pureza literária, o prêmio deve consagrar apenas autores do Reino Unido ou da Commonwealth. Só assim, dizem os paladinos, é possível dar visibilidade a autores "marginais", prontamente esmagados pelos George Saunders desta vida (Saunders, com "Lincoln no Limbo", venceu em 2017; Paul Beatty, outro americano, venceu o prêmio no ano anterior, com "O Vendido").
Os jurados do prêmio discordam. E lembram que a língua inglesa é mais importante do que a nacionalidade dos escritores. É a língua e o talento, independentemente da origem, que devem ser premiados.
Como é evidente, a polêmica não lida com a visibilidade dos escritores "marginais". O problema está nos escritores "centrais" que cobiçam o prêmio e temem a competição americana.
Esta revelação entristece qualquer literato.
Primeiro, porque a cobiça pública de prêmios literários é uma confissão de vulgaridade, mesmo em autores que já os ganharam em abundância. Cuidado: falo de cobiça "pública", não privada.
Em privado, sempre vi com graça as espantosas acrobacias dos autores para caírem nas graças de um jurado: elogios, dinheiro, juras de amor —ou, em alternativa, violências e ameaças.
E até conheço escritores que cobiçam os prêmios simplesmente para os recusar —uma espécie de glória sobre a glória que não tem paralelo em qualquer currículo.
Mas o temor explícito dos autores americanos revela outra coisa: um complexo de inferioridade que muitos escritores ingleses ou irlandeses não mereciam. Pessoalmente, não conheço nenhum escritor americano vivo e ativo (o que exclui imediatamente Philip Roth) que escreva como John Banville, sobretudo nesse primor que é "O Mar". Que o mesmo Banville também apoie o boicote aos americanos, eis a prova de que ninguém é perfeito.
Repito: vaidades todos temos. Inseguranças, também. Mas um escritor que não sabe escondê-las do público é como um ilusionista que, antes de executar o truque, explica à audiência como os coelhos saem da cartola.
06 de abril de 2018
João Pereira Coutinho, Folha de SP
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