Não se pode transformar o campo mais nobre e mais importante para o progresso de um país — a sua administração pública — num pântano
Somos empolgados pela mudança mas, como revelou Freud, ela precisa da coragem para dialogar com demônios. O progresso decreta respeito, senão ele se desmancha na primeira ressaca, como as nossas ciclovias.
Vivemos num mundo no qual as “páginas devem ser viradas”, embora a narrativa ancorada num progresso cumulativo ordene releituras. A leitura é o ideal; a releitura, uma necessidade.
Estamos testemunhando uma dramática releitura do Brasil como país. Não estamos relendo suas páginas como sociedade e cultura como fazemos quando falamos de comidas, música ou quando discutimos bundas ou carnaval.
O Brasil está falido e, nas vésperas de um desfecho que nos atinge como um todo, não há escolha. Enquanto a maioria torce por uma narrativa razoável, uma minoria, que opta pela negação e pela repressão, reitera que prefere apostar novamente no familiar “quanto pior, melhor”.
Estamos acostumados ao mote do “eu já vi esse filme”, indicativo de retorno de dramas reprimidos. Mas o imperativo de mudar é inadiável.
Um amigo gostaria de uma “limpeza geral”. Eu, humildemente, lembro que o drama é sempre maior que os atores. Num sistema que se diz “democrático-liberal” — embora muitos tomem isso como um insulto —, a peça sempre terá dois lados, embora um deles tenha como objetivo englobar temporariamente o outro.
O problema hoje não é substituir os jogadores; a questão é tirar de campo os atores indesejáveis ao ponto da degradação do próprio jogo. Não se pode transformar o campo mais nobre e mais importante para o progresso de um país — a sua administração pública — num pântano. Substituir um capitão de time é algo delicadíssimo. É um ato doloroso, mas ele não significa liquidar o jogo. O ideal democrático continua desde que, como disse com propriedade o senador-relator Antonio Anastasia, os adversários honrem o fato de que pertencem a partidos diferentes, mas balizem a disputa com sua lealdade à democracia.
Convenhamos que não se pode admitir a nomeação de quase dez mil cargos comissionados, somente por critérios partidários, pois é isso que assassina o espirito das instituições. Todos, como enfatizou numa rara lição de liberalismo o citado senador, são membros de um partido e de um time que deseja vencer. Isso é o óbvio. Mas o que não é obvio é descobrir que a vida política não pode ser reduzida somente a interesses e projetos partidários e pessoais.
Caso assim fosse, a desconfiança e a lealdade seriam os maiores obstáculos ao progresso democrático. Realizado com honra, o movimento parlamentar não pode ter como alvo — exceto por projeção construída pela má-fé — somente a vitória de um partido a qualquer preço.
Se um time de futebol é tão desleal a ponto de querer vencer todos os campeonatos e fazendo com que se pergunte, como o Galvão Bueno, o significativo “pode isso, Arnaldo?!” — o futebol acabaria por inanição. Ele deixaria de ser um jogo para ser teatro ou filme reprisado
Por isso, a democracia é um regime alérgico ao radicalismo absoluto, à fé cega e, acima de tudo, à desonestidade e à conivência. Numa palavra, a uma “ética de condescendência”. Com a conhecida moralidade do tudo o que fazemos é certo e tudo o que vocês fazem é golpe. Sem o risco, sem a incerteza e sem o imprevisto, mas com um acordo básico no progresso e na igualdade de todos perante a lei como um valor, deforma-se a democracia.
Se eu posso, com a minha insignificância como colunista desejar algo ao governo Temer, desejo rigor e austeridade. Que ele tenha uma compostura jamais vista no Brasil. Que tenha a vontade de transformar “governantes” (ou donos) do Estado em servidores da sociedade. Sugiro, e respeitosamente demando, a supressão de todas as figuras de privilégio e hierarquia que fazem o ator comer o cargo, e o criminoso não ser punido.
É preciso terminar regalias como casa, criadagem, comida e aspones que fabricam os “donos do poder”. É necessário impedir a nomeação por gosto e favores partidários ou sexuais.
Em suma, há que se adotar uma inédita e resoluta prática igualitária, sem a qual vamos continuar eternamente sendo os mentirosos engravatados de sempre.
14 de maio de 2016
Roberto Damatta, O Globo
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