Lula e Dilma instalaram no STF uma maioria que cria obstáculos ao combate à corrupção
Em sua acepção mais comum, o verbo latino rebellare é traduzido como rebelar-se, revoltar-se, sublevar-se. Foi nos albores do mundo moderno, nos séculos 16 e 17, que ele se enriqueceu de maneira notável, ganhando na teoria política uma conotação totalmente diferente, a de “voltar ao estado de guerra”.
Tal mudança ocorreu em íntima conexão com o surgimento da doutrina do contrato social, pilar inicial do Estado constitucional e da democracia representativa. Desde Thomas Hobbes, autor de O Leviatã (1650), numerosos pensadores adotaram como ponto de partida o contraste entre uma sociedade fictícia – o “estado de natureza” – e a sociedade real, na qual vivemos, a “sociedade civil”. No “estado de natureza”, a vida humana beira o inimaginável. Fraco e isolado, não podendo contar com a colaboração de seus semelhantes, cada indivíduo se sente constantemente ameaçado pelos demais. Nas expressões clássicas de Hobbes, “o homem é o lobo do homem” e a sociedade, uma perpétua “guerra de todos contra todos”.
Foi para superar tal condição que os homens instituíram a sociedade civil, um contrato ou pacto mediante o qual todos se poriam ao abrigo de instituições e leis estabelecidas por eles mesmos, às quais deveriam estrita obediência, pois elas é que haveriam de os proteger contra a morte violenta, garantir suas propriedades e assegurar a cooperação sem a qual não conseguiriam produzir os bens de que necessitavam para sobreviver.
Assim, a noção de “sociedade civil” abria caminho para a ideia de que a sociedade humana surge e evolui graças à razão, ou seja, à capacidade humana de imaginar futuros alternativos, de escolher entre eles e de cooperar em sua construção. A visão “naturalista” era assim substituída pelo contratualismo, base como antes assinalei, do Estado constitucional e representativo.
Implícita no contratualismo encontra-se, portanto, a ideia de que o indivíduo é portador de direitos que a sociedade é obrigada a respeitar e tutelar. Mais para o final do século 17, em seu Segundo Tratado sobre o Governo Civil, John Locke levou o argumento contratualista à sua conclusão lógica. Quem violasse as premissas da sociedade civil estaria se “rebelando”, ou seja, reinstituindo um “estado de natureza”. A recaída no estado de guerra poderia ser causada por qualquer um dos principais grupos ou instituições que compõem a sociedade, em especial por um governo tirânico, ou por súditos que se recusassem a reconhecer a legitimidade de um governo que fizesse por merecê-la.
À primeira vista, os apontamentos acima podem parecer puramente abstratos e irrelevantes, mas a História registra numerosos breakdowns, ou seja, crises ou rupturas que desembocam em violência generalizada. E não custa lembrar que até hoje é comum nos depararmos com a expressão “pacto social vigente” quando nos referimos à Constituição ou, mais amplamente, à situação prevalecente em determinada sociedade em certo momento.
Observadas tais ressalvas e fazendo referência ao Brasil atual, parece-me plausível caracterizar certos comportamentos das instituições públicas e certas atitudes disseminadas na sociedade e na política como indícios de um processo de desagregação análogo a uma regressão ao estado de guerra. Claro, a recaída não se dá da noite para o dia e raramente é causada por uma parte apenas da sociedade, mas o primeiro ponto a frisar é o discurso das agremiações de esquerda – e do PT, a mais importante delas. Em todas as suas variantes, a ideologia de esquerda orienta-se pela utopia de uma sociedade sem classes e perfeitamente harmoniosa. Arroga-se uma capacidade de antever as etapas do futuro histórico, sendo, pois, de seu dever liderar a marcha que conduzirá a humanidade a esse paraíso terrestre. Essa suposta superioridade alimenta uma ambiguidade em relação às instituições da democracia, às condutas prescritas pela ordem constitucional, e, especificamente, uma perceptível leviandade na ponderação entre fins e meios, da qual decorre um frequente recurso a ameaças de violência.
O caso do PT é ilustrativo. Em 1985 recusou-se a apoiar o restabelecimento do regime civil quando da eleição de Tancredo Neves pelo colégio eleitoral. Recusou-se a assinar a Constituição de 1988. Não mediu esforços para recolher dividendos eleitorais advindos do impeachment de Fernando Collor, mas recusou-se a assumir sua cota de responsabilidade no governo de transição de Itamar Franco. Quando a hiperinflação bateu às nossas portas, o partido assumiu uma posição de frontal combate ao plano de estabilização. Lula, eleito em 2002, beneficiou-se da estabilidade e de uma transição de governo excepcionalmente cordial e transparente, mas não hesitou em pespegar o slogan “herança maldita” no governo que o precedera, sem dúvida a mais dura agressão de um presidente contra seu antecessor na História republicana brasileira.
Outro indício da desagregação ou recaída a que me referi é a extensão atingida em nosso país pela corrupção. O número e o volume das ocorrências que vieram a público no passado recente sugerem tratar-se de um caso sem paralelo entre as democracias contemporâneas.
Por fim, mas não menos importante, algo precisa ser dito a respeito do Judiciário e especificamente do Supremo Tribunal Federal. É inegável que os governos Lula e Dilma, valendo-se com má-fé de seu poder de nomeação, instalaram no Supremo uma maioria facciosa que não hesita em contrariar a jurisprudência (que em parte ela mesma criou) e não faz segredo de sua intenção de criar obstáculos ao combate à corrupção. Vale lembrar a lição de Locke: “Perde a confiança da comunidade uma instituição que manifestamente negligencia ou se opõe ao fim que lhe foi atribuído”.
06 de abril de 2018
BOLÍVAR LAMOUNIER É CIENTISTA POLÍTICO, SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS E AUTOR DE 'LIBERAIS E ANTILIBERAIS'(COMPANHIA DAS LETRAS, 2016)
Estadão
Em sua acepção mais comum, o verbo latino rebellare é traduzido como rebelar-se, revoltar-se, sublevar-se. Foi nos albores do mundo moderno, nos séculos 16 e 17, que ele se enriqueceu de maneira notável, ganhando na teoria política uma conotação totalmente diferente, a de “voltar ao estado de guerra”.
Tal mudança ocorreu em íntima conexão com o surgimento da doutrina do contrato social, pilar inicial do Estado constitucional e da democracia representativa. Desde Thomas Hobbes, autor de O Leviatã (1650), numerosos pensadores adotaram como ponto de partida o contraste entre uma sociedade fictícia – o “estado de natureza” – e a sociedade real, na qual vivemos, a “sociedade civil”. No “estado de natureza”, a vida humana beira o inimaginável. Fraco e isolado, não podendo contar com a colaboração de seus semelhantes, cada indivíduo se sente constantemente ameaçado pelos demais. Nas expressões clássicas de Hobbes, “o homem é o lobo do homem” e a sociedade, uma perpétua “guerra de todos contra todos”.
Foi para superar tal condição que os homens instituíram a sociedade civil, um contrato ou pacto mediante o qual todos se poriam ao abrigo de instituições e leis estabelecidas por eles mesmos, às quais deveriam estrita obediência, pois elas é que haveriam de os proteger contra a morte violenta, garantir suas propriedades e assegurar a cooperação sem a qual não conseguiriam produzir os bens de que necessitavam para sobreviver.
Assim, a noção de “sociedade civil” abria caminho para a ideia de que a sociedade humana surge e evolui graças à razão, ou seja, à capacidade humana de imaginar futuros alternativos, de escolher entre eles e de cooperar em sua construção. A visão “naturalista” era assim substituída pelo contratualismo, base como antes assinalei, do Estado constitucional e representativo.
Implícita no contratualismo encontra-se, portanto, a ideia de que o indivíduo é portador de direitos que a sociedade é obrigada a respeitar e tutelar. Mais para o final do século 17, em seu Segundo Tratado sobre o Governo Civil, John Locke levou o argumento contratualista à sua conclusão lógica. Quem violasse as premissas da sociedade civil estaria se “rebelando”, ou seja, reinstituindo um “estado de natureza”. A recaída no estado de guerra poderia ser causada por qualquer um dos principais grupos ou instituições que compõem a sociedade, em especial por um governo tirânico, ou por súditos que se recusassem a reconhecer a legitimidade de um governo que fizesse por merecê-la.
À primeira vista, os apontamentos acima podem parecer puramente abstratos e irrelevantes, mas a História registra numerosos breakdowns, ou seja, crises ou rupturas que desembocam em violência generalizada. E não custa lembrar que até hoje é comum nos depararmos com a expressão “pacto social vigente” quando nos referimos à Constituição ou, mais amplamente, à situação prevalecente em determinada sociedade em certo momento.
Observadas tais ressalvas e fazendo referência ao Brasil atual, parece-me plausível caracterizar certos comportamentos das instituições públicas e certas atitudes disseminadas na sociedade e na política como indícios de um processo de desagregação análogo a uma regressão ao estado de guerra. Claro, a recaída não se dá da noite para o dia e raramente é causada por uma parte apenas da sociedade, mas o primeiro ponto a frisar é o discurso das agremiações de esquerda – e do PT, a mais importante delas. Em todas as suas variantes, a ideologia de esquerda orienta-se pela utopia de uma sociedade sem classes e perfeitamente harmoniosa. Arroga-se uma capacidade de antever as etapas do futuro histórico, sendo, pois, de seu dever liderar a marcha que conduzirá a humanidade a esse paraíso terrestre. Essa suposta superioridade alimenta uma ambiguidade em relação às instituições da democracia, às condutas prescritas pela ordem constitucional, e, especificamente, uma perceptível leviandade na ponderação entre fins e meios, da qual decorre um frequente recurso a ameaças de violência.
O caso do PT é ilustrativo. Em 1985 recusou-se a apoiar o restabelecimento do regime civil quando da eleição de Tancredo Neves pelo colégio eleitoral. Recusou-se a assinar a Constituição de 1988. Não mediu esforços para recolher dividendos eleitorais advindos do impeachment de Fernando Collor, mas recusou-se a assumir sua cota de responsabilidade no governo de transição de Itamar Franco. Quando a hiperinflação bateu às nossas portas, o partido assumiu uma posição de frontal combate ao plano de estabilização. Lula, eleito em 2002, beneficiou-se da estabilidade e de uma transição de governo excepcionalmente cordial e transparente, mas não hesitou em pespegar o slogan “herança maldita” no governo que o precedera, sem dúvida a mais dura agressão de um presidente contra seu antecessor na História republicana brasileira.
Outro indício da desagregação ou recaída a que me referi é a extensão atingida em nosso país pela corrupção. O número e o volume das ocorrências que vieram a público no passado recente sugerem tratar-se de um caso sem paralelo entre as democracias contemporâneas.
Por fim, mas não menos importante, algo precisa ser dito a respeito do Judiciário e especificamente do Supremo Tribunal Federal. É inegável que os governos Lula e Dilma, valendo-se com má-fé de seu poder de nomeação, instalaram no Supremo uma maioria facciosa que não hesita em contrariar a jurisprudência (que em parte ela mesma criou) e não faz segredo de sua intenção de criar obstáculos ao combate à corrupção. Vale lembrar a lição de Locke: “Perde a confiança da comunidade uma instituição que manifestamente negligencia ou se opõe ao fim que lhe foi atribuído”.
06 de abril de 2018
BOLÍVAR LAMOUNIER É CIENTISTA POLÍTICO, SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS E AUTOR DE 'LIBERAIS E ANTILIBERAIS'(COMPANHIA DAS LETRAS, 2016)
Estadão
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