"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

terça-feira, 17 de novembro de 2015

UM POUCO DE HISTÓRIA DOS BASTIDORES

Delfim escreve para a Status (1979)

Delfim Neto - ministerio agricultura 01
O artigo a seguir, escrito por Delfim Neto, funciona como uma carta de intenções do recém-empossado Ministro da Agricultura (após deixar a Embaixada brasileira na França), no governo Figueiredo. Ficou só 7 meses no cargo (assumiu a pasta do Planejamento), sendo substituido pelo amigo Ângelo Amaury Stábile, demitido em 1984 após um escândalo no Banco Nacional de Crédito Cooperativo.
O artigo foi publicado na mesma edição da entrevista com Ulysses Guimarães, que você pode ver aqui.
Segue a carta de intenções de Delfim. Muita coisa continua atual:
Vem aí a revolução agrícola
Para que o agricultor brasileiro possa plantar e colher, devemos realizar inicialmente uma tarefa básica. Fazer com que esse agricultor acredite na ação do governo. Fazê-lo acreditar que o governo vai lhe fixar um preço razoável. E a segurança de que comprará o seu produto. E eu estou convencido de que a agricultura brasileira é capaz de responder aos estímulos do preço. Isto significa que a agricultura é também um dos componentes que tornarão o Brasil um país realmente desenvolvido e democrático.
O fundamental na nossa agricultura é que as pessoas acreditem que o governo está na sua retaguarda, que vai estabelecer os preços mínimos adequados, que vai dar créditos e montar um sistema eficaz de compras adequado. No Brasil o que existe não é propriamente uma agricultura ineficaz, mas sim uma agricultura que, quando obedece e responde aos estímulos do governo, vê frustradas as suas esperanças, porque o governo não tem agilidade para comprar o produto uma vez produzido. Porque o governo não tem dinamismo suficiente para socorrer o agricultor quando há frustração de safra. Eu não hesitaria em dizer que a agricultura é a atividade mais arriscada deste país. É a atividade onde o capital oferece menores possibilidades de dar resultados razoáveis. E mesmo assim a agricultura tem respondido aos estímulos de preço. Isso sugere que, com uma política adequada, firme, uma política capaz de transmitir um pouco de confiança ao agricultor, uma confiança reforçada quando exigir a ação enérgica e imediata do governo, isso representará a grande mudança que é esperada pela agricultura. A partir daí, não tenho a menor dúvida, teremos uma resposta excepcional.
É a agricultura que sustenta o Brasil e não o contrário.
Nos últimos tempos, tenho visto quase estarrecido a formulação da tese de que é a agricultura que está explorando o Brasil. Ora, é fácil mostrar exatamente o oposto. Quem tem subsidiado o Brasil é a agricultura. Basta pensar no sistema cambial. Basta pensar na necessidade da agricultura comprar adubos e implementar a custos muito superiores ao mercado internacional. Todos nós somos a favor de uma indústria de tratores ou de adubos. É claro que essas indústrias são fundamentais até do ponto de vista de segurança nacional.
Mas não devemos pretender que só a agricultura deva pagar o excedentes de preços para que se mantenham essas indústrias. O custo social destas deve ser pago por toda a nação. E não apenas por um segmento da nação brasileira, que é a nossa agricultura. Diz-se que a agricultura recebe créditos subsidiados. Esta é apenas uma meia verdade. É claro que a agricultura recebe créditos subsidiados, mas apenas para compensar um controle de preços que é muito mais duro na agricultura. Apenas para compensar o pagamento de insumos a preços muito superiores aos do mercado internacional. Parece-me assim, que se aceitarmos pacificamente que é a agricultura que está explorando o Brasil, nós não vamos muito longe. Eu acho que todos devemos reconhecer que a correia sai do couro. E que o couro tem sido a agricultura. Foi ela que financiou o sistema industrial que está aí. Foi a agricultura que financiou a superação da crise de petróleo.
Vamos mostrar ao agricultor o seu poder político
Acho ainda que há outro aspecto a analisar. A parte mais importante dos subsídios é fornecida à agricultura pelo Banco do Brasil através de recursos do próprio Tesouro Nacional. O Banco do Brasil recebe recursos a custo baixo e os entrega a 15%. Uma correção desses subsídios, elevando a taxa de juros, simplesmente engordaria os lucros do banco e empobreceria a agricultura nacional. É preciso, portanto, que repensemos urgentemente este problema.
Em outro pólo, o da política, acho que precisamos conscientizar o nosso homem do campo de seu poder político. A agricultura francesa, por exemplo, é o poder político mais importante deste país. No Brasil este e também uma realidade, só que ainda ninguém quis aceitar este fato. O agricultor está completamente dispersos, ele é incapaz de formular o seu programa.
Eu creio que uma das coisas mais importantes a serem feitas pelo Ministério da Agricultura é conscientizar o agricultor do seu poder político. Conscientizá-lo de que ele é uma parte importantíssima da nação. E, portanto, que ele deve participar, na mesma proporção, na formulação de toda política nacional. Não só da política agrícola. É preciso que os agricultores compreendam que não são apenas os proprietários que representam a sociedade brasileira, mas que eles também, os trabalhadores agrícolas, têm de se organizar. Não é possível que, como se faz agora nos grandes centros urbanos, estimule-se e permita-se a organização do trabalhadores. E que se deixe os trabalhadores do campo sem organização. Isso significará a longo prazo uma deterioração das condições de vida do trabalhador rural. O que seria desastroso para todo o país.
Mas a meia verdade parece ser fator constante na agricultura. Veja-se o caso do salário real. Há quem diga que ele cresceu no campo. Sim, isso é verdade, mas por trás esconde-se um fato importantíssimo. é o fato de que o trabalhador já não mora mais na fazenda. E o que ele recebia da terra na qual plantava o seu feijãozinho, seu chuchu, criava sua galinha e seu porquinho, essa parte do salário desapareceu. Portanto a elevação do salário real é apenas aparente. E, mais ainda, a expulsão do trabalhador rural das propriedades agrícolas, por efeito do Estatuto do Trabalhador Rural, criou um grupo que é marginal à sociedade, um grupo que se acumula nas cidades do interior e que leva uma vida extremamente precária. São estes os homens que tiveram o seu salário real aumentado? Estamos vendo que se trata de um absurdo. É claro que o salário monetário mantido em termos deflacionados cresceu. Mas é certo que o salário real desta gente diminuiu. Eles perderam aquilo que era salário indireto e que eles cultivavam nas suas horas de folga. E têm hoje que vir vegetar na cidade. Esse é um problema que tem de ser reestudado e já.
Nas conversas que tenho mantido com o presidente João Batista Figueiredo, o primeiro e mais constante ponto a que se refere é o de que ele não quer que o trabalhador rural, como aliás qualquer outro tipo de trabalhador, seja tratado como um fator de produção. Ele deseja realmente uma nova concepção em que o trabalhador é um participante ativo da produção, não um instrumento puro e simples desta produção. Por isso é preciso dar a este trabalhador as condições de participação na sociedade brasileira. Ele tem de ser amparado do ponto de vista da assistência social, ele tem que ser ajudado na educação de seus filhos, ele tem de ser localizado de forma que tenha uma assistência de saúde adequada. O presidente vai voltar o BNH também para o campo, para que seja possível realmente resolver, pelo menos em parte, o problema do trabalhador chamado de “bóia-fria”. E do próprio trabalhador que ainda reside na propriedade agrícola. De tal forma que isto dê ao trabalhador a sensação de que ele é parte da sociedade brasileira. E de que, quando aumentar a produção agrícola, um pedaço desse aumento de produção lhe cabe por direito. Porque é produto do seu trabalho.
Outro ponto a que o presidente dá realmente grande ênfase é este: o trabalhador rural não vai ser considerado como uma enxada. Nem como um trator. Ele vai ser uma coisa diferente. Vai ser um participante ativo da produção. E vai receber a sua parte segundo o aproveitamento do uso da terra. Essa é uma decisão inabalável do presidente.
Como também é inabalável a decisão de usar o imposto rural como um instrumento não punitivo, mas um instrumento indutor da utilização da terra. Não teria sentido tumultuarmos a produção agrícola com impostos mal pensados, mal projetados. É preciso que as pessoas saibam que não há nenhuma restrição à propriedade. Mas que haverá, sim, uma restrição séria à propriedade mal utilizada. O Brasil precisa de uma mobilização na fronteira agrícola. Temos, assim, que rever esse problema da utilização da terra. E eu creio que o presidente pensa muito bem quando acha que essa revisão tem que ser feita através do imposto rural. Mas, volto a insistir, não se trata de punir ninguém. Trata-se de fazer as pessoas utilizarem a terra ou então pagarem por não estar utilizando a terra.
Acho que vamos ter realmente que fazer um grande esforço em todo o Brasil. E considerar mesmo algumas áreas como preferenciais. Vejo na região Nordeste, no aquém e no além São Francisco, possibilidades imensas de produção de grãos. Mas é preciso acabar com o que tem ocorrido até agora entre nós. Quando a agricultura responde de forma entusiástica a um estímulo do governo, a produção é um bem para o Brasil e um mal para o agricultor. Ele tem de saber que ninguém mais vai jogar a sua cebola fora. Esse é um sistema que não pode mais perdurar.
Outra região que me parece prioritária é toda a região de Rondônia, é o Acre. Rondônia é uma região que leva um jeitão do Norte do Paraná. Vamos ligar essas regiões aos centros de consumo e apoiá-las com um sistema de armazenamento adequado. Nada de luxuoso, nada de grandioso. O presidente Figueiredo, por outro lado, insiste sempre em que seja dada atenção especial aos corredores de exportação. Eles serão retomados, serão terminados, serão concluídos, de forma a dar também à agricultura a segurança de que ela estará ligada ao comércio externo, sem nenhum inconveniente maior. Nós vamos ligar a economia agrícola ao mundo de tal jeito que seja possível uma safra importante ser absorvida tranquilamente. Isso exige realmente uma agilidade muito grande. Por exemplo, organizar no Brasil uma Bolsa capaz efetivamente de dar cobertura aos nossos produtores. Em suma, temos que modernizar a comercialização de nossos produtos agrícolas. Isto é fundamental.
Não se pode jogar fora um pesquisador cada vez que muda o governo
Delfim Neto - ministerio agricultura 02Para esse vasto programa que pretende efetivamente levar a revolução à terra, o Brasil já dispõe de razoáveis quadros técnicos. As escolas, sob o ponto de vista técnico, são bem arrumadas. Acho, entretanto, que nossos quadros de agrônomos e veterinários estão um pouco dispersos. Veja um exemplo. Só no IBC temos quinhentos agrônomos, o que realmente é espantoso. O IAA tem não sei quantos. E o Ministério da Agricultura, alguns milhares a mais. O que ocorre? O agrônomo do IBC vai a uma propriedade e dá uma olhada no café. Depois vem alguém do IAA olhar a cana. E assim por diante. Precisamos unificar tudo isso. Temos hoje muitos centros de pesquisa, todos trabalhando bem. Eu pretendo manter todos os esses quadros e acabar com a mentalidade de jogar fora um pesquisador a cada governo que muda. Só assim poderemos acumular ao longo de 20 ou 25 anos a experiência necessária para que possamos construir a nossa própria tecnologia. É bom lembrar que nós não podemos importar na agricultura o pacote completo, como nós fazemos na siderurgia. Ou na indústria de automóveis. Na agricultura, não: nela temos que fazer pesquisa adaptada às condições brasileiras. Talvez seja o setor onde o esforço nacional é maior. As nossas condições impõem a pesquisa tecnológica própria.
A agricultura não é uma atividade econômica, a agricultura é uma forma de viver. E eu suspeito de o homem está começando a descobrir que é uma forma de viver que nunca deveria ter abandonado. Pelo menos com a velocidade que abandonou. Não é nossa intenção privilegiar nenhum tipo de propriedade. A agricultura precisa ter pequenas, médias e grandes propriedades. Nossa intenção é a de estimular grupos nacionais que venham a se constituir em grandes empresas, para difundir a tecnologia, produzir sementes, dar efetivamente uma maior flexibilidade à agricultura. Mas não podemos deixar de defender a pequena propriedade, a propriedade familiar. Ela é uma propriedade que tem de receber um tratamento diferenciado sempre que existirem ganhos de dimensão tão séria que, se você deixar o mercado funcionar, a pequena propriedade tende a ser eliminada em benefício da propriedade gigante. Mas o governo está de olho para isso não ocorra.
Vamos chegar a um preço mais alto para o agricultor e um preço mais baixo para o consumidor
Finalmente existe ainda o movimento cooperativista. Vamos nos lançar a um sistema de estímulos que as pessoas sintam que vale a pena se juntar e colaborar sob uma forma cooperativa. E que é muito mais prático que uma patrulha de máquinas atenda trezentas propriedades que uma só. Vamos ter que procurar alcançar esse objetivo: pequenas propriedades com alta eficácia produtiva. O que parece o objetivo supremo de qualquer política no campo.
Outro ponto importante que me parece fundamental ser atingido é proporcionar ao consumidor preços mais estáveis e mais adequados. Acho que está na hora do governo dar uma espiada nos canais de distribuição e comercialização. Vejamos o caso do Ceasa e de outras organizações semelhantes. Eles foram criados como centros de distribuição para produtores, para que estes pudessem ter um contato mais íntimo com os consumidores. E portanto reduzindo a intermediação em benefício dos dois. Um preço um pouco mais alto para o agricultor, um preço um pouco mais baixo para o consumidor. Mas esses grandes centros tiveram um efeito perverso. Hoje eles são dominados por grupos que exercem um efetivo monopólio. Grupos que compram quando querem e que organizaram a sua comercialização em seu próprio benefício. Mas posso lhe garantir que é disposição firme do presidente da República dissolver esses monopólios, nem que seja por intermédio de uma ação física. Isso, naturalmente, em cooperação com os governos estaduais.
Antes de finalizar, eu gostaria de dizer ao trabalhador do campo, ao empresário do campo que eles não duvidem: eles terão na retaguarda o presidente da República. é que é sua disposição provocar realmente uma revolução agrícola. Mas não por razões paternalistas. O governo vai dar a eles os instrumentos pelos quais eles poderão realizar a sua produção com um pouco mais de conforto e com muito mais segurança.
A agricultura foi definida como prioritária. Isso significa que ela vai ser privilegiada. Significa que o Brasil vai investir uma parcela importante de sua poupança nacional primeiro na agricultura. Isso é que significa prioridade. Nós perdemos a noção destas coisas porque as pessoas não entendem mais o que é prioridade. E, quando tudo é prioritário, nada é prioritário. Se nossa política tiver sucesso, isso significa que ela aumentará a oferta de alimentos. Logo, contribuirá para uma redução da inflação e do custo de vida. O que significa uma importante contribuição para melhorar a distribuição da renda. O que deverá ocorrer em todo o país. Pois o Brasil não tem uma só agricultura, mas muitas agriculturas. Acho, por isso, que essa política derivará numa redução das disparidades regionais. O que é uma aspiração e uma necessidade nacionais.

Comentários sobre a entrevista do Ulysses do post passado

Seguem alguns comentários sobre a entrevista de Fernando Morais com Ulysses Guimarães publicado nopost anterior (da série entrevistas com políticos em revistas masculinas antigas), a matéria da Istoé sobrea campanha eleitoral de 1989 e o Roda Viva, também de 89. Faço também uns paralelos com a vida política atual.
No Roda Viva, Ulysses acreditava que toda solução do País deveria passar pelo sistema político. Seja a pessoa engenheira, médica, ou de qualquer outra profissão: ela tinha que ter uma trajetória política. Enquanto na campanha de 89 os companheiros de partido faziam uma pressão pra Ulysses enaltecer a própria biografia pessoal em detrimento da vida partidária, ele pensava o contrário. “O partido é fundamental na campanha política“, disse no Roda Viva. “Democracia é um regime de partidos. Partidos fortes fortalecem a democracia“, completou.
Um dos jornalistas disse no Roda Viva que a sociedade tinha uma rejeição muito grande à figura política e que ele, mais que todos os outros candidatos, personificava a figura do político. Ele achava grave a rejeição à política, mas também pensava que havia partidos demais na época (imagina se visse hoje) e que isso confundia as pessoas de forma geral. Para ele, as campanhas políticas tinham que ter até 2 meses de duração, para não cansar o eleitor e porque julgava um tempo hábil para a exposição das ideias dos candidatos. O debate política tinha que ser constante, para eliminar ou diminuir a influência do dinheiro novo voto. Era contrário à unificação das eleições para presidente, governador e prefeito, porque se tratavam de agendas diferentes. “Isso atrapalharia o debate político“, acreditava. Ulysses trabalhava a máquina partidária dele “na base da saliva“.
Dizia que, “ao contrário do que as elites dizem“, brasileiro sabe votar. Se entendi bem, acreditava que uma vantagem do parlamentarismo sobre o presidencialismo era que o quadro técnico do governo não mudaria a cada nova eleição.
Na entrevista da Status, Ulysses rememora a trajetória dele, do PSD (o original) até o PMDB. A ideia de Getúlio Vargas era que o PSD atuasse como um partido de apoio ao governo. A graça é que dizem que uma das causas da cisma atual do PMDB com o governo Dilma é fazer algo semelhante. O PSD atual, recriado pelo Kassab, atuando como base. Haveria um plano, também do Kassab, de recriar o Partido Liberal (PL), para que os descontentes do PMDB pudesse migrar para o PL, sem perder o mandato, por se tratar um partido novo. Depois o PL e o PSD se fundiriam. A base do PSD  se fortaleceria  sem desobedecer as leis eleitorais.
Ulysses fala de uma origem masculina para o nome do MDB — é um Movimento Democrático e não uma Ação Democrática — e o bullying que o PMDB de Eduardo Cunha faz no governo Dilma caracteriza-se muito em um quadro de “clube do bolinha“. Imagino que Tancredo não levasse essa “origem masculina” do PMDB muito a sério.
Ulysses fala também do trato de dois presidentes com os deputados:
Naquela época ele recebia semanalmente os deputados em seu gabinete — aliás, no período democrático do Brasil, os presidentes recebiam deputados de qualquer partido. O que era uma rotina no Brasil democrático, hoje é motivo de manchete de jornal. Mas o Getúlio recebia os deputados de pé — sabe como é… falando com o presidente da República, sentado, o sujeito se esquece do relógio. O Getúlio, ao contrário de Juscelino, recebia os deputados um a um. O Juscelino os recebia em grupos para criar um certo constrangimento a quem quisesse fazer pedidos pessoais, paroquiais. O Getúlio ficava sentado na ponta da mesa, fumando seu indefectível charuto, ouvindo e recebendo os inevitáveis papeizinhos.
Não sei como acontece esse trato no governo atual.
Na matéria da IstoÉ, evidencia-se a fragmentação da base no PMDB na campanha de 1989. Criticava-se de tudo, até o estilingue escolhido para ser a logomarca da campanha. Criticava-se que não se ouvia os políticos do partido, especialmente do “Novo PMDB”. Havia também um certo preconceito pela idade elevada (tinha 72 anos). No Roda Viva um jornalista disse que Ulysses tinha o maior índice de rejeição dentre todos os candidatos da campanha de 1989. Como o governo Dilma, Ulysses passou a procurar apoio dos governadores para formar uma base. Essa frase da matéria soa completamente atual:
Ele prestigia acima de tudo o partido, num tempo em que se canta a desimportância das legendas e quando o líder das pesquisas é exatamente Collor, que só conta com uma ficção partidária, o PRN. Da mesma forma, Ulysses insiste na defesa do Congresso e dos políticos, exatamente no instante em que a atividade político-parlamentar chega ao seu mais baixo grau de credibilidade.
Já se falava de desimportância das legendas políticas em 1989. E dizia que a atividade político-parlamentar estava no grau mais baixo de credibilidade. O que diria o repórter, José Carlos Bardawil, morto em 1997 de câncer, se estivesse vivo hoje, em tempos de Eduardo Cunha na presidência da Câmara?
Ulysses, como Dilma, tem uma longa trajetória política, os que tornam mais suscetíveis à rejeição por parte da população justamente por conta da rejeição à política de forma geral. Mas ele, ao contrário dela, acredita na saliva para formar uma base. Quem está na função da saliva hoje é o vice-presidente Michel Temer, na articulação política, e o ex-presidente Lula. Dizem que o Temer quer sair da função. Vamos ver. Como esse quadro em mente, Dilma tem que sair da retranca e gastar saliva, se não for com o congresso, que seja pelo menos com a população. O ideal, para a governabilidade, é que fosse nas duas frentes.
Segundo a reportagem, um grande vacilo de Ulysses foi ignorar a ameaça de Collor:
Ele não aceita a ideia de alguns assessores, segundo a qual Collor é, a esta altura,o adversário a ser atingido. Experiente, Ulysses considera que o jovem líder das pesquisas ainda tem muito chão pela frente antes de confirmar sua condição de favorito. Um dado recente pareceu-lhe bastante significativo: Collor foi vaiado quando compareceu às barracas da ‘Festa dos Estados’ em Brasília, há dez dias. Nesse mesmo dia, ele,Ulysses, foi aplaudido.
Ele tinha fé na máquina partidária do PMDB, mas ela não foi suficiente naquela época. Vamos ver como ela funciona nos dias de hoje para Dilma e Temer.

Ulysses Guimarães para a Status (1979)

Mais um post da série entrevistas com políticos em revistas masculinas antigas. O personagem dessa vez éUlysses Guimarães em uma conversa com o recém-eleito (na época) deputado estadual pelo MDB, Fernando Morais. A entrevista é boa para saber um pouco mais da trajetória política do “velhinho”.
Eu curtia o Ulysses quando garoto. Tinha 6 anos nas eleições de 1989 mas me lembro de torcer pro Ulisses, principalmente por causa do simpático jingle da campanha. Acho que dancei ao som do jingle. Lembro da comoção que foi a morte dele, em um acidente de helicóptero em Angra dos Reis. Se fosse vivo, completaria 100 anos em 2016.
Apesar da trajetória política, nas eleições de 1989, Ulysses não chegou no segundo turno. Com 4,73% dos votos, ficou atrás do Guilherme Afif Domingos (PL, com 4,83%), Paulo Salim Maluf (PDS, com 8,85%), Mário Covas (PSDB, com 11,51%) e Leonel Brizola (PDT, com 16,51%). Naquele 1° turno, Fernando Collor de Mello (PRN) teve 30,47% dos votos válidos e Luiz Inácio Lula da Silva (PT), 17,18%. Esses dados são da Wikipedia. Essa matéria da ISTOÉ conta um pouco o que houve na campanha presidencial de Ulysses em 1989:
Ulysses Guimarães chegou às eleições de 1989 sem o mesmo prestígio que conquistara ao longo da bela, porém derrotada, campanha pelas eleições diretas para presidente de cinco anos antes. Após ver a emenda Dante de Oliveira ser derrotada no Congresso Nacional, Ulysses se transformou em uma espécie de símbolo maior das lutas pela redemocratização plena do país naquela segunda metade dos anos 80. Mas, já quase na virada da década, a proximidade excessiva com José Sarney e suas políticas econômicas desastrosas e a costumeira dificuldade em unir o PMDB lhe cobrariam um preço alto. No fim de junho, a quatro meses da eleição, a camapanha do “Senhor Diretas” não decolara e, rapidamente, Ulysses passou a gastar mais tempo tentando remendar o seu partido do que buscando votos. Aos 72 anos, Ulysses transformara-se em uma sombra do líder da década anterior. Chegou ao final da campanha sem apoio, quase desacreditado por seus pares. Ainda assim, conquistou mais de três milhões de votos e terminou como o sétimo candidato a presidente mais votado. Esta reportagem, publicada no fim de junho de 1989, conta o momento crítico da campanha de Ulysses e como ele acreditava que seria possível reverter o fracasso que se anunciava.
Abaixo seguem dois trechos da entrevista de Ulysses no Roda Viva (em 1989):
A revista tem charges do Quino, resenhas do Maurício Kubrusly e propagandas de um livro do Paulo Francis, de imensos e modernos sound systems e de cursos para manejar uma Super-8. Uma nota da revista previa: “o primeiro Estado a ser emancipado no governo Figueiredo será Rondônia“. A entrevista que transcrevo a seguir foi realizada 4 anos antes do início da campanha das Diretas Já, que pedia o voto direto para presidência da república.
Sábias e bem humoradas lições de uma experiente raposa política: Ulysses Guimarães.
Entrevista a Fernando Morais
Quando o MDB ainda vivia o tempo das vacas magras, chegaram a atribuir-lhe as características ideais de figurante para o papel d. Quixote: alto, magro, rosto fino, mãos longas, “cavalga o esquálido rocinante da política brasileira”, descreveu-o um jornalista. Nas entrevistas, ele negaceia, rodeia, dá voltas e, sem nunca deixar uma pergunta sem resposta, jamais afirma exatamente o que o repórter quer ouvir. Nas mesas protocolares ou nos palanques, enquanto espera sua vez de falar ,ele dá a impressão de estar hibernando: os olhos semicerrados, a cabeça parece querer afundar no colarinho. Aí lhe dão a palavra — geralmente, como autoridade mais importante, ele é o último a falar — e fica “com o diabo no corpo”.
É assim o indecifrável Ulysses Silveira Guimarães, 62 anos, paulista de Rio Claro, há oito anos presidente nacional do MDB, que há mais de três décadas vem varando as crises políticas brasileiras como deputado estadual, deputado federal, duas vezes presidente da Câmara dos Deputados, ministro da Indústria e Comércio do governo parlamentarista e anti-candidato à Presidência da República em 1973.
O comedimento cuidadoso com as palavras durante as entrevistas desaparece quando Guimarães sobe num palanque. E, indiferente ao número de pessoas que estejam a ouvi-lo — pouco importa que seja uma dezena de absortos eleitores —, ele se transtorna. E, a um só tempo, ácido, elegante e irônico, ergue os braços enormes, repetindo as últimas palavras de uma frase, como a deixá-las bem gravadas na memória dos ouvintes: “Esse que está aí não é um governo, é um desgoverno. Um desgoverno. Um desgoverno”, disse várias vezes, em incontáveis palanques, na última campanha eleitoral. Nesses momentos, o rótulo de “moderado” que lhe atribuem parece injusto. Um desses repentes quase lhe custou o mandato: o pecado de ter comparado o general Geisel ao ditador Idi Amin Dada, de Uganda, na tribuna da Câmara, fez com que o machado do Ato 5 passasse semanas a ameaçar-lhe os direitos políticos.
Mesmo as alas mais “autênticas” do MDB são unânimes em concordar que, não fosse por seu estoicismo, o partido não existiria nos dias de hoje. Quando, no começo dos anos 70, a maioria dos emedebistas defendia a autodissolução de uma oposição batida nas urnas pela Arena e perseguida pelo regime em todo o país, Ulysses Guimarães era uma das poucas vozes a insistir em continuar lutando pela permanência do partido que ajudara a fundar.
Às vésperas de assumir pela sétima vez sua cadeira de deputado na Câmara Federal, Ulysses Guimarães aceitou falar a Status. Para entrevistá-lo, destacamos nosso repórter Fernando Morais, recém-eleito deputado estadual pelo MDB de São Paulo. Deixava de ser, portanto, apenas uma entrevista jornalística feita por um repórter com um veterano político, para transformar-se numa conversa entre o mais antigo e um dos mais jovens militantes da oposição brasileira. Os dois, na verdade, se reencontravam: meses antes eles percorriam juntos os palanques do interior do Estado numa “Dobradinha” eleitoral. Nas três horas de conversa, cuja íntegra transcrevemos a seguir, não faltaram sequer os conselhos oferecidos a Fernando Morais por um dos mais experientes e tarimbados políticos do Parlamento brasileiro.
– Status: Dizem que o senhor, ao conceder entrevistas, só impõe uma condição: receber o repórter às 8 horas da manhã, como agora. E dizem também que o senhos só faz isso porque sabe que os jornalistas ou trabalham até tarde ou são meio boêmios, dormem muito tarde – ou seja, o repórter já chega aqui meio fora de combate, sem muita agressividade, quando o senhor, que se recolhe cedo, está lépido, inteiro. O senhor confirma a lenda?
– É verdade que eu sempre fui, em toda a minha vida, um madrugador. Às 6 horas da manhã já estou trabalhando. Mas não há qualquer malícia, qualquer técnica nisso. É só lenda. É de manhã que eu leio umL’Express, um Newsweek, que redijo um discurso, ponho em dia minhas leituras. Tive um amigo no Rio, o Aluísio Salles, que era um sujeito muito inteligente e muito boêmio, no bom sentido. Sempre dormia quando o dia ia amanhecer. E quando eu o chamava pelo telefone, aí pelas 9, 10 horas da manhã, ele esbravejava: “Ulysses, só animal, bicho, pode estar acordado a essa hora. Ou então guarda-noturno. Eu me recuso a falar com você antes do meio-dia“. Mas acordar cedo é um velho hábito meu.
– Então está desfeita, oficialmente, a intriga.
– Ao contrário de ser um golpe, uma jogada, acho até que esse meu costume revela um apreço pela imprensa, pelos jornalistas. Primeiro porque no fim do dia a gente já está um pouco cansado. Afinal, eu tenho uma jornada de trabalho pesada, dura, e de manhã a gente está com a cabeça mais fresca. Há um outro argumento: ser presidente de um partido de oposição no Brasil, hoje, é como ser uma espécie de pronto-socorro. São cassados, presos, perseguidos que me procuram, e eu tenho que largar tudo para acudir a esses pés quebrados, a essas fraturas e atropelamentos. E em geral essas coisas ocorrem com menos freqüência de manhã. Quer dizer, nesse horário eu fico mais livre.
– Em algumas décadas de vida política ativa o senhor foi testemunha pessoal dos momentos mais importantes da vida política brasileira, não?
– Já disse que, se um dia eu me abalançasse a escrever alguma coisa como reminiscências ou memórias, eu já teria o título escolhido: “Muitos episódios e poucos personagens“. É que os nomes meteóricos, que não deixam marcas, são muitos. Mas personalidades marcantes são poucas.
– O MDB foi o segundo partido que o senhor ajudou a criar, não?
– É. Eu militei no PSD desde a fundação até sua extinção. Em 1943, ou 1944, o Getúlio despachou cá para São Paulo o Benedito Valadares para fundar o PSD. Este seria o partido para a sustentação do poder, do governo, ao passo que o PTB, também fundado pelo Getúlio, seria o partido da popularidade, da sustentação popular junto aos trabalhadores. Eu mal saíra da faculdade e tinha, como tantos outros, uma séria desconfiança de que aquilo não era para valer. Sei mesmo de muitos figurões da época que desconversaram, na hora de assinar o livro de fundação do PSD, suspeitando que o Valadares não estaria de fato credenciado pelo Getúlio, que aquilo poderia ser uma jogada… Mas, apesar disso, eu entrei para o PSD. E como seu militante fui presidente da Câmara Federal, líder da maioria e ministro de Estado, na fase parlamentarista. E depois, com muito mais intensidade, com mais poder de coordenação, participei do MDB.
– Com o fim do pluripartidarismo o senhor ingressou imediatamente no MDB?
– É, mas antes recusei alguns convites para fazer parte da Arena. Lembro-me de um fato pitoresco, ocorrido quando redigíamos os estatutos do MDB. Estávamos eu, o Tancredo Neves e o Oliveira Brito, hoje cassado, organizando o partido e começamos a pensar no nome. Estava quase decidido que seria Ação Democrática Brasileira. Mas, quando estávamos para batizar a criança, o Tancredo me disse: “Olha aqui, Ulysses, vamos dar nome de macho a esse partido. Essa UDN que aí está, com nome de mulher, já criou muita complicação nesse país. Então vamos arranjar um nome masculino, um nome de macho“. Aí nasceu o Movimento Democrático Brasileiro.
– Por que Movimento e não Partido?
– Essa gênes do MDB é importante. Não foi um nome aleatório, dado por acaso. Nós sabíamos que o partido tinha nascido de cima para baixo, por uma decisão de arbítrio, e não podíamos concordar com um partido consentido. Não havia condições para se criar um partido no Brasil, ainda mais naquela situação. Se o chamássemos de partido, começaríamos mal, farisaicos, hereges, insinceros. Ação Democrática Brasileira também seria um nome adequado, não fosse esse machismo do Tancredo. Então ficou Movimento Democrático Brasileiro.
– O senhor já tinha, então, uma larga experiência oposicionista, não?
– É, eu me elegi pela primeira vez deputado estadual pelo PSD aqui em São Paulo. E já nasci politicamente fazendo oposição, ao Ademar de Barros. A oposição era formada pelo PSD, majoritário, liderado por mim, pela UDN, liderada pelo Auro de Moura Andrade, pelo PRP, liderado pelo Loureiro Júnior, pelo Partido Comunista Brasileiro, que tinha uma banca de da onze deputados, liderada pelo Caio Prado Júnior, e pelo PTB, que à época tinha à frente a deputada Conceição da Costa Neves. Foi um período de extrema dificuldade e — por que não dizer? — de perigos.
– Nós, os deputados que nos elegemos para a Assembléia de São Paulo, vamos enfrentar uma situação semelhante nos próximos anos, fazendo oposição ao governador indicado, Salim Maluf. Que lições se pode tirar de sua experiência como opositor a Ademar de Barros?
– O Ademar usou de todos os meios disponíveis para aliciar deputados da oposição – e em alguns casos conseguiu. No final, chegamos a vencê-lo por apenas um voto de frente. Mas a Assembléia Legislativa foi cercada militarmente, invadida por um coronel um polonês violentíssimo. Liderei um pedido de intervenção no Estado, mantivemos entendimentos com Dutra nesse sentido, mas a proposta malogrou. O importante aí é ressaltar que forças heterogêneas — como as que formavam a frente de oposição — podem se entender muito bem, quando há um objetivo fundamental — que na época era fazer oposição ao governador Ademar de Barros. E era um mosaico, uma composição de forças até ideologicamente contrárias… Terminada essa fase, eu me elegi deputado federal, na época em que Getúlio Vargas se elegeu presidente, apoiado no Congresso pelo nosso partido.
– O senhor chegou a ser amigo de Vargas?
– Não. Nunca fui íntimo dele, nem nunca votei nele. Lembro-me de um episódio de contatos meus com ele. Naquela época ele recebia semanalmente os deputados em seu gabinete — aliás, no período democrático do Brasil, os presidentes recebiam deputados de qualquer partido. O que era uma rotina no Brasil democrático, hoje é motivo de manchete de jornal. Mas o Getúlio recebia os deputados de pé — sabe como é… falando com o presidente da República, sentado, o sujeito se esquece do relógio. O Getúlio, ao contrário de Juscelino, recebia os deputados um a um. O Juscelino os recebia em grupos para criar um certo constrangimento a quem quisesse fazer pedidos pessoais, paroquiais. O Getúlio ficava sentado na ponta da mesa, fumando seu indefectível charuto, ouvindo e recebendo os inevitáveis papeizinhos. Nessa época eu recebi um pedido que me tirou o sono.
– Pedido poUlysses 002lítico?
– Não, antes fosse. Eu sou de Rio Claro e tinha lá um grande amigo que me pediu nada mais nada menos que um indulto para um filho que tinha deflorado uma menina em Poços de Caldas. Esse verbo, “deflorar“, que já não se usa mais, era muito comum naquela época. Dizem até que, para um ato como esse, não existe em língua nenhuma um verbo parecido com “deflorar“. Mas a verdade é que o filho do meu amigo tinha deflorado uma jovem — e eu fiquei na maior preocupação. Como é que eu ia procurar o presidente da República do meu país para pedir um indulto para esse tipo de crime? Mas eu me armei de coragem e fui para lá. Fiz os circunlóquios, rodeei, rodeei, pedi desculpas antecipadamente, disse que ele sabia como eram as coisas da vida política e soltei a bomba. Ele deu uma sonora gargalhada e me perguntou pela situação judicial do rapaz. Eu disse que havia parecer favorável ao indulto pelo Conselho Penitenciário. Ele me disse: “Está bem, diga ao seu amigo que eu vou indultar o filho dele. Mas diga também que é para o rapaz tomar mais cuidado. Pelo menos quando voltar a Poços de Caldas“.
– Esse era um comportamento comum em Vargas?
– Aí há um dado interessante. O tipo de indulto dado pelo presidente configura a visão que ele tem da sociedade e da gravidade do delito. O Getúlio, por exemplo, era implacável no caso do abigeato — o roubo de gado. Roubou um cavalo, para o Getúlio não merecia perdão nem indulto, tinha que ir para a cadeia mesmo. É a mentalidade do gaúcho: a sobrevivência dele, da mulher, do filho, depende do cavalo. Até sua segurança, para fugir. Na tradição gaúcha, o cavaleiro e o cavalo são uma peça inteiriça. O Getúlio, no entanto, era de uma compreensão muito grande com o que dissesse respeito aos costumes, ao contrário de Dutra. Para o Dutra eu não pediria jamais isso que pedi ao Getúlio.
– E de seu convívio com Juscelino Kubitschek, que momentos importantes o senhor guarda?
– Todos sabem que eu fui um amigo íntimo de Juscelino. Como presidente da Câmara, convivi também com intimidade com as decisões mais importantes de seu governo. Sobre ele eu poderia falar uma tarde inteira, mas aqui nesta conversa com vocÊ eu gostaria de recordar um episódio importante. Juscelino é tido como um homem de habilidades, que não marcou seu governo pela temeridade, pelo ímpeto. A imagem que se tem do Juscelino não é a mesma do Dutra, de uma autoridade que se impõe. Mas Juscelino era um homem de uma extrema coragem, quando ela era necessária. É ilustrativo o episódio do Juarez Távora. O Juarez era o “vice-rei do Nordeste“, um homem que tinha participado da Revolução de 30, era marechal do Exército e foi candidato à presidência da República contra o Juscelino. De maneira que era um homem que ocupava um espaço enorme. Ele fez declarações, durante o governo de Juscelino, que se entendia que submetiam a risco o setor militar, atingiam a disciplina militar. Aquilo teve uma imensa repercussão no país. O Juscelino então convocou o Ministério e, como fazia sempre — esse era mais um traço democrático seu —, convocou para a reunião os presidentes da Câmara e do Senado. Isso ocorria sempre que ele ia tomar decisões fundamentais. Eu próprio estive lá em vários momentos difíceis, como em Jacareacanga. Na reunião, até o marechal Lott, que é um homem bravo, não deixou muito claro que a punição ao Juarez devesse ser a prisão. Não só ele, mas vários ministros temiam que a prisão desencadear um processo incontrolável. Juscelino ouviu um por um, mas não havia nenhuma decisão conclusiva. Aí ele perguntou ao Lott: “Mas essas declarações do Juarez, apesar de ele não estar na ativa, infringem o regulamento militar?” O Lott respondeu: “Sim, presidente, infringem“. Juscelino não pensou duas vezes e declarou: “Então mande prendê-lo“. Sob aquele clima tenso, ao final da reunião eu fui ao general Nélson de Mello, chefe da Casa Militar, e lhe perguntei: “Ô Nélson, o que vai acontecer agora?” E ele, muito tranqüilamente: “Não acontecerá nada. Vai crescer capim na porta da casa do Juarez. Se fosse a prisão de um capitão, de um major, talvez. Mas, depois que o Juscelino mandou prender um marechal, quem vai reagir?“. E foi o que aconteceu: nada.
– Bem, já que estamos passando em revista os presidentes com os quais o senhor teve contatos mais próximos, que pensa hoje o senhor do ex-presidente João Goulart?
– Com o Jango, que conheci bem, aconteceu uma coisa terrível parar o homem público, que é o despreparo. Ele era um bom rapaz, uma pessoa boa, um homem inclinado à generosidade pessoal, às soluções de cordialidade, não era um homem que perseguia, mas era um despreparado para o cargo. Eu me lembro de uma profecia que ouvi sobre ele, numa fase em que ele era o presidente e era respeitado até pela imprensa de todo o país. Tinha estado com o Kennedy, tudo indicava que iria prestigiar a solução parlamentarista, etc. Eu fui a Paris e estiver com o Gilberto Amado. E lá, tomando nosso champanhe, surge o nome de Jango na conversa. O Gilberto Amado me diz: “Coitado desse rapaz…” Eu não entendi e perguntei: “Mas, embaixador, coitado por quê? Um homem rico, casado com uma das mulheres mais bonitas do Brasil, moço, presidente da República. Se esse é o coitado, o que somos nós?” E ele respondeu: “Por que ele é o tipo de pessoa que pode mais do que sabe“. Isso, além de revelar o traça do talento imenso do Gilberto, dava uma cintilação do momento. No caso do Jango foi verdadeiro. E na vida pública eu tenho encontrado muita gente que pode mais do que sabe.
– Nós acabamos pulando um episódio muito importante, que foi a renúncia de Jânio Quadros…
– Nesses acontecimentos, quem teve uma participação muito grande foi o Oscar Pedroso Horta. Passados alguns anos, o Horta seria o líder do MDB na Câmara, quando eu já ocupava a presidência do partido. Não foi só por essa circunstância, mas nós nos afeiçoamos muito. E ele me distinguiu como uma amizade pessoal que me comovia, até. Basta dizer que, quando eu mudava de hotel, em Brasília, ele também se mudava, para ficar perto de mim. E o Horta era um homem que selecionava muito suas relações. Você, para entrar na intimidade do Horta, almoçar, jantar, tomar um uísque com ele, levava tempo. Ele era um homem fechado, tímido. E nessa época eu ficava muito com ele, naquelas noites intermináveis, solitárias, de Brasília. E tentei várias vezes conversar com ele, colher dele um testemunho a respeito da renúncia, mas, quando chegava a esse ponto, ele se guardava. Uma ocasião ele me disse isto: “Eu tenho no meu cofre, escrito, o meu depoimento sobre esse assunto. É a minha versão, meu testemunho sobre esse episódio“. Mas nunca me deu isso para ler. Eu até quero, na primeira oportunidade em que estiver com o Oscarzinho, filho do Horta, falar sobre isso com ele.
– Esse é o depoimento do deputado Oscar Pedroso Horta. Mas, e seu?
– A renúncia caiu como uma tromba d’água sobre as nossas cabeças. Eu estava almoçando em casa, toca o telefone, eu vou atender e era o Hugo Mosca, o diretor geral do Supremo Tribunal Federal. Ele entrou direto no assunto: “Está chegando aqui ao Supremo a notícia de que o Jânio renunciou“. Eu fiquei pasmo: “O que é isso? Veja o que há de verdadeiro e me avise“. Eu fiquei estarrecido e contei aos amigos que almoçavam comigo, mas achando aquilo meio fora de propósito. Eu resolvi telefonar ao Auro de Moura Andrade, mas com aquele espírito de quem quer saber se alguém morreu e não quer entrar direto no assunto. Eu disse: “Como é, Auro, tudo bem?“. Ele foi seco, incisivo e imediato. Fez a guilhotina funcionar: “O homem renunciou mesmo. Venha imediatamente para cá“.
– O senhor em São Paulo e ele em Brasília.Ulysses 003
– É, ele lá em Brasília. Ele era o presidente do Congresso Nacional, a quem tinha sido entregue a carta-renúncia. Disparei para o Senado e, chegando lá, já encontrei o Mazzilli, que era o presidente da Câmara e, com ele, o Alkimin, o Nélson Carneiro e outros. Duas coisas foram decididas naquele momento. A primeira é que o Mazzilli deveria ir imediatamente para o Palacio do Planalto e, como sucessor direto (o Jango estava na China), sentar na cadeira presidencial. O ato físico ali era fundamental. Porque o poder tem muita coisa de fato. Tanto tem, e infelizmente isso é o aspecto mau, que aí estão os chamados “governos de fato“. Mas ali era uma conjuntura especial. Eu disse: “Isso é um ato unilateral do Jânio, não é suscetível de apreciação, então não vamos esperar nem o Congresso se manifestar. Você dispara para o Planalto e senta na cadeira“. Há coisas que não entendo. Até amigos do Jânio disseram, depois, que ele renunciou para voltar na crista popular. O que eu entendo como forma de tomar o poder é marchar para o palácio, é tomar o palácio. Ora, quem está no palácio, sai e deixa outro sentar lá, esperando voltar, isso para mim é uma concepção de tomada de poder esdrúxula e inédita. Francamente. Então nós fizemos o inverso e dissemos: “Ô Mazzilli, um sai, o outro entra. Senta lá“.
– E como reagiu o Congresso, os deputados e senadores que apoiavam Jânio Quadros?
– Na hora da distribuição das tarefas, o Auro me chamou e disse: “Olha aqui, eu vou ler a carta do Jânio para o Congresso reunido. Mas é de se esperar que alguém levante a tese de que o Congresso não deva aceitar a renúncia, ou pelo menos a de que se deva esperar algum tempo para apreciar o pedido. Então você, Ulysses, fica encarregado de contestar aqueles que forem para a tribuna tentando advogar essas teses“. Eu alinhavei algumas idéias, entrei na Câmara e fiquei sentado num canto do plenário. O Auro leu a carta, no que foi seguido de um silêncio brutal. E, não sei por que, talvez até porque quisesse usufruir aquele momento em que ele era o centro de um acontecimento histórico, releu a carta. Eu pensei cá comigo: “Meu deus, para que o Auro vai fazer isso? Se já tivesse dado a coisa por consumada, estava tudo acabado“. De novo aquele silêncio. Ninguém chegou a ao microfone para manifestar sequer uma interjeição. Sou amigo do Jânio, mas não poderia deixar de ressaltar esse fato que mostra como é perigosa a deterioração das relações entre o Executivo e o Legislativo.
– Mas nem mesmo os janistas se pronunciaram?
– Nada. Tanto que, se você apanhar os anais do Congresso, vai verificar que aquele acontecimento de transcendental importância se limitou À leitura da carta e à decretação, pelo Auro, da vacância da presidência da República, dando posse ao Mazzilli.
– Bem, passemos para os dias atuais. As últimas eleições levaram ao Parlamento um número grande de novos deputados — entre eles eu próprio. Como presidente do MDB e com sua longa experiência de vida política, que conselhos o senhor daria a esses novatos para o bom exercício da oposição?
– Eu não me abalanço a dar conselhos. O La Rochefoucauld tinha uma máxima, que dizia que “conselho é como sol inverno: ilumina mas não aquece“. O que eu teria para oferecer seriam algumas mezinhas que eu trago no meu embornal de andarilho da política. Que seriam estas:
Primeiro: não sejam impacientes. A impaciência é uam das faces da estupidez. Eu não entendo que quem está na vida política não pode ganhar uma categoria histórica do dia para a noite. O caminho é longo, paciente, perseverante, difícil. Não pode haver afoiteza, impaciência. A impaciência não acaba só com carreiras futebolísticas.
Segundo: na política, em geral, e especialmente no poder, se você não pode fazser um amigo, nã faça um inimigo. O inimigo guarda o ódio na geladeira, para conservar. O inimigo, numa eleição, amanhece na boca da urna dizendo que a mãe do candidato não é honesta. É importante não ter inimigos pessoais. Pode-se ter adversários ferrenhos, como eu próprio tive o Adauto Lúcio Cardoso, o Carlos Lacerda, o Bilac Pinto. E aqui eu recordo um conselho do Perón a Isabelita, prevendo que ela assumiria a presidência da Argentina: “Minha filha, em política você fale muito sobre coisas, pouco sobre pessoas e nunca sobre você“. A “coisa” aí é a coisa pública, a tese.
Terceiro: em política nunca se deve proferir as palavras irreparáveis, irretratáveis. Outro episódio curioso, ocorrido com o senador César Lacerda Vergueiro. Ele tinha sido um grande amigo do Ademar, mas teve com este uma desavença séria. E passou a dizer horrores do Ademar, até da vida pessoal do Ademar. As pessoas iam aconselhá-lo, lembrando que um dia eles poderiam reconciliar-se e que aquilo ficaria mal. Ele respondia: “Nunca. Entre mim e o Ademar está o túmulo da minha mãe“. Porque ele atribuía a morte da mãe, velhinha, às perseguições que e o Ademar lhe impusera. Mas a política dá voltas: o Ademar convida o César para ser seu secretário de Justiça, e ele aceita. Como você vê, nas coisas da política, nem o túmulo da mãe é algo intransponível.
Quarto: em política você nunca deve estar tão próximo que amanhã não possa ser adversário ou inimigo. E nem tão distante que amanhã você fique em dificuldade por ter que estar próximo. Pensando que está fazendo alianças definitivas ou perenes, a pessoa faz desabafos, até pessoais, familiares. Que um dia, conforme o interlocutor, poderão ser usados contra quem falou. O Carlos Lacerda costumava dizer, quando chegava a não sei quantos copos de vinho ou de uísque: “Não me contem segredos, eu peço a vocês, porque eu não guardo segredo de ninguém. Estão advertidos“.Ulysses 004
Quinto: é preciso saber a arte de escutar. Escutar dá até enfarte, dá úlcera. É preciso ter muita paciência para escutar pessoas que se acham os reinventores da roda, da quadratura do círculo, mas você tem que escutar. Um neófito em política foi procurar o grandeSarmiento, o argentino que foi um dos maiores estadistas da América Latina, para saber qual era o segredo do bom comportamento político. Sarmiento lhe disse: “Comase la lengua!” É isso, coma a própria língua… O rei Faiçal da Arábia Saudita dizia que Deus deu ao homem dois ouvidos e uma só boca para ouvir o dobro e falar a metade.
Sexta: a grande arma de qualquer bom político é o trabalho. O esforço , a perseverança, o trabalho, constroem uma carreira. Porque só se vê o desempenho de um político na tribuna, na comissão, mas não se vê o back-ground, o esforço que isso demandou. O desempenho é apenas a ponta do iceberg, mas o que afunda o navio são os dois terços que estão submersos, não o que está à vista. Um grande professor francês me dizia que “l’arte d’improviser est n’improviser jamais” — a arte de improvisar é nunca improvisar. O Mangabeira, por exemplo, que foi um grande orador. Diziam até que ele compunha, frente a um espelho, sua presença perante a tribuna. Um bom orador precisa até saber falar pelos silêncios num discurso, como faz o Brossard. Eu próprio costumo dizer que eu tenho estrela — está certo que fui muito ajudado pelos amigos e pelos acontecimentos, mas eu vivo passando Kaol na minha estrela. Sou madrugador, levanto cedo, trabalho muito.
Essas são as mezinhas que me ocorrem. A política gratifica muito mas exige demais de você. A quota familiar que ela exige é muito grande, ela tira você da sua casa, põe você longe da sua mulher, você não vê crescer seus filhos. Isso sem falar dos tributos até dramáticos, como prisões e outros sacrifícios. Isso para o verdadeiro político, não para diletante, o tocador de flauta. Não estou falando do vaidoso, que quer ser político para chamar atenção, para botar a plaquinha na frente do carro, parar em lugar proibido.
– O senhor é tido como um oposicionista “moderado”. No entanto, eu tive oportunidade de fazer campanha junto com o senhor, nas últimas eleições, e percebi que, em cima de um palanque e com o povo na frente, o senhor se enfeza e avança sinais que costumam barrar os “autênticos” do MDB. Como é que explica essa aparente contradição?
– Eu converso muito comigo mesmo antes de fazer um pronunciamento. E não sou muito chato, não, porque até gosto de conversar comigo. Porque há sujeitos que são tão chatos que nem com eles próprios gostam de conversar. então, quando eu vou afirmar alguma coisa, eu o faço com convicção. E sei que a idéias mais importantes são as que envolvem risco, as que exigem coragem. Até dentro do partido: às vezes eu sei que o setor moderado, ou o setor autêntico, vai investir contra mim. Eu sei disso, mas pago o preço, porque se eu ficar no leguleio é pior. Eu sempre peço a Deus que não seja por medo que eu vá deixar de proferir uma palavra ou tomar uma atitude.
– Quer dizer que o senhor não tem medo?
– Não, não é isso. O tema medo é um dos que mais me fascinam. Todo homem tem medo. Há os homens que têm medo antes, que são os que se preocupam. Há os que têm medo na hora, que são os covardes. Na hora da batalha você não pode pensar que sua mulher vai ficar viúva, que você pode ficar cego ou aleijado. E há quem tenha medo depois ,são os temerários. Eu já corri até o risco de ser cassado, mas o medo de perder posições pessoais, perder um mandato, esse eu felizmente não tenho.
– É isso que o transforma em um “autêntico”?
– O general Euler Bentes me disse uma coisa há alguns meses: “Eu fico espantando, deputado. Quando o senhor vai falar, parece que fica com o diabo no corpo“. É que sou um sujeito apaixonado, o que às vezes é um defeito. Eu fico ardoroso, veemente, não consigo manter uma linha cartesiana. Mas também não sou um obstinado. Quando dizem que sou moderado, acho que confundem o meu estilo de ser, de falar nos momentos comuns, de andar, com aquilo que está dentro de mim. Sem querer pretender estabelecer a comparação, o Vieira dizia do Bernardes, que tinha cabelos brancos, que aquilo era “neve sobre o vulcão“. Aliás a comparação nem serve mesmo para mim, que não tenho cabelos.
– Há quatro anos já se dizia que o senhor emergia como a terceira força de São Paulo, o homem que poderia ser o tertius na disputa entre os senadores Quércia e Montoro pelo governo do Estado — acreditava-se que teríamos eleições diretas… Agora fala-se de novo no seu nome como alternativa à bipolarização Quércia-Montoro. O que o senhor diz dessas especulações? Eu, pessoalmente, acho que o senhor está interessado em vôos mais altos: na presidência da República, pelo voto direto…
– Nem tão interessado quanto o Magalhães Pinto…
– E talvez, por isso mesmo, mais próximo do objetivo…
– Eu falei das minhas mezinhas para os jovens, mas eu tenho algumas para mim também. Uma delas é uma frase do Alcântara Machado que diz que “em política você é mais situado do que se situa“. Então eu tenho a conjuntura, os ventos, muito à vista. Mas hoje, no Brasil, eu acho que, como dizia o Ademar, “muita água vai passar debaixo da ponte“. E não é água plácida, não. Vai passar torrente sob a nossa ponte nos próximos quatro anos. Portanto, eu não sei se até lá prevalecerá o sistema das sublegendas. Se depender do MDB, nós acabamos com elas. O que eu sei é que, se amanhã precisarem de mim para ser governador ou seja lá o que for, vão me buscar em casa. Mas não estou construindo um trabalho com essa finalidade.
– E a Presidência da República?
– Bem, afinal, foi você que, num palanque em Fernandópolis, me anunciou como “o presidente moral do Brasil“. Depois isso foi muito repetido, o Pasquim até perguntou, na entrevista que fez comigo, onde tinha surgido isso; eu disse que era coisa sua. Para ser sincero, eu desejo lhe dizer que essa é uma possibilidade que empolga a qualquer brasileiro que tenha vocação da política, do poder. Dizer que é um sacrifício, e isso e aquilo, eu não acho nada disso, não. Acho que você ter o poder, para fazer o bem para a sociedade, para seu país, é uma perspectiva fascinante. Não acho que o poder seja cadeira de espinhos, não. Nesse ponto eu estou de acordo com o Ernani Sátiro, governador da Paraíba. Toda vez que ia a Brasília ele ia me visitar — embora fosse da Arena e tivesse sido da UDN. Coisa, aliás, que o Chagas Freitas, que é do MDB, nunca fez. Mas ele sempre dizia: “Olha, Ulysses, vivem dizendo que a cadeira do poder é uma cadeira de espinhos. Só se os espinhos estão virados para baixo, porque é uma cadeira gostosa tu que é danada“.
– Mas dizem que, mais que a presidência, o senhor gostava mesmo era de fazer uma campanha eleitoral para presidência.
– E da campanha também. Eu sou bom de urna, nunca perdi uma eleição na vida… Desde meu tempo de professor normalista, quando fui eleito orador da turma. Aliás, nem houve formatura, porque nós tínhamos perdido a revolução de 32, e meu discurso era um hino a São Paulo. O delegado de polícia o proibiu, e não foi possível fazer a formatura. Você veja que, em matéria de tratar com esbirros, policiais, beleguins a serviço de ditaduras, eu já tenho um traquejo longo…
– E a anticandidatura à presidência?
– Mas aquilo não era uma eleição, era uma antieleição. E foi ali, andando pelo Brasil inteiro, falando àquelas multidões, que eu tive a perspectiva do que se poderia equacionar para oferecer àquela gente faminta um governo social, voltado para o homem, não um governo com esse modelo perverso e cruel que está aí, esse governo de pontes Rio-Niterói, de transamazônicas, de culto à personalidade. O meu grande medo era de que aquela campanha pudesse transformar-se numa coisa farisaica, porque vinham advogados, donas-de-casa, depois dos comícios dizer para mim: “Eu vou votar é no senhor para presidente da República“. Então tínhamos que esclarecer sempre que aquilo não era campanha coisa nenhuma, que aquilo era uma denúncia. Na verdade eu era um candidato que não era candidato, falando para eleitores que não eram eleitores. Foi aí que nasceu a expressão anticandidatura. Mas, retomando: dentro do espaço político que desse margem a isso, eu me candidataria. E enfrentaria a campanha de peito aberto, porque nisso também eu sou bom…
– É, eu fui testemUlysses 005unha disso. Em um fim de semana nós fizemos juntos seis ou sete comícios. No fim eu já estava meio estropiado, e o senhor, lépido, animadíssimo.
Mas não foi? E no dia seguinte, às 6 da manhã eu estava de pé. Por quê? Porque eu gosto disso, faço com prazer, com gosto. A campanha não me assustaria. Eu já percorri esse país todo oito vezes. De forma que, se o partido precisar de mim, quero dizer que estou disponível. Não vou fazer charme: é uma possibilidade que me seduz. Para usar a linguagem da revolução, podem me convocar. Não vou dizer como eles, que vou contrafeito, violentado. Não, eu sou voluntário.

Lindbergh Farias, O líder cara-pintada para a Ele Ela (1992)

Em dezembro de 1992, Lindbergh Farias estava em evidência por conta dos caras-pintadas e do impeachment do ex-presidente Fernando Collor. A Ele Ela fez uma longa entrevista com ele, criticou o cara por ser comunista e perguntou o que ele pensava do País, da política e de mulheres. É mais um post da série #entrevistas com políticos em revistas masculinas antigasComo Lula, disse que não era candidato a nada, mas desde então se elegeu duas vezes a deputado federal, prefeito de Nova Iguaçu e hoje é Senador pelo Rio de Janeiro — e é investigado, junto com Fernando Collor (que hoje é senador efoi absolvido no ano passado pelo STF) , na Operação Lava-Jato por corrupção passiva e lavagem de dinheiro.
O verbete dele na Wikipedia revela que ele não se formou em Direito (curso que estudava na época da entrevista). Em 1994, se elegeu deputado federal pelo PCdoB. Seu mandato foi de oposição ao governo Fernando Henrique Cardoso. Em 1997, aderiu trotskismo e ingressou no Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU). Por falta de coeficiente eleitoral, não conseguiu se reeleger em 1998. Pelo mesmo motivo, não se elegeu vereador em 2000. Por isso, se filiou ao PT em 2001. Em 2002, voltou à Câmara dos Deputados. Em 2004, conseguiu a prefeitura de Nova Iguaçu — com um mandato repleto de denúncias de mal uso de verba pública (mas nenhuma condenação pelo STF até agora). Em 2010, se elegeu Senador, passando Marcelo Crivella. No ano passado, concorreu ao governo do Estado do Rio de Janeiro e não chegou ao segundo turno, ficando inclusive atrás do então total desconhecido Tarcísio Motta, do PSOL.
Agora sobre os aspectos culturais da época: na época não existia smartphones (tampouco aplicativos como Whatsapp) e os protestos dos cara-pintadas foram organizados por telefone e fax. Os cinemas exibiam Questão de Honra e Querida, Eu Estiquei o Bebê. Sinead O’Connor (que lançava o primeiro discoapós bombar com o sucesso Nothing Compares 2 U), formClube da Azaracaoou par com Peter Gabriel. O suposto casal Xuxa e John-John Kennedy era bem comentado e Renato Gaúcho desfilava seus mullets por aí. Pedra sobre Pedra (com o Jorge Tadeu e o Sérgio Cabeleira ia pra Lua) havia acabado de terminar e Adriana Esteves era um brotinho. A revista pirava no “badalado Windows” pois a GUI (Graphic User Interfaces) era um avanço tremendo sobre o MS-DOS. Ruy Castro lançava O Anjo Pornográfico, a biografia de Nelson Rodrigues.  A revista publicou um artigo de Gabriel O Pensador sobre abuso contras as mulheres e se escrevia Champanha. Vendia-se multi CD players com a capacidade de programar a execução de cinco discos sem brake (veja só!). Pra se ter uma noção, o Tinder da época (na imagem ao lado) tinha quase mil inscritos!
Daniela Mercury lançava O Canto da Cidade e começava a moda da axé music, após uma ausência de 17 anos, George Harrison voltava aos palcos (incentivado pelo Eric Clapton) e lançava George Harrison Live in Japan. Houve o lançamento de Pau Doido, do Sivuca:
Vamos agora para a entrevista!
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LF 01Ele era apenas mais um estudante do curso de Medicina da Universidade Federal da Paraíba, quando resolveu lutar para melhorar os laboratórios de sua escola. Acabou entrando para o centro acadêmico, depois para o DCE e, finalmente, chegou à presidência da União Nacional dos Estudantes (UNE). Aos 22 anos, este típico filho de uma classe média nordestina trocou um futuro como médico (igual ao pai) para, como advogado, poder interferir na história do Brasil. Acabou transformado nos últimos meses na mais nova e das mais importantes lideranças políticas do país. Tão requisitado que, num espaço de dois dias, tivemos de ouvi-lo na sede da UNE, em Vila Mariana, São Paulo, e no aeroporto Santos Dumont, no Rio, onde fazia uma escala entre os vários vôos que o levaram nestas 48 horas também a Cuiabá, João Pessoa e Campinas. Conheça agora  o que pensa um dos principais responsáveis pela mobilização do impeachment de Collor – por Léo Borges.
Segue abaixo a entrevista:
– Por que, depois de fazer três anos de Medicina, você resolveu mudar para o curso de Direito?Fiz vestibular muito novo, mas depois vi que não gostava de Medicina, pois gostava de Ciências Sociais e era obrigado a estudar Biologia, Matemática, Física. Eu tinha mais inclinação para áreas humanas e para uma profissão que tivesse mais o lado social. Fiquei com medo de, como médico, me transformar em mero agente passivo da história, deixando que as coisas acontecessem sem poder interferir no quadro de injustiça que existe no país. Como advogado teria campo para essa atuação.
– Você já tinha alguma formação política antes da universidade?
O clima em minha casa foi propício para minha formação política, meu pai foi vice-presidente da UNE; sempre foi um cara muito voltado para literatura.
– Quantos são em sua família? Todos fazem política?
São três irmãos. Uma irmã já se formou em Medicina, meu irmão em Direito. Tenho um mais novo, secundarista ainda, e cada qual age politicamente de sua maneira, mas dentro de uma organização só eu.
– Você é filho de pai rico?
Sou filho de classe média. Meu pai é médico, minha mãe é assistente social, professora da universidade. Tive espaço para ter uma formação em termos culturais, educacionais. Fui formado participando de discussões sobre a vida cultural. então sou o fruto dessa minha formação e acabei dento espaço para a participação política.
– Seu pai milita politicamente ainda?
Meu pai não mexe mais com política, largou na época de estudante. Ele foi da geração dos anos rebeldes. Gosta muito de política, mas sua participação se limita hoje ao voto.
– Como foi sua adolescência?
Foi como a de qualquer outro, eu tinha até prancha de surfe. Morava na praia, em João Pessoa, jogava frescobol, era um aluno extremamente estudioso, aplicado, e praticava muito esporte. fiz natação dos sete aos 16 anos, participava do campeonato brasileiro. Depois pratiquei pólo aquático, durante cinco anos. Jogava também futebol na praia, mergulhava com meus amigos, fazia pesca submarina. Foi um período muito bom de minha vida, muito ligado à natureza.
– Sexo para você era também uma coisa natural, havia aquela coisa de comer as priminhas, sair com prostitutas, ou você aprendeu com amigos do mesmo sexo?Conheci sexo com uma namoradinha, quando eu tinha 13 anos. Ela era um pouco mais velha. Mas eu também fui com outros amigos e tudo mais. Acho que comecei minha vida sexual da melhor forma possível.
– Você tem preconceito contra o homossexualismo?
É difícil fazer de conta que não se tem preconceito algum sobre nada. Minha geração tem esse preconceito com o homossexualismo, mas tento romper, embora cada um traga em sua formação cultural um pouco.
– Qual o seu grande orgulho?
Ter derrubado o presidente da República, ou melhor, ter presidido a UNE nesse momento histórico.
– Ele não cairia sem você?
Cairia, mas não cairia sem a juventude. Poderia ter outro em meu lugar mas ele poderia não conseguir canalizar a voz da juventude, da mesma forma como poderia ter alguém que até canalizasse melhor que eu, tudo isso.
– Numa entrevista de tevê você disse que na derrubada do Collor você foi mais importante que qualquer deputado…
Eu acho que como presidente da UNE fiz um papel mais importante do que o de qualquer deputado, sim, ou seja, as entidades populares, as pessoas mesmo sem ter cargos eletivos podem fazer um papel importante na vida desse país.
– Esse seriado da Globo Anos rebeldes teve algum peso nessa sua geração e no tipo de movimento que você liderou?
No começo pode ter tido, mas não foi determinante. Aquilo mostrou para juventude que os estudantes de 1968, apesar da repressão, tiveram coragem de ir para as ruas gritar. Então, quando chegou o reajuste das mensalidades nas escolas, a UNE e a UBES foram a todos os locais despertando os estudantes: “Estão falando que você é alienado, que é da geração Coca-Cola, a universidade está praticamente se acabando, as escolas particulares aumentaram em 100 por cento as mensalidades este mês, e você vai ficar aí de braços cruzados?” O determinante foi a revolta. Não só com a corrupção do governo Collor, mas também com a miséria. Chegar em casa e ver o pai desempregado por causa da recessão e ter de pagar 100 por cento de reajuste nas escolas de um mês para outro! O determinante para mim foi a crise social, mas esse elemento subjetivo dos Anos Rebeldes ajudou também. Toda vez que a juventude, do mundo inteiro, está sem perspectivas de futuro, ela vai às ruas, por exemplo, no Leste Europeu, na queda do Muro de Berlim, em Woodstock, sempre foi assim.
– Você pode fazer alguma comparação entre a geração de seu pai, essa dos Anos Rebeldes, e a geração que você lidera?
Somos muito perseguidos por essa geração: tentam comparar muito. A gente tem de ver que são dois momentos históricos diferentes. Em 1968, a juventude estava influenciada por aquele maio de 68 na França, Daniel Vermelho, e também pela resistência contra  invasão de Praga pelos russos. Uma geração que tinha como símbolos Guevara e Fidel Castro, que sofria influência das lutas dos países africanos pela libertação, que ao mesmo tempo aqui no país sofria com a ditadura, mas que tinha coragem de exigir liberdade, democracia e até de sonhar com o socialismo. Essa geração fez também a revolução dos comportamentos, a revolução sexual, teve Woodstock, abertura total, drogas, sexo e rock. Minha geração vive um outro momento, o da queda do Muro de Berlim, do desmantelamento da União Soviética. Apesar disso, a juventude foi para as ruas, porque a crise passa por cima disso tudo. Mas, indiferente ao que acontece no mundo, passou por cima do individualismo e criou uma nova onda coletiva.
– Esse pessoal teLF 02m consciência política do que está fazendo?
Não se pode exigir que o nível de consciência dessa juventude seja grande. É exigir demais. Ela começa a armar suas próprias idéias, ter sua própria ideologia sobre o mundo. Esse é o ponto nodal, pois acaba com aquele jovem, que não queria saber de nada. Essa juventude não sente necessidade, como a de 1968 sentia, de transar como todo mundo e fumar maconha na praça escutando Bob Dylan, contestar pela forma.
– Essas explosões nesse momento precisam de liderança?
Depende de cada momento. Aqui no Brasil, essas mobilizações foram pressionada pelas entidades, que sentiram o clima de revolta que existia nas universidades. Quando a gente disse que ia fazer uma grande passeata, a imprensa não levou a sério. Mas a gente sabia que seria muito grande mesmo. A imprensa foi toda para o aeroporto receber os brasileiros que tinham recebido medalha de ouro nas Olimpíadas de Barcelona e foi pega de surpresa com nossa gigantesca passeata. Mas, não existindo clima, não adianta. Tem momentos que são as lideranças que comandam, noutros são as entidades. Agora tem casos em que, as entidades não lutam num momento histórico, perdem o bonde e a massa passa por cima. Nós fizemos a mobilização no momento certo e digo mais, se não tivesse vindo aquela passeata no dia 11, esse impeachment não seria aprovado. Não teria havido essa pressão popular.
– Popular não, ali só havia os filhos da classe média e rica…
O povo em si não é mais estudante, nem é operário, a grande massa de brasileiros vive por fora da sociedade. O Presidente Itamar Franco está preocupado com isso, com uma convulsão social, pois essa política econômica recessiva está levando o país a um grau nunca imaginado de pobreza. Isso pode transformar esse país num barril de pólvora. Os arrastões do Rio e a revolta dos pivetes em São Paulo foram uma espécie de guerra civil sem ser planejada, sem ser organizada.
– Essa juventude cara-pintada que foi para as ruas contigo era só de colégios particulares ou havia também gente das favelas, dos bairros de periferia?
O grande mérito de nosso movimento é ter conseguido ganhar as escolar particulares e públicas, reunir não só universitários mas também secundaristas. Tinha todo tipo de jovens: carentes e pessoas com melhores condições.
– Você é um dos últimos comunistas no mundo e militante do PC do B, um partido considerado politicamente arcaico. Como explica um jovem como você metido nisso?
Para entrar nessa discussão tem de ver o que é realmente arcaico, porque estão tentando passar a imagem da modernidade collorida. Tiramos o Collor, mas querem manter a filosofia de modernidade dele; modernidade só de carro importado e jatinho. Modernidade que eu vejo é o cidadão poder comer três vezes ao dia. Arcaico é a pobreza, é a miséria generalizada.
– Mas o comunismo fracassou no mundo inteiro, Lindbergh!
A maior crise que existe no planeta hoje é a crise do capitalismo. Está aí o desemprego crescendo nos Estados Unidos e nos países que exploram o Terceiro Mundo. O capitalismo significa miséria, exploração ao extremo dos povos do Terceiro Mundo. Já o socialismo é um sistema em que os meios de produção estão nas mãos dos operários, de um governo popular, um regime baseado na justiça social e na fraternidade.
– Mas na União Soviética, no Leste Europeu, isso não funciona assim e a pobreza acabou derrubando a burocracia e tal ditadura do proletariado!
Claro que não podemos esquecer essa lição e que o socialismo deve ser construído de acordo com a realidade de cada país. O socialismo não deve se prender de forma alguma a outros modelos. O socialismo que queremos deve se preocupar muito com os erros do passado, como a burocratização e a falta de canais democráticos daqueles que não faziam parte do partido oficial para poderem interferir nas decisões. Mas teve muitos acertos também nas áreas da saúde e da educação. Dizer que o socialismo enquanto sistema social foi derrotado é um absurdo. Sofreu uma derrota parcial, mas voltará e voltará com força, por causa das grandes contradições do capitalismo. T em até quem diga que a história morreu. Não posso aceitar isso, pois leva à passividade, ao ceticismo. Acho que é possível transformar esse Brasil das crises e desigualdades num Brasil diferente, sem miséria. Por isso sou comunista, sou do PC do B.
– É por isso que você é contra as privatizações? Por preferir o estado patrão?
No momento, até os que são a favor de privatizar tudo deviam estar unidos contra a forma como as privatizações estão sendo feitas, entregando as estatais por moeda podre, que não vale nada. Mas também sou contra a privatização de setores estratégicos para o desenvolvimento do país. Esses setores são intocáveis. Falam na ineficiência das estatais. Mas será que é culpa das estatais mesmo ou da administração da política corrupta dessas estatais?
– Por que a UNE fracassou na mobilização na porta da Bolsa de Valores do Rio ao tentar impedir a estatização da Acesita? A massa ainda não captou essa mensagem?
A gente não queria fazer um movimento de massa com estudantes. A gente quis apenas marcar posição. Passamos em alguns centros acadêmicos convidando as pessoas, mas não fizemos os arrastões que a gente fazia nas salas de aula, pois não havia condições para fazer isso. A discussão sobre estatização ainda não existe entre os estudantes.
– Financeiramente, a UNE vive de quê?
A UNE vive dos seminários congressos que ela realiza. Agora há também a venda de carteira de estudantes. Com a carteira da UNE o estudante paga meia entrada em cinema, teatro, shows e até em transporte coletivo. O dinheiro não é muito e vivemos graves problemas financeiros, principalmente nessas passeatas. Tivemos de gastar muito em cartaz, panfletos e carros de som.
– Mas você viaja pelo Brasil inteiro de avião? Quem é que paga isso?
Sempre que viajo para algum debate, os organizadores ou entidades que convidaram mandam as passagens de ida e volta. Não só eu, outros diretores da UNE também. Quando isso não é possível, aí a UNE tem de bancar para mim e para os outros diretores.
– Você já viajou para o exterior?
Já, conheci a Disneyworld quando tinha 11 anos , e fui também a Europa, já mais adulto.
– Em que o Collor era diferente do Itamar?
Em quase tudo. O Itamar inclusive está querendo se portar como o anti-Collor, dispensou até o porta-voz para falar diretamente com a imprensa; tem um estilo humilde de vida. Acho que na política é ainda mais acentuada a diferença e espero que se diferencie cada vez mais. Ele procura diálogo com diversos setores da sociedade, com estudantes,  trabalhadores, inclusive com os representantes das elites no Congresso.
– Representantes das elites não, representantes nossos: seu, meu, do povo. Ou você queLF 03stiona o atual sistema eleitoral estabelecido na Constituição?
Para dizer a verdade, no Congresso há uma porção de lobbies. Tem o lobby dos ruralistas, com sua imensa bancada; tem um hobby que ataca muito a gente, o dos donos de escolas particulares. Na verdade, a maioria dos deputados e senadores está comprometida com as elites. A parcela de deputados que defende os interesses populares é mínima. O fundamental que existe uma pressão forte em cima desse governo, pressão do FMI, do capital estrangeiro, para que continue no mesmo rumo de modernização do governo Collor. Por isso, deve existir por parte dos estudantes, dos trabalhadores, a pressão no sentido contrário, para mostrar ao Presidente Itamar que, se ele não tentar amenizar a crise que a gente está vivendo, em pouco tempo seu governo estará desgastado perante a sociedade.
– Essa é a posição do PC do B também?
Não, a do PC do B é outra. Essa é da UNE. Desde o processo de impeachment a gente deixava bem claro nas passeatas que nosso objetivo não era tirar o Collor e colocar Itamar. Era exigir mudanças de fato na sociedade.
– No parlamentarismo isso seria diferente?
A UNE não tirou posição sobre isso. Ela vai começar a estudar isso no final de dezembro, em Brasília. Sou favorável ao parlamentarismo, mas sem o voto distrital misto, pois estaríamos correndo o risco de ar um golpe na democracia. As minorias seriam alijadas das decisões. E a democracia sempre entra em jogo quando não consegue abrir espaço para determinado pensamento político. Há uma manobra dos grandes partidos políticos contra o sistema proporcional que fere radicalmente o princípio da minoria.
– Você recebeu convite de alguns partidos políticos para se candidatar nas próximas eleições. Você é candidato a quê?
Não sou candidato a nada. Sou candidato a ser o resto da vida um cidadão comum que está querendo dar uma opinião política. Mas quero fazer isso como advogado apenas.
– Se você não vai ser candidato a cargo eletivo, quais são seus planos como presidente da UNE, então?
Nossa gestão na UNE foi vitoriosa, mudou a face da UNE, que agora está mais representativa e tem mais acesso aos estudantes. No momento estamos lançando um projeto de educação para o Brasil que vai em cima das questões das escolas particulares, dos aumentos das mensalidades, das verbas para as universidades. Estamos também desenvolvendo um projeto de alfabetização e os estudantes universitários podem auxiliar muito nesse processo. Nesse plano pretendemos ir às favelas, ao campo, aos locais de trabalho. Também está para ser votada a Lei de Diretrizes e Bases de Educação, a LDB, a lei complementar do capítulo de educação da Constituição. Então é um momento de grandes decisões. No próximo ano, também vai ter a revisão constitucional, o momento em que a UNE vai empunhar com força a bandeira da educação para todos.
– Vocês sempre falam de verbas para as universidades, onde estudam de graça os filhos de papai rico e se esquecem do ensino básico, público e gratuito para a imensa maioria da população…
Deve existir um incentivo ao ensino básico em turmas do Primeiro e Segundo Graus. Mas não tirando recursos das universidades, pois elas não existem apenas para formar recursos humanos, engenheiros, médicos, advogados. É das universidades que saem 90 por cento da produção científica e tecnológica do nosso país. Então, retirar recursos das universidades federais é acabar com a possibilidade de desenvolvimento do país.
– Essa geração que você lidera é menos preconceituosa em relação a sexo e drogas do que as anteriores. Como você encara isso?
Não diria assim. Diria que é mais pé no chão. Ninguém hoje transa por transar. Transa porque está a fim, porque gosta da pessoa. E eu acho que tem menos drogas, e que aquele modismo que existia numa época hoje não existe tanto. Não quero negar que existam as drogas, claro, mas essa nova geração está sabendo trilhar os caminhos corretos.
– Você gosta de maconha?
Eu não consumo drogas, mas não me acho careta. Tenho amigos que fumam maconha. Inclusive sou contra aforma como tratam hoje o assunto. Sou a favor de descriminalização da maconha. É uma tremenda injustiça prender um menino de 19 anos que está fumando maconha num local qualquer, quando se devia tratar mais é das causas de tudo isso e também coibir o tráfico. Hoje não existe entre os jovens discriminação contra quem fuma maconha nem contra quem não fuma. Existe liberdade. Então se você me perguntar por que nunca fumei maconha, direi que não sei, nunca tive curiosidade. Talvez por formação mesmo, por considerar que é uma forma de se fugir da realidade.
– Você tem namorada fixa ou você está curtindo seu momento de glória e comendo todo mundo?
Não sou dos grandes comedores. Sou um cara meio romântico, gosto de me envolver; acho que aí sai melhor. Acho que o sexo é melhor quando se conhece mais a pessoa. Se bater tesão só na hora, depois é aquele vazio, você se arrepende. Por acaso estou com uma namorada agora, namorada fixa.
– Sua namorada é contrária a você politicamente?
Ah, sim, você não pode querer que a pessoa que esteja ao seu lado seja reprodutora do seu pensamento. Mas é claro também que eu não namoraria uma pessoa com quem eu não tivesse condições mínimas de conversar sobre qualquer coisa, mesmo com posições diferentes.LF 04
– Você exige fidelidade de suas namoradas?
Não sou o machista clássico nem um neomachista, mas tanto vencer todas as formas de preconceitos, de barreira. Tento me policiar em relação ao machismo porque, querendo ou não, a gente traz um pouco disso, na formação cultural, mesmo sem querer e saber. Tem relações em que acho importante a fidelidade, tanto na minha quanto dela. Tem outras que não.
– Qual é o tipo de mulher de sua preferência?
Uma mulher bonita, morena. Sou louco por morena, uma boca carnuda. As morenas são especiais. Morenas altas, de preferência de olhos puxados. Batem as louras. A Luíza Brunet é muito bonita. Tem a Isadora Ribeiro que também acho linda.
– Além das menininhas, qual é seu lazer?
Meu lazer é esporte, desde quando eu era pirralho. Esporte, livros, cinema e música. No momento estou alucinado com reggae. É a onda do momento. Gosto também do The Doors, Raul Seixas, Pink Floyd, Bob Dylan. Gosto de MPB, Caetano Veloso.
– Você pratica alguma religião, acredita em Deus?
As religiões foram usadas em diversos momentos da história como instrumentos de alienação, como forma de esconder a realidade. Diziam que havia o paraíso depois da morte e que quem sofresse aqui depois ia para o céu e que quem o explorava ia para as chamas do inferno. Engodo. A religião era o chamado ópio do povo. Atualmente, porém, há uma parte da igreja católica que fez a opção pela libertação dos povos, e faz um papel importante na mudança da realidade.
– Sua família tinha religião?
Simpatizava com a católica, mas não sou muito de igreja. Fui batizado, estudei em colégio de padres maristas, no Pio X, mas isso não influenciava. Sou muito cético, me considero um materialista. A ciência hoje consegue explicar quase tudo, acredito mesmo é na teoria científica da evolução.

Entrevista de Lula, o Metalúrgico, na revista Homem em agosto de 1981

Luís Inácio da Silva, o Lula, do recém-fundado Partido dos Trabalhadores, é o entrevistado nessa edição comemorativa de 3 anos da Revista do Homem, a primeira versão da revista Playboy no Brasil. Essa edição foi um achado. Nela, Lula fala o que pensa de sexo, gays e costumes. A entrevista foi publicada em 1981, ou seja, um pouco mais de um ano após o início do processo de fundação do PT, que, segundo a Wikipedia, foi “oficialmente reconhecido como partido político pelo Tribunal Superior de Justiça Eleitoral no dia 11 de fevereiro de 1982“.
Esse post segue a linha de #entrevistas com políticos em revistas pornográficas antigas que ando fazendo, como já fiz com a Marta Suplicy (na Ele Ela em 2000)Fernando Henrique Cardoso (na Status em 1978) eFernando Gabeira (na Ele Ela de 1986). A proposta é resgatar o que pensavam essas figuras políticas e o que falavam para essas publicações “menos nobres”.
Segue um breve histórico pré e pós-entrevista (com base no artigo da Wikipedia). Em 1977, Lula ganhou projeção nacional ao liderar a reivindicação de reajuste salarial. No ano seguinte, reeleito presidente do Sindicato de Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, “passou a liderar as negociações e as greves de metalúrgicos, que passaram a acontecer em larga escala“. Greves maciças não ocorriam no País desde endurecimento do regime militar, na década anterior. Em 1980, Lula foi preso, cassado como dirigente sindical e processado com base na Lei de Segurança Nacional — que na época se encontrava em um formato bem mais branda que o rigoroso Decreto-Lei Nº 898, de 29 de setembro de 1969, que vigorou por mais tempo no regime militar. Segue o terceiro artigo da Lei Nº 898/69: “A segurança nacional compreende, essencialmente, medidas destinadas à preservação da segurança externa e interna,
inclusive a prevenção e repressão da guerra psicológica adversa e da guerra revolucionária ou subversiva”.
Nessa entrevista para a Comissão da Verdade, Lula fala um pouco desse período de liderança das greves: “Eles [policiais] me vigiavam no cinema. Na assembleia, a gente notava que eles estavam lá. Às vezes, disfarçados no bar do sindicato. Na minha casa, por exemplo, eles paravam a perua na porta e passavam a noite. Às vezes, para encher o saco, a Marisa [Letícia, mulher de Lula] mandava fazer café e mandava levar para eles. Foram uns três ou quatros anos que eles monitoraram e me acompanharam antes da prisão“.
E diz que a prisão dele foi “um tiro no pé” dado pelos militares. “Os militares cometeram a burrice de me prender, porque não tinha mais como continuar a greve“. “O que aconteceu quando eles me prenderam? Foi uma motivação a mais para a greve continuar, as mulheres fizeram uma passeata muito bonita em São Bernardo do Campo, depois foi aquele primeiro de maio histórico, em que foi o Vinícius de Moraes, e a greve durou mais quase 30 dias“.
Esse texto (da exposição O Golpe), escrito pelo Frei Betto, fala um pouco das greves desse período:
13 de março de 1979: 80 mil metalúrgicos em greve ocupavam o gramado e as arquibancadas do estádio da Vila Euclides, em São Bernardo do Campo. Sem microfone, Lula tinha o seu discurso repetido pelos que o ouviam, como ondas sucessivas de um lago atingido por uma pedra. Dois dias depois, quando 170 mil trabalhadores já estavam parados em todo o ABC, a greve foi considerada ilegal. Na madrugada de 22 de março para 23, enquanto os metalúrgicos permaneciam em vigília no sindicato, de Brasília o ministro do Trabalho, Murilo Macedo, falava com o governador paulista, Paulo Maluf. Pouco depois, tropas da Polícia Militar garantiam a intervenção no sindicato.
A repressão ao movimento foi implacável.
Com a Vila Euclides fechada, os trabalhadores faziam suas assembleias na Igreja Matriz de São Bernardo do Campo. Mas ao discutir com os empresários a trégua de 45 dias no movimento, Lula exigiu e obteve a reabertura do estádio. O 1º de maio daquele ano coincidiu com o período da trégua. 150 mil trabalhadores participaram do ato comandado por Lula na Vila Euclides, quando Vinicius de Moraes recitou O Operário em Construção (nota: que pode ser ouvido completo aqui em português de Portugal) e correu a notícia de que o delegado Sérgio Paranhos Fleury, chefe do Esquadrão da Morte, morrera estranhamente afogado no litoral paulista.

Essa matéria da Folha de São Paulo diz que a mãe de Lula morreu durante esse período que ele esteve preso. A esposa, Marisa Letícia, intercedeu junto ao delegado Romeu Tuma, que liberou o sindicalista ir ao enterro da mãe.
Ainda de acordo com o artigo da Wikipedia, durante o movimento grevista, a ideia de fundar um partido representante dos trabalhadores amadureceu: “Em 1980, Lula se juntou a sindicalistas, intelectuais, representantes dos movimentos sociais e católicos militantes da Teologia da Libertação para formar o Partido dos Trabalhadores (PT), do qual foi o primeiro presidente“. No ano seguinte, talvez após a entrevista Revista do Homem abaixo, foi condenado pela Justiça Militar a três anos e seis meses de detenção por incitação à desordem coletiva. A sentença acabou anulada em 1982. Nesse mesmo ano, Luís Inácio da Silva incorporou Lula ao próprio nome. Então a entrevista abaixo foi feita quando ele era oficialmente só Luís Inácio da Silva.
Ao contrário do que ele diz na entrevista abaixo, ele se candidata em 1982 ao governo de São Paulo, para tentar a vaga de José Maria Marin (que foi presidente do Comitê Organizador Local da Copa do Mundo da FIFA Brasil 2014). Disputou a eleição com André Franco Montoro (PMDB e um dos fundadores do PSDB), o ex-prefeito paulistano Reinaldo de Barros (PDS), o ex-presidente Jânio Quadros (PTB) e Rogê Ferreira (PDT). Montoro venceu as eleições, deixou a sua vaga no Senado para o seu suplente: o sociólogo Fernando Henrique Cardoso. FHC foi incentivado pelo próprio Lula (além de nomes como Chico Buarque) a entrar para vida pública e concorrer à vaga ao Senado.
Em 1984, participou pela campanha Diretas Já que clamava pela volta de eleições presidenciais diretas no país, ao lado de Ulisses Guimarães, FHC, Eduardo Suplicy, Tancredo Neves e outros, da campanha Diretas Já. A campanha não foi vitoriosa mas ajudou a pressionar o governo militar. Em 1986, foi eleito deputado federal por São Paulo e participou da elaboração da Constituição Federal de 1988. Em 1989, na primeira eleição direta para presidente desde 1964, concorreu à Presidência da República. Perdeu para Fernando Collor de Mello. Nos pleitos de 1994 e 1998 perdeu a cadeira da Presidência para FHC. Em 2002, foi eleito presidente do País. Em 2006, foi reeleito. Em 2010, conseguiu emplacar a sucessora: a mineira Dilma Vana Rousseff.
Aparentemente, 1981 era um outro mundo. A revista que viria a ser a Playboy tinha ousadia o suficiente para colocar a Wilza Carla, a Dona Redonda da 1ª versão de Saramandaia, na chamada da capa. A playmate foi a atriz de pornochanchadas como Aluga-se Moças, Tânia Gomide. “Naqueles anos de ditadura as fotos eram censuradas, portanto não podia aparecer ao mesmo tempo os dois mamilos, a bunda inteira. Púbis nem pensar. O nu era insinuado, entende? O leitor tinha que usar o imaginário e criar naquele ambiente, luz apropriada, pele, cabelos, pescoço, pedaços de coxas, ombros. A sedução estava no olhar e no que era permitido mostrar“, lembrou Lívia Mund, a primeira capa da Playboy nessa entrevista.
Segue abaixo uma entrevista com o Lula antes dele disputar a sua primeira eleição para cargo público:
Lula - capa
Lula, o metalúrgico, também fala de sexoSuzete de Almeida, com colaboração especial de Sandra Mello Nascimento
Quando alguém se torna uma figura pública, e principalmente quando esse alguém se destaca politicamente, acaba virando estátua, um ser inatingível, um líder político e ponto final. Mas como um homem antes de qualquer coisa é um homem, com sexo e tudo, bateu a curiosidade de saber como um “cidadão de vida pública” vive e o que pensa quando é apenas um homem. E quem melhor do que Lula — que liderando os metalúrgicos sacudiu a vida política do País — poderia falar de sexo? Pois ele falou e disse. Com vocês, Lula, o homem.
Lula 02 - crop
Homem: Como é a vida particular de um líder?
Lula: Isso você deve perguntar ao Juruna.
Homem: Mas você não se considera um líder?
Lula: Não, me considero um líder sindical.
Homem: Você pode não concordar, mas até uma revista norte-americana, a “Newsweek”, já o definiu como herói…
Lula: Não… eu acho que cada um tem o direito de pensar como bem entende, entretanto eu acho que se alcancei uma posição de destaque dentro da minha categoria e sou respeitado por ela é porque sempre a respeitei. Em segundo lugar, acho que um líder quem sabe, já teria feito muito mais do que eu fiz. Como presidente do sindicato tentei ser honesto sem grandes discursos teóricos, falar aquilo que o povo tá falando, aquilo que o povo quer ouvir.
Homem: E a quantas anda sua vida íntima?
Lula: Praticamente não tenho vida familiar, vida particular. Minha vida é muito mais voltada para os interesses dos outros do que os da minha própria família. Eu acho que é um preço que a gente tem que pagar.
Homem: Você lê revistas masculinas?
Lula:  O quê?
Homem: “Status”, “Homem”, “Privê”…
Lula: Não leio, nem masculinas, nem femininas… quando a gente esteve preso, nós recebíamos de amigos umas revistas pra… curtir um pouco mais a solidão, só isso, mas não tenho por hábito ler.
Homem: E a classe trabalhadora?
Lula: A classe operária, você quer dizer? Acho que não, ela não é consumidora desse tipo de revista, o poder aquisitivo não permite… não que ela não goste.
Homem: Tem gente por aí dizendo que as revistas eróticas servem de compensação: o sujeito se distrai olhando as mulheres nuas e esquece do aumento do custo de vida, do salário que não dá mais para nada…
Lula: Eu acho que não é bem assim, não entra por esse aspecto da compensação, sabe? Eu acho que entra pelo fato de todo homem gostar de admirar uma bela mulher… aquele negócio todo… Olha, quando eu estava ligado à produção e caía uma revista dessas na fábrica, aquilo passava em meia hora por duzentos caras. Todo mundo queria ver. Quando chegava no fim, a coitada da revista estava ensebada de óleo e graxa.
Homem: E quanto a essas inovações, swing, ménage à trois, qual é a sua opinião?
Lula: Explica pra mim isso aí…
Homem: Sexo grupal, por exemplo, está na ordem do dia. Você é adepto?
Lula: Eu… (rindo)… não tenho muita experiência nisso, não, sabe? do que o sexo grupal e outras coisas que existem por aí… Ainda quanto a essas revistas eróticas, eu quero dizer o seguinte: acho que elas servem como um processo de discussão na medida quem que possibilitam o cara ler e abrir uma discussão em cima disso, porque nós somos um povo fechado em relação ao sexo.
Lula 03 - cropHomem: E quanto a mulher, você acha que ela precisa estar virgem antes do casamento?
Lula: Eu acho perfeitamente normal as pessoas se entenderem antes de se casar. O que eu quero dizer é que pra mim o sexo representa 50% ou mais da felicidade de um casamento. Não existe nenhum casamento que dê certo se sexualmente as pessoas não se entenderem. Acho necessário um homem descobrir se a mulher atende todos os seus desejos. E a mulher também, antes de se casarem, porque evitaria que por preconceitos e pressões familiares eles se unissem e, depois de três meses, se desquitassem. Esse é o meu pensamento pessoal, porque ninguém casa com uma estátua!
Homem: E depois do casamento, como você vê um caso extraconjugal?
Lula: …Eu acho que um homem só mantém um casos fora do casamento quando ele não consegue encontrar dentro de casa aquilo que é o desejo dele sobre mulher e sexo. Isso vale para os dois, ambos  têm direito de procurar novos caminhos; agora é difícil né, a gente dizer que… não existe um ato sexual entre um homem e uma mulher, depende da oportunidade, depende da chance e aí também os dois…
Homem: Mas alguma cantada você já deve ter levado.
Lula: Não, não, mesmo porque eu tenho consciência que eu não sou o tipo, sabe, o tipo que seja o sonho das mulheres.
Homem: Não? Nem com todo esse carisma?
Lula: Não, não, isso não tem influído.
Homem: Mas, vamos supor, quando aparece uma mulher bonita que não larga o seu pé…
Lula: Não, veja, eu tenho tomado atitudes (pausa)… primeiro porque eu sou consciente da minha responsabilidade, tenho consciência do peso que está sob os meus ombros, tenho consciência dos adversários que eu tenho, tenho consciência da especulação, e tenho consciência de que a vida não começa nem termina num ato sexual.
Homem: Hum… já entendi, você é cantando mas a responsabilidade…
Lula: Não, nunca. Se vocês souberem de alguém que esteja a fim de me cantar, avisem.
Homem: Lula, você é machista?
Lula: Depende, eu gostaria de saber o que é ser machista. Vou colocar minha situação para que entenda se isso é machismo, ou não. Muitas pessoas me criticam pelo fato de minha mulher não ter uma participação política como eu tenho. E eu acho que ela não tem que ter, porque eu tenho três filhos e alguém precisa cuidar deles. Eu não posso pagar uma empregada, assim quem tem que cuidar deles é a mulher. Quer queira, querLula 04 - crop não, o cara que tem uma vida política como a minha não pode falar, bem eu vou chegar em casa pra lavar a louça, trocar a cama, dar banho na molecada. Seria fantasia e mentira dizer isso. Então se isso é ser machista, eu sou machista.
(Silêncio)
Eu gosto de tomar banho e que minha mulher leve a roupa pra mim no banheiro. A Marisa ainda corta as unhas do meu pé, me espreme os cravos, trata de mim, e eu acho que ela se sente bem fazendo isso. Eu não admito, por exemplo, as madames que falam em independência e liberdade e colocam uma empregada doméstica ganhando cinco mil cruzeiros por mês e ainda ficam comentando: minha empregada até vê televisão, até almoça na mesa comigo. Então você quer sua liberdade subordinando uma outra pessoa num regime escravocrata?
Homem: E que solução você daria para isso?
Lula: Isso depende de uma discussão e será resolvido na medida em que a gente abra um debate livre e aberto com todos os setores da sociedade, com a mulher e com o homem, fazer todos participarem em igualdade de condições.
Homem: E como você vê o homossexualismo, o relacionamento íntimo entre pessoas do mesmo sexo?
Lula: Eu poderia dar uma de prsidente de partido e falar, cada um faça do seu corpo o que bem entender, já que a terra vai comer, então que os outros comam enquanto têm vida, mas acho que não é isso. Veja, eu não tenho preconceito não, o cara a que chamam de homossexual no nosso meio a gente chama de veado, mesmo. Eu sou contra isso, e não sei se é uma questão psicológica ou o tipo de berço que a pessoa teve. E quem sabe nós sejamos os culpados dessas pessoas serem assim, tem que entender como elas são, e embora eu não concorde com isso acho que têm o direito de existir, o direito de agirem da forma que julguem melhor, mesmo por que minha opinião a culpa é da sociedade e não delas.
Homem: O que é pra você uma mulher sexual?
Lula: Olha, eu costumo analisar uma mulher muito mais pelo que ela tem na cabeça do que pelos seus atributos físicos. Embora a aparência seja muito importante, a mulher sensual, pra mim, é aquela que pensa politicamente e não se atém a achar que os problemas dela são os principais.
Homem: Por falar em atributos físicos, qual é a para você a mulher mais gostosa do Brasil?
Lula: (leve tumulto, ele ri e fica sério imediatamentePra mim, a mulher mais gostosa do Brasil é a minha mulher.
Homem: Mas…
Lula: Eu tive duas mulheres, casei-me duas vezes… sabe, é muito difícil, eu não gostaria de responder a essa pergunta.
Homem: A Sônia Braga, por exemplo, não te atrai?
Lula: Ela me atrai como dezenas de outras mulheres, mas daí eu dizer que tem uma mais gostosa fica difícil… Fica difícil, porque você pode ser desonesto com outras pessoas. Eu prefiro votar na minha Marisa, mesmo.
Homem: Daria pra você contar como foi a sua iniciação sexual?
Lula: Minha iniciação foi aquela que todo homem, praticamente, tem. Não há nenhum segredo nisso… eu era jovem e fui convidado a ir visitar um local… que tinha umas mulheres…
Homem: Quantos anos você tinha?
Lula: Quase dezoito anos.
Homem: Você conversava isso com seu pai?
Lula: Naquele tempo não se admitia falar sobre o assunto nem com o pai…
Homem: Nem para incentivar o machismo?
Lula: Nem pra isso, não tinha esse tipo de coisa. A gente aprendia muito mais na vida do que no círculo familiar.
Homem: E fantasias sexuais do tipo transar dentro da banheira, debaixo da cama, dentro do avião,  você tem alguma?
Lula: Sabe o que acontece? Esse tipo de pergunta é distante da minha realidade, e eu nunca imaginei sequer que alguém tivesse fantasias sexuais. O trabalhador não tem tempo para isso, ele levanta às quatro horas da manhã, volta às oito da noite e já tem que dormir pra acordar cedo no dia seguinte. Não tem tempo pra isso. Então é difícil responder porque eu mentiria pra você.
Homem: Como você está vendo a escalada do sexo na televisão? Um grupo de senhoras paulistas chegou a fazer um movimento contrário a tudo isso.
Lula: Tem pessoas que defendem que o sexo deve ser ensinado na esocla, no pré-primário, certo? … Eu acho que nós temos que adaptar as mensagens sexuais levadas através da televisão, de uma forma educativa, não de uma maneira banal. Mas acabar com isso pra contentar meia dúzia de madames eu acho que é voltar a mil novecentos e nada. Agora eu acho que tem que ter um mínimo de puder pra se levar uma imagem pra dentro de uma casa onde nem todo mundo está preparado para recebê-la Tem que ser levada de forma mais educativa. Mas a coisa que mais me preocupa na televisão não é isso, mas sim a propaganda maciça que se faz do próprio regime que está aí, através de caderneta de poupança, através de financiamentos não sei do quê. Acho que isso é tão pernicioso quanto o que as madames combatem.
Lula 05 - quadro
UM PETESÃO É O QUE LULA QUER
Em pouco mais de dez anos de carreira como dirigente sindical, Luís Inácio Lula da Silva, o Lula conseguiu fazer três greves, sofrer duas intervenções, ser preso e processado. Hoje, depois de tanta luta, Lula tem mais uma batalha pela frente: a de fazer do PT um grande e forte partido.
Foi em 1951, aos seis anos de idade, que Luís Inácio da Silva saiu de Garanhuns (PE), sua terra natal, e veio para São Paulo, trazido pela família que aqui vinha tentar vida nova. Menino pobre, “miserável”, segundo suas próprias palavras, nunca teve uma bola, uma chuteira na infância e veio a ganhar o primeiro presente de sua vida aos dezenove anos, de sua noiva. Tempos difíceis.
Até os 23 anos, o jovem Luís não teve nenhum tipo de participação na política preferindo passar suas horas vagas jogando uma pelada na Vila Carioca, onde morava, lá pelos idos de 1964.
Mas, em 1968, algo iria acontecer que modificaria radicalmente sua vida e iria constituir-se na célula-base do grande líder que se tornou: “A partir do momento em que comecei a participar do sindicato, em 67-68, as coisas começaram a acontecer comigo a nível de consciência, porque até então eu não tinha nenhuma visão das coisas, nenhuma participação política.”
A partir daí sua carreira como dirigente sindical sempre esteve em ascensão e de diretor do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema ele passaria a presidente em 1975. Em 1980 já havia sofrido duas intervenções e feito três greves. Uma carreira rápida e boa, como ele mesmo classifica.
Hoje, com 35 anos, dois casamentos, três filhos, Luís Inácio da Silva, o Lula como é internacionalmente conhecido e aclamado pela classe trabalhadora, considera que a maior vitória em todos esses anos de luta sindical “foi não peder em nenhum instante a credibilidade junto à minha categoria. A Maior vitória foi conquistar o estabelecimento de uma dignidade para a classe trabalhadora brasileira, e que ela pudesse outra vez participar do cenário político e sindical deste país. A classe trabalhadora que esteve tão espezinhada ressurgiu no cenário brasileiro com muita força, acho que essa foi a maior vitória que a gente teve”.
Em 1980, Lula concretizava um velho sonho: criar o PT — Partido dos Trabalhadores — que tem como proposta “ser um núcleo onde os moradores de cada bairro, cada cidade, cada vila participem da vida política deste país, porque o PT é o único com raízes no problema da classe trabalhadora, em cima de suas próprias lutas”.
Hoje o partido está legalizado praticamente em quatorze Estados e a expectativa é que até o dia 16 de agosto deste ano o PT esteja legalizado nos demais Estados da Federação.
Porém, contrariando muitos rumores, Lula não pretende candidatar-se ao governo de São Paulo em 1982, mesmo porque “o partido não foi criado em cima da idéia de que eu teria de ser candidato. Eu não tenho pretensão sequer de ser vereador de São Bernardo”.
E por falar em eleições, ele acredita que serão realizadas, sim, desde que sejam uma exigência do povo brasileiro: “Acho que nós temos a segurança de eleições na medida em que a gente tenha capacidade de fazer o povo discutir e que a proposta seja muito mais uma exigência do povo do que uma dádiva de um projeto político feito por um governo ditatorial como o nosso. Daí por que acredito que haverá eleições em 1982 não porque o governo quer, ams se nós tivermos capacidade de fazer com que ele não possa voltar atrás na questão eleitoral”.

Martha Suplicy na Ele Ela de junho de 2000

Seguindo a linha de #entrevistascompolíticosemrevistaseróticasdasantigas (como essa com o Gabeira eessa com o FHC) agora uma entrevista com Marta Suplicy na Ele Ela de junho de 2000, quando ela ainda era pré-candidata à prefeitura de São Paulo. A entrevista foi realizada por Tarlis Batista (que faleceu dois anos depois). Na época ela ainda era casada com o Eduardo Suplicy e era do PT. Hoje, exerce um mandato de senadora, está no terceiro casamento (com o empresário Márcio Toledo) e se filiou recentemente ao PSB pra tentar novamente a prefeitura de São Paulo.
Marta Suplicy 01
Marta se filiou ao PT em 1981. De 1995 a 1998, exerceu o mandato de deputada federal e propôs leis para regulamentar a união civil entre pessoas do mesmo sexo e para criar uma cota mínima de 25% de mulheres na lista de candidatos às eleições que obedecerem ao sistema proporcional. Segundo a Wikipedia, é fundadora e ex-presidente do Instituto de Políticas Públicas Florestan Fernandes (1999-2000), organização que tem como objetivo elaborar propostas e políticas alternativas para a cidade de São Paulo e Região Metropolitana de São Paulo. Florestan foi um sociólogo e deputado constituinte pelo PT (veja aqui um Roda Viva com ele realizada um ano antes de sua morte), além de professor do também sociólogo e ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
Bacana justamente é comparar esses dois momentos (pré-prefeitura em 2000 pelo PT e pré-prefeitura em 2016 pelo PSB). Em 2001, ela sucedeu Celso Pitta (eleito com ajuda de Paulo Maluf e cassado por denúncias de corrupção). Não conseguiu se reeleger. Perdeu no segundo turno as eleições para José José Serra, que após um ano e 3 meses de mandato, renunciou para concorrer ao governo do estado de São Paulo (hoje ele é senador na vaga que era de Eduardo Suplicy). Gilberto Kassab assumiu a prefeitura, ganhou capital político e fundou o Partido Social Democrático (PSD). Hoje é o titular do Ministério das Cidades e dizem que articula/articulava a recriação do Partido Liberal (PL), para driblar a lei eleitoral e com a fusão do PL e do PSD, desidrataria o PMDB e ajudaria uma governabilidade do PT — o que, na minha opinião é uma estratégia suicida do PT a longo prazo, tipo os EUA armarem os talibãs para que estes pudessem enfrentar os soviéticos no Afeganistão.
Em 2016, ela deve concorrer ao cargo com Fernando Haddad, atual prefeito da cidade pelo PT. Nesses 16 anos, Marta deu uma volta de 180° na carreira política. São dois momentos distintos e quase duas cidades diferentes. São Paulo hoje está sufocada pela falta d’água e pela péssima mobilidade urbana. De 2000 a 2010, a cidade ganhou quase 1 milhão de habitantes. O centro ganhou novos moradores, foi criada a Virada Cultural, a linha Amarela do metrô saiu do papel e há protestos frequentes do Movimento Passe-Livre e do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto. É uma cidade em ebulição. Ela tem capital político pra ganhar novamente o cargo? Com essa guinada à direita dos eleitores e crescente ostracismo ao PT, ela ganha alguma força por ter “saído do PT”, mas ela vai ter que enfrentar os fãs do Haddad e do andamento da renegociação da dívida dos municípios, e consequente liberação da verba para o Programa de Aceleração do Crescimento para a cidade.  Ao que parece, tudo vai depender da gestão da economia nesse segundo mandato da recém-eleita Dilma Rousseff, da habilidade do novo ministro da Fazenda, Joaquim Levy, e da decisão do STF sobre o pagamento dos precatórios até 2020.
O momento cultural do País era outro em 2000. Não havia smartphones (O IPOD SÓ FOI LANÇADO EM 2001, MALANDRO!), Whatsapp (o Napster ainda estava ganhando popularidade), Youtube (2005), Mídia Ninja e qualquer coisa assim. O primeiro filme do Harry Potter só foi lançado em 2001. Adriano Calcanhoto bombava nas rádios com a versão de Devolva-me, de Lilian e Leno (do CD Público). O Kid Abelha lançava o disco Coleção, com regravações de Jorge Ben, Mutantes e Wanderléia. O LS Jack inspirava bandas como a Colapso, que lançava o disco O Castelo dos Destinos Cruzados (tem uma regravação de Pra Não Dizer que Não Felei das Flores). Renata Fan era Miss Brasil. Ana Paula Arósio e Marcos Palmeira eram os pombinhos da vez. A TV Globo exibia Uga Uga. Fagner lança dois CDs Ao Vivo para comemorar os 50 anos de carreira.
Enfim, segue a entrevista:
Martha Suplicy foi pioneira, rompendo laços que impediam a mulher de falar e aconselhar outras mulheres – e homens, também – sobre sexo, no programa TV Mulher, na Rede Globo. Ficou famosa e estabeleceu as bases para que outras mulheres pudessem chegar à fama, valendo-se da abertura que ela promoveu. Nenhuma, no entanto, tem a autoridade e mereceu tanto crédito quanto a pioneira. Mas se conquistou notoriedade abordando um tema até então tabu, também soube capitalizar o prestígio e o conceito adquiridos para se lançar na política, onde já atuava o seu marido, Eduardo Suplicy – primeiro como deputado e hoje como senador. Martha parte agora para o mais ambicioso desafio da sua vida – a disputa, nas urnas, pela Prefeitura de São Paulo. Prevalecendo os resultados das pesquisas, deverá ocupar a cadeira de Celso Pitta. E ela adianta, para os leitores de ELE ELA, quais serão as suas metas para os quatro anos em que sonha governar uma das maiores cidades do mundo, com o terceiro orçamento do Brasil.
– Quando a mulher se candidata a um cargo público e se elege, às vezes o marido fica renegado a um segundo plano. Por sorte, seu marido também é político. Como vocês lidam com essa questão?
– A questão já foi motivo de grandes reflexões entre o casal. Existe uma alternância nas relações e eu tenho essa vivência acentuada há muito tempo. Quando iniciei uma vida pública, mas não de eleição, trabalhando no programa TV Mulher, da Rede Globo, meu marido era deputado em início de carreira política e eu rapidamente fiz um nome nacional. Logo, a projeção era diferente. Depois, voltei para o consultório e o Eduardo foi ser senador – aliás, um dos senadores mais importantes da República. Aí ele passou a ter uma projeção maior. Se eleita prefeita de São Paulo, também vou ter o meu destaque. Quando um casal não compete, não tem medo da projeção do outro, isso pode ser muito vantajoso para os dois, em termos de crescimento e aproveitamento mútuo. Eu sinto que aprendi muito com a experiência do meu marido durante todos esses anos, assim como ele pôde absorver muito com a minha carreira.
Marta Suplicy 02– Quanto aos filhos, os seus se destacaram nas áreas das artes. Acho que tem alguma participação nisso?
– Não, quer dizer, não de forma objetiva, mas inconscientemente. É uma forma também de seguir uma carreira diferente e ser filho de político, o que não é uma questão fácil.
– Participou na educação sexual?
– É evidente, como qualquer boa mãe, e ainda mais sendo uma mãe informada.
– Ficou contrariada por eles não terem seguido carreira política?
– Não, nada contrariada. Sempre dei a maior força às carreiras que eles quiseram seguir. Não acho que a carreira política seja uma carreira genética ou dinastia, pelo contrário, tenho horror a isso.
– Os dois últimos prefeitos de São Paulo macularam o cargo que ocuparam, ao serem processados por diferentes razões. Quais os caminhos que a senhora pretende percorrer para recuperar a credibilidade do cargo?
– Honestidade e sinceridade não devem ser atributos adicionais, mas condições fundamentais para que se postule um cargo público. O caminho para a recuperação da credibilidade é o compromisso com a coisa pública, a transparência, abertura à participação popular e o cumprimento das propostas apresentadas à sociedade para responder aos atuais e múltiplos desafios da cidade.
– Quais serão as prioridades do seu governo, caso venha ser eleita?
– Ainda sou pré-candidata e o programa de governo é de responsabilidade do partido. Como presidente do Instituto Florestan Fernandes, venho conduzindo uma série de estudos e debates que apontaram seis prioridades:
1) inserção de São Paulo na sociedade da informação e do conhecimento;
2) desenvolvimento com geração de emprego e renda;
3) redução da violência com um novo conceito de segurança;
4) recuperação e requalificação dos espaços públicos (ênfase no repovoamento do centro e alguns projetos regionais de grande impacto na vida da cidade);
5) investimento na Educação e Saúde como prioridades absolutas da cidadania;
6) descentralização e democratização da gestão para aumentar a eficiência, o controle e a transparência.
– Existe um modelo de administração municipal que, com adaptações ou em sua totalidade, poderá vir a ser adotado na administração da Prefeitura de São Paulo?
– São Paulo é uma realidade ímpar, dadas as dimensões e os desafios de cidade global. Mas o PT já mostrou que sabe governar com seriedade, participação e transparência.
– Uma parcela do eleitorado paulistano, de forma preconceituosa, faz restrições ao seu nome devido à origem familiar. Acha que as restrições, aqui e agora, perderam hora e vez em função da sua atuação como deputada?
– Há parcelas do eleitorado cujas posições e percepções indicam os preconceitos políticos e sexuais. Embora acho que venham diminuindo gradativamente, não tenho a pretensão de ser uma unanimidade.Marta Suplicy 03
– Pretende desenvolver campanha para melhorar a atuação policial, mesmo sendo a segurança uma questão mais pertinente ao governo estadual?
– Todos os níveis do governo devem ser articular para o enfrentamento dessa questão que é colocada como prioritária pela população, mas a prefeitura pode e deve agir nesse campo. O Instituto Florestan Fernandes vem trabalhando o conceito de segurança múltipla, em que segurança inclui atuação na área específica da Guarda Municipal, educação, políticas sociais, recuperação do espaço urbano e combate ao desemprego.
– É possível criar mecanismos, na área municipal, para a geração de empregos, já que o índice de desemprego na capital paulista é um dos mais altos do Brasil?
– O poder municipal possui alguns instrumentos de regulação de atividades econômicas e urbanísticas, bem como processos de tributação que podem incentivar e refrear processos de desenvolvimento econômico, além do poder de influência política na cobrança de ações e posturas de outras instâncias de governo. Sem negar que a grande responsabilidade por esse estado de coisas se deve à política econômica assumida pelo governo federal, a prefeitura deve usar o seu potencial para enfrentar a questão do desemprego.
– Saúde Pública e Educação costumam ser temas nas campanhas eleitorais, mas são esquecidos após terem tomado posse dos cargos. A senhora irá determinar novos rumos para que tais fatos não venham a acontecer em seu governo?
– Um governo democrático e coerente não pode esquecer de suas propostas de campanha. O PT é reconhecido como um partido que prioriza, em suas gestões, saúde e educação. É o que, certamente, uma administração petista fará de fato em São Paulo.
Marta Suplicy 04– Uma boa administração na cidade de São Paulo irá credenciá-la para a Presidência da República?
– São Paulo é o terceiro orçamento do Brasil. Uma boa administração em São Paulo com certeza  tem repercussões políticas nacionais e será uma boa credencial. Mas antes de pensar na Presidência da República, quero ser candidata do meu partido e com ele ganhar as eleições e cumprir o meu mandato, fazendo o melhor governo que São Paulo já teve em todos os tempos.
– Já está na hora do Brasil ter uma mulher na Presidência?
– Já está na hora de diminuir as desigualdades em todas as instâncias de poder no país. Há uma luta mundial e um compromisso dos governos, junto à ONU, para diminuir o gapentre homens e mulheres em cargos eletivos (nota: na época, Dilma Rousseff era secretária de Minas e Energia e Comunicações no Rio Grande do Sul e ninguém cogitava que ela seria candidata à Presidência da República).
– Como vê a questão, estando num partido em que as mulheres costumam ser escolhidas mais para cargos legislativos do que executivos?
– Essa questão diz respeito a aspectos culturais mais amplos, incluindo o preconceito do eleitorado e condições subjetivas das próprias mulheres, que se refletem em desigualdade de disputa e acesso aos espaços onde o diálogo e a articulação aparentam ser mais necessários do que a decisão delegada. E as mulheres, cultural e historicamente, estão mais distantes dos centros decisórios executivos.
Marta Suplicy 05– Quais os principais defeitos do Brasil e quais as suas maiores virtudes?
– Primeiro, as boas características. Depois, o povo e o clima brasileiros e a extensão do nosso país. A unidade da língua também é uma vantagem que temos sobre os outros povos, além da riqueza das várias raças que propiciaram uma miscigenação interessante, ainda que muito injusta. Entre os principais defeitos estão a injustiça social, a má distribuição de renda, a impunidade, a qualidade da televisão e da educação.
– Se fosse eleita presidente do Brasil, quais seriam as bases do seu programa de governo?
– Não é hora para pensar nisso.

entrevista com FHC para a revista Status (1978)

FHC 1
Depois da entrevista com o Gabeira no post anterior, publico agora uma entrevista com o Fernando Henrique Cardoso na revista Status em 1978, quando ele se candidatou a senador por São Paulo pelo MDB. Ele não ganhou, mas se tornou suplente de Franco Montoro. FHC só iria tomar posse do cargo dois anos depois (essa matéria do Brasil 247 diz que foram 4 anos depois), quando Montoro renunciou ao cargo para concorrer ao cargo do governo de São Paulo. Como aponta a Wikipedia:
Em 1978, FHC saiu dos bastidores acadêmicos da política e começa daí a participar em campanhas políticas pessoalmente. Naquele ano, lançou-se candidato ao Senado por São Paulo. Sua candidatura foi apoiada pela esquerda, por parcelas da classe média mais liberal, por artistas (como Chico Buarque de Holanda), e por lideranças sindicais (como o então sindicalista Luiz Inácio da Silva, que chegou a representa-lo em comícios). FHC teve 1,2 milhões de votos, tornando-se suplente de Franco Montoro — o qual foi o responsável por conduzir FHC efetivamente à vida pública —, eleito na mesma disputa senador por São Paulo.
Em 1980, quando se extinguiu o bipartidarismo e autorizou-se o multipartidarismo, FHC filiou-se ao PMDB, partido que era o sucessor natural do antigo MDB. FHC assume uma cadeira no Senado em 1983, quando Montoro renunciou ao mandato de senador para assumir o governo de São Paulo.
Então a entrevista para a Status aconteceu justamente no momento que FHC se lançou efetivamente no meio político, o que é algo bem bacana. Não encontrei esse material em outra parte da internet, então acredito que transcrevê-la seja algo bom para o debate político em geral. A entrevista foi realizada por Jorge Cunha Lima (acho que esse daqui). Segue ela abaixo:
O intelectual Fernando Henrique Cardoso, filho e neto de generais, fala de militares, de estudantes, do futuro político do país… Entrevista a Jorge da Cunha Lima.
Fernando Henrique Cardoso afirma enfaticamente que não é função do intelectual soprar no ouvido do príncipe, muito menos no dos líderes sindicais. Mas o que o professor eleito para a cátedra “Simon Bolivar”, por dois anos, na Universidade de Cambridge, na Inglaterra, não consegue evitar, como intelectual, é que ele próprio seja considerado “o príncipe dos sociólogos brasileiros”.
Essa incomparável carreira universitária, quase inimaginável nos padrões de ensino atuais, que o levou a ser membro do Institute for Advanced Study, em Princeton, nos Estados Unidos, o mesmo que oferecia todas as condições de trabalho às reflexões de Albert Einstein, deve-se ao latim. Mal versado nessa língua, ele desistiu da faculdade de direito para cursar exclusivamente a de filosofia, o que, aliás, teve magníficas conseqüências para a cultura brasileira.
Um político amigo acha que Deus foi exagerado nas qualidades que conferiu ao neto do alferes Joaquim Ignácio Batista Cardoso, marechal fiel a Floriano Peixoto. De fato, alguns dos seus títulos – catedrático de ciências políticas, livre-docente em sociologia, doutor em ciência política e filosofia, professor de sociologia em Buenos Aires, em Santiago e em Paris – enchem páginas de um currículo sério e imponente. Foi até professor do irrequieto aluno Cohn Bendit, líder do movimento de maio na França, quando este cursava o segundo ano na Universidad de Nanterre.
Status – Como se explica o fenômeno Fernando Henrique Cardoso?
FHC – Meu pai foi militar como toda a minha família. Meu avô foi marechal Republicano, quando Floriano subiu ao poder, ele subiu junto. Até morava no velho palácio que depois ficou do Itamaraty. Como Floriano, era exaltadamente democrata. No fundo, era uma gente ligada à burocracia, ao Estado. E meu bisavô já tinha sido senado, em Goiás.
– Então o Senado já é uma “tradição” da família?
– É. Mas uma tradição local. Mas essa vida militar foi o tipo de influência que nós tínhamos. Meu pai acompanhava o Floriano na Praia Vermelha, onde assistiam às manobras da esquadra que queria bombardear o Rio. Então aprendemos que o Estado podia fazer essas e outras coisas que havia uma pátria que devia ser defendida, uma escravidão que deveria ter sido abolida.
– E essas eram as opiniões dos militares?
– Os militares eram contra os chamados “cartolas”, contra a oligarquia exportadora paulista, mas achando que São Paulo tinha o seu lado bom, como o velho Glicério da dissidência republicana, que meu avô conheceu quando veio organizar a Força Pública de São Paulo. Quando subiu Prudente, meu avô foi despachado para Mato Grosso.
– E a formação de seu pai?
– Meu pai também era militar, com as origens de 22. Ele e meu avô, todos estavam na revolução. Enfim, essa geração toda que deu Juarez Távora, Prestes, Cordeiro de Farias. Mas meu pai, além de militar, formou-se em direito, tendo, portanto, uma formação diversificada. Na Revolução de 1930 ele estava a favor; mas, depois, achou que a turma “estava aproveitando muito”, e, em 1932, eu acho que ele ficou mais a favor de São Paulo, por razões morais, apesar de meu tio-avô, general Espírito Santo Cardoso, estar do outro lado, como ministro da Guerra que era.
– E quais eram os seus interesses?
– Nunca tive tentação forte para ser militar, porque meu pai já tinha deixado de ser. Meus interesses eram outros. Fui para a faculdade de filosofia por influência de um professor secundário que tinha sido aluno dos “franceses”. Eu não tinha muita noção do que era o curso de ciências sociais, mas em interessava pelos assuntos brasileiros, principalmente por influência de um parente nosso, general Horta Barbosa, que tinha em sua casa um vidrinho de petróleo brasileiro. Assim, entramos todos na campanha, até com um jornalzinho da escola secundária.
– Ninguém sabia muito o que era sociologia naquele tempo…
– Até hoje ninguém sabe muito. Eu me interessava mais pela literatura. Tinha um contato com Décio Pignatary, com o Boris Fausto e os irmãos Campos, e até ajudei uma revistinha deles: Revista dos Novíssimos.
– E a famosa faculdade?
– Tinha um ambiente absolutamente singular. O que “nós fizemos mais tarde” se deve ao que foi realmente o clima da faculdade, esse black-ground progressista que mudou o tom dos meus interesses. Essa faculdade criada curiosamente depois da derrota de 32 por Armando Salles e pelo pessoal do jornalO Estado de S. Paulo, da mesma forma que a escola de sociologia o foi pela turma do Roberto Simonsen. Eles pretendiam criar uma elite capaz de compreender o que estava acontecendo.
– E como funcionava essa faculdade?
– Desde a fundação, começaram a vir para cá os famosos professores estrangeiros, principalmente os franceses. A geração de Antônio Cândido e Florestan Fernandes pegou a fase áurea, até 1938. Eu, que sou de 1931, ainda peguei uma parte deles. Quando eu estava no segundo ano, todos os cursos eram dados em francês. Coisa que hoje nem se imagina. Fui aluno de Roger Bastide, Paulo Ugon, Wolf, Mazaré. O clima vinha desses homens e dos que já haviam feito a faculdade, como Antônio Cândido, Fernando Azevedo e Florestan, professor que naquele tempo me influenciava.
– Mas vocês foram uns privilegiados?
– De fato, éramos uns doze ou quinze por classe. Eu não tinha maiores preocupações políticas, a preocupação era de estudar. Florestan era muito exigente. Exigia um padrão científico aliado à preocupação com a realidade nacional, e o Bastide o acompanhava nisso. Tinha amor pelo que estava acontecendo.
– Foi fácil o encontro com esse espírito científico?
– Não. Houve um desencontro. Nós entramos para lá com idéias políticas. O Brasil, o povo, os ideais socialistas. E o professor Guerrault, especialista em Descartes, em pleno curso de ciências sociais, nos ministrava o mesmo currículo que dava no Collège de France, sobre Descartes e Kant. Eu ouvindo as leituras da “singularidade no pensamento de Descartes”, com dezessete anos. Se não fosse o professor Lívio Teixeira que nos retransmitia as aulas, decididamente não teríamos podido acompanhar Kant. Só se passava do 1° para o 2° ano com “As regras do método” lidas.
– E o que você lucrou com isso?
– Isso dava uma certa formação, embora eu não seja filósofo. Eu sei ler um texto. Todos, aliás. Quem não teve essa formação cultural não mistura alhos com bugalhos. Se você tem uma boa formação, você também não desafina. Quando você está lendo um texto, não imputa ao autor a sua idéia. Você não procura ver no autor os seus problemas; você tenta entender o que ele quis colocar. Isso é um método. Tanto faz o autor, Hegel, Marx, Kant.
– E todo o curso era nesse nível?
– Ao mesmo tempo que Roger Bastide nos fazia ler a obra de Bergson e fazer a comparação entre a noção de liberdade em Bergson e Manheim, Florestan nos exigia um esforço no sentido de entender o Brasil. Ambos tentavam valorizar as técnicas de pesquisa e acabar com o sentido ensaístico em sociologia. Juntos íamos para as favelas, onde, mascando um charuto e arrastando um português afrancesado, Bastide se fazia entender perfeitamente. Isso nos motivava bastante para que tivéssemos uma atitude positiva com relação À pesquisa. Você vê: foram influências desencontradas – uma lá em cima, de filosofia, outra na favela, a sociologia empírica.
– Vocês foram os beneficiários da guerra…
– Além da vinda dos franceses, nós indiretamente também fomos beneficiários de outra coisa da Guerra Civil espanhola. Ela botou da para fora uma enorme quantidade de intelectuais de primeira linha que foram para o México, e lá organizaram o Fondo de Cultura Economica que até hoje é uma das maiores editoras mexicanas. Eles traduziram todos os textos alemães: Marx, Manheim e tudo o que havia de importante na sociologia alemã. Sem eles, isso nunca chegaria aqui.
– Um esquema desses pode mudar os rumos da cultura?
– É realmente significativo o que pode fazer, não uma pessoa, mas uma geração, e as que se sucedem. Antônio Cândido foi o produto mais harmonioso da faculdade. De fato, pode-se exercer uma influência enorme. E isso é um problema que a universidade tem hoje no Brasil. Essa coisa que eu descrevi é obviamente uma educação de elite. Não dá mais para manter. De alguma maneira os objetivos da reforma universitária foram solicitados por nós mesmos. Essa mesma elite resolveu se preocupar com o outro lado da questão em vez de ficar elitista: Fernando Azevedo, Octávio Ianni, Antônio Cândido e vários outros resolveram se preocupar com o povo.
– E a universidade hoje?
– Resolveu se massificar. Milhares fazendo vestibular. Isso é um sinal positivo. Mas a universidade não foi capaz de se transformar. Ela não se preparou para o ensino de massa. Perdeu um pouco o sentido mas continua funcionando bem em vários setores. Continua produzindo suas teses. Mas com a pressão da opressão externa – com a incapacidade de levar adiante a integração com os problemas do país, os problemas populares e simultaneamente o ensino de massa – isso vai ter efeitos desastrados.
– O que era fundamental?
– A pedra angular da formação da gente era fazer a tese. Sistema misto do francês. Fazer a grande tese. A teses d’Etat. Dessas, cujos livros ficam de pé, como as nossas. A Guerra dos Tupinambás, de Florestan, é um livro básico. Os Parceiros do Rio Bonito, de Antônio Cândido, é um livro que fica. A gente fazia o trabalho. Formamos um grupo que tinha ofício. Nós temos um ofício. Não é questão de você ter talento. É ter um ofício, ofício de escritor. Ofício de fazer pesquisa. E tudo se fazia aqui. Só depois se ia para o exterior.
– E na Europa, o que você aprendeu?
– Eu, pessoalmente, não aprendi muita coisa no sentido de formação. Aprendi com o Tourraine, catedrático de sociologia na École de Hautes Études, que já havia estado no Brasilo, onde exerceu grande influência, por ser o primeiro a discutir o tema dos operários. Quando ele pegou nossos trabalhos sobre a classe operária em 58, disse: “Cuidado, vocês pensam que estão na Europa. Isso aqui (referia-se ao Brasil e à América Latina em geral). É uma sociedade onde os temas são outros. Há um movimento de formação da nação. E, prestem atenção: esse populismo que está aí vocês têm que analisá-lo positivamente, para não pensar que é populismo e, portanto, não é consciência de classe”.
– E o intelectual nisso tudo?
– Ser intelectual é você ser capaz de problematizar. Se você não tem problemas, você não é intelectual. A nossa questão é saber qual é o problema do Brasil. A força de um intelectual não é ele ser capaz de citar um autor, isso ou aquilo. É ele ser capaz de fazer as perguntas pertinentes, filtrando a sua experiência cultural diante de uma realidade que o desafia. Se você não é capaz de ter dúvidas, você não é intelectual. A definição do caipira, com maldade para o caipira, é do homem que não se espanta. A praça Vendome para ele é igualzinho que nem Xiririca. Mas isso de se espantar não depende só de você, mas de a sociedade estar colocando problemas que te levam à dúvida.
FHC 06– E a sua geração se questionou?
– Nós saímos muito acadêmicos da faculdade. Depois de Jânio na Prefeitura você assiste à queda de Getúlio em 54. Há tentativas de gole em 54 e depois em 55. Tem o novembro de 55 e vem o Juscelino. É uma fase intenso movimento popular, panela vazia e outras passeatas. Havia forte pressão social como hoje. Então, nós podemos pensar que estamos na Europa, que a classe operária vai se fortalecer e que o populismo vai perder vigência e que você vai ter um comportamento mais de classe do que de massa. Essa é a grande discussão. Como naquele tempo foi a do nacionalismo, o problema dos partidos e o Iseb que colocava questões que não estavam nos nossos textos. É fácil dizer que o problema do nacionalismo é um problema burguês. Mas esse problema mexe com o Exército, a classe média, com os sindicatos, estudantes e grande parte do povo. Nós saímos da academia quando percebemos que a sociedade brasileira começou a colocar questões. Já a minha tese de livre-docência, diferente da anterior que explicava como se aplicam os métodos dialéticos, é sobre os empresários, como a do Octávio Ianni foi sobre o Estado.
– E isso mudou a visão?
– Com a Florestan e Tourraine fizemos estudos sobre sociologia industrial do trabalho. Nas pesquisas eu vi queas idéias que eu tinha sobre os empresários não funcionavam. As idéias eram as seguintes: vai haver um empresariado nacionalista que vai se transformar o país em aliança com a classe operária e o povo e tal… Verifiquei que a idéia era outra: eles já estavam entrando em associação com empresários estrangeiros em geral e americanos em particular e que já tinham medo do Estado, naquela época.
– E como vocês saíram do casulo?
– Depois veio 64. Eu já tinha bastante leitura. Tinha publicado, mas basicamente no Brasil. Tinha um convite anterior e fui para o Chile, para a Cepal. Já tinha estado na Europa, sofrido muito influência externa, mas não tinha influenciado lá fora. Entendi então a especificidade da situação latin-americana. A Cepal contribuiu para que pensássemos nisso aqui e não na teoria clássica do desenvolvimento, em vez de dizer que a divisão internacional do trabalho resolve tudo. Como resolve? Se nós exportamos produtos agrícolas e importamos produtos industriais, e se há uma diferença de valor do trabalho metido com esses dois, que se perde na troca?
– E quais foram os benefícios dessa abertura?
– Vimos que os problemas que nos parecia brasileiros não eram apenas brasileiros, eram latino-americanos. Na minha geração, havia uma idéia de que nós não temos nada a ver com a América Latina, a ilusão de pensar que não somos latino-americanos. Celso Furtado já tinha passado por isso e, então, sucessivamente, pela primeira vez na história intelectual do Brasil, nossa consciência consistentemente se latinizou. E hoje eu vendo mais os meus livros fora do Brasil, com traduções espanholas, alemãs, francesas e americanas. O que Dependência e Desenvolvimento na América Latina diz é que não se pode pensar nisso tudo sem a teoria científica, mas que isso tudo tem de ser recriado em função das perguntas pertinentes a situações reais. “As aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá”.
– Como é que elas gorjeiam aqui?
– Qualquer processo importante no Brasil começa de pernas para o ar. Veja a industrialização. Nós não produzimos os primeiros produtos da história da industrialização. Nós demos um salto. Aqui não se dá a revolução lenta da descoberta, da apropriação da descoberta. Aqui a história é síntese. No caso da América Latina sobre os grandes momentos de transformação a gente deve se indagar como é que o mesmo é diferente?
– E como é que se explica o grande atraso político?
– Essa é uma coisa importante e cruel. Mas mostra perfeitamente que o poder não é igual à inteligência. É um processo bastante dissociado. E talvez até os fracassos na escala do poder seja cúmplices do ponto de vista da imaginação, da intelligentsia. Por que fracassamos? No livrinho, eu pergunto: O que aconteceu na América Latina? Houve a industrialização, o Estado se fortaleceu. Entretanto, não acontece o que a teoria da modernização dizia: que o conjunto da sociedade vai se transformar, que haverá uma democratização, que haverá uma esfera política mais integrada com a esfera econômica etc. Nem aconteceu o fato de que disso vai derivar a independência nacional. Nem uma coisa nem outra.
FHC 05– Então houve a causa e não houve o efeito?
– É isso mesmo. O que aconteceu? Alguns dizem que não aconteceu, porque tal classe não cumpriu o seu papel, que a burguesia nacional também não desempenhou. Não é verdade. As burguesias nacionais americanas acumularam, capitalizaram e cresceram muito. O que elas não fizeram foi a independência nacional tal qual as ideologias nacionalistas propunham. Mas, o bem material delas, elas fizeram. Outros diziam que não vai haver desenvolvimento, que o que houve foi um desenvolvimento do subdesenvolvimento. Eu não acho isso. Está havendo um crescimento real. Nós estamos tendo um tipo de desenvolvimento que é dependente e associado. Dependente quer dizer: a tecnologia não é nossa. Vem de lá. Os capitais também dependem do circuito internacional. Mas ela é associada através das joint ventures, das empresas privadas com as privadas, e das estatais com as multinacionais. Isso dá um tipo de crescimento. Novo. Por quê? Porque as teorias diziam: ou bem o capitalismo vai se espalhar no mundo e se homogeneizar, crescer igual, dar os mesmos frutos, cidadania etc., que é a teoria liberal otimista – diziam – ou que era impossível haver crescimento porque havia espoliação. Então a periferia não vai, porque o imperialismo colonializa e não deixa crescer. Não deu cara nem coroa. Não houve nada disso.
– Como se pode entender o Brasil nisso tudo?
– O Brasil está crescendo, se desenvolvendo. Igual ao que está dando nos Estados Unidos. Não é o desenvolvimento lento e progressivo da Europa. O capital nasce aqui sob a forma oligopólica, com grandes unidades de produção e grandes empresas. Mas não se homogeiniza essa sociedade como a norte-americana. E não há um breque possível nesse tipo de desenvolvimento num prazo previsível.
– E em termos de civilização?
– Aí é outra coisa. Pode ser que haja uma decadência da civilização, uma hecatombe, uma ruptura ecológica. Não havendo grandes opções desse gênero, num prazo previsível, uma década ou duas, eu não vejo nenhuma força de contenção. Pelo contrário. Vamos crescer ainda mais no Brasil. Não podemos nos esquecer desse tamanho territorial, essa base física. Quantos países têm, como o Brasil, uma fronteira agrícola em expansão? Isso é um amortecedor das pressões sociais. Nos século 19, a Europa botou para fora 60 milhões de pessoas. Aqui temos uma superexploração de um lado e simultaneamente o que há de mais avançado. E muita fronteira disponível. E eu pergunto: o que é uma teoria política para isso tudo? Para o povo? Que povo? O do Nordeste? O da Amazônia? Como juntar as aspirações de todo mundo num só projeto?
 Como crescer nesse contexto?
– Há um processo de crescimento, por mais cruel que ele seja. No governo Médici, houve mortalidade infantil, contenção salarial e tudo mais, mas isso não impediu que houvesse mobilidade social. Então você tem ao mesmo tempo mobilidade e exploração. Você tem uma classe média que consome, uma expectativa de consumo em certos segmentos da classe popular e muita miséria do outro lado. Você falou em fracasso da nossa geração. Eu acho que pelo menos intelectualmente nós entendemos o que está acontecendo. O que está havendo aqui é o desenvolvimento sob a forma oligopólica do capitalismo. O que significa: grande unidade de produção e o Estado. Não existe capitalismo oligopólico sem que o Estado esteja metido no próprio coração do crescimento. Daí, essa briga entre o setor privado e o setor público que, a meu ver, é um pouco falsa. Ela é verdadeira por um ângulo, o daqueles que são eliminados, mas os outros sabem que sem o Estado não vão para a frente.
– O Estado forte não ajuda esse capital privado?
– Não tenha dúvida. O capital privado precisa do Estado forte. E a nossa pergunta é essa: dá para fazer democracia com um capitalismo oligopólico? O problema está aflorando. Nós sentimos democracia na forma liberal que é necessária. Mas não basta. É preciso uma democracia substantiva: entender as necessidades da massa (incluindo entre as necessidades a liberdade); pleno emprego, saúde, mobilidade, educação, participação efetiva. Mas não basta isso ser só no sistema político, na eleição. Cada vez menos no mundo moderno os parlamentos decidem sobre coisas importantes. Então é participação no parlamento e fora dele. Se você quer democracia, é tão importante quanto saber se vai haver um, dois ou três partidos, saber quem tem acesso à televisão. A facção que tem acesso à televisão tem acesso à informação da massa.
FHC 04– Há possibilidade de convivência de um sistema de poderes concentrados pela burguesia com o sistema democrático?
– Nos Estados Unidos há alguma. Na Europa, também. Embora nos Estados Unidos não há sistema estatista. No Brasil, democratizar significa democratizar o Estado. Mesmo que você vote livremente amanhã, sem cassados etc., se os deputados forem ter as funções que eles têm hoje, isso não muda muito a questão. As decisões importantes não passam pela Câmara. Democratizar é você dar acesso ao público, para o público controlar a decisão. Nas democracias avançadas, não é pela propriedade que você define se uma grande empresa é pública ou privada. Quando ela tem interesse público, ela é submetida ao seu controle. Isso é democracia.
– Você não acha que certos escalões do Exército entenderam o papel do Estado?
– Entenderam mais depressa do que as oposições. Entenderam e utilizam esse papel do Estado. Isso quer dizer que não basta democracia liberal. Não se é contra o liberalismo, mas há um aspecto da economia liberal que é velho mesmo. É quando se quer ver o Estado e a Sociedade separados. O Estado com funções mínimas, para ele. Tanto no regime socialista quanto no capitalismo, o Estado cresce. Não adianta mandar parar de crescer. O que é preciso é ver como é que você controla o Estado. E não que ele continue instrumento de uma burocracia e de uma oligarquia. Aqui ele é instrumento simultâneo de uma burocracia militar e civil e de uma plutocracia que também se beneficia. Democratizar é transformar tudo isso numa questão pública.
– E no plano cultural?
– Hoje, bem ou mal, você tem uma classe média que tem informações. A universidade há vinte anos tinha 100 mil estudantes. Hoje tem 1 milhão e 400 mil. O verdadeiro milagre brasileiro acontece através da universidade: porque a universidade é ruim, mas o estudante passar por ela e melhora. O que mostra que não é só no ensino que se aprende, mas na convivência. Na sociedade contemporânea você não consegue mover a sociedade somente através do pão.
– Você esteve na Europa em maio de 1968?
– Eu era professor de teoria da sociologia, em Nanterre, um departamento muito bom da Universidade de Paris, com Alain Tourraine, Coziet, Lefebvre e outros grandes nomes da sociologia francesa atual. Naquela época, eu dava aula para o grupo do Cohn Bendit. O que aconteceu naquela época? Aqueles alunos sabiam muito pouco de marxismo, e eu dava aula sobre Weber, Marx. Marcuse, eles já tinham ouvido falar mas não tinham lido. Marcuse só foi traduzido na França em 1968 exatamente. Em inglês ninguém lia. Pois foram esses alunos que fizeram o movimento de 22 de março que se notabilizou no mundo inteiro. Quando você olha o que eles escreviam nos muros naquela época, não há nada sobre lutas de classe. Nada sobre imperialismo.
– E os operários?
– Vinham à universidade e assistiam um pouco atônitos às discussões. O operário francês é operário, não é igual aos estudantes. É de outro mundo. No fim, você não explica o que aconteceu na França pelos estudantes, porque, afinal os operários ocuparam as fábricas. Havia na França duas reivindicações, as salariais e sociais, e as reivindicações culturais, mais existenciais. Isso me deu uma certa idéia do mundo moderno: eu via aquelas passeatas enormes, nas quais o pessoal saía com bandeiras negras do anarquismo e cantava a Internacional, que dizia: “de pés, famélicos do mundo”, todos bem nutridos, bem vestidos, desfilado em Paris.
– Que revolta era essa?
– Não era a revolta de Marcuse. Esse achava que a revolta viria dos guetos, do Vietnã. Era uma revolta norte-americana, de uma forte realidade americana, não era a revolta francesa. Não foram os guetos que falaram na França. Foi a classe média e a classe operária. Por isso, Marcuse espantou os professores franceses, pois ele esteve conosco naqueles dias de maio, ao dizer aos jovens assistentes de Nanterre: – vocês precisam ler Platão.
– E o que isso tem a ver com o Brasil?
– Passados dez anos, tanto aqui como lá esses problemas não estão resolvidos. No Brasil, embora haja a Amazônia e os bóias-frias, há uma classe média, que é como se você estivesse em Paris. Movimento feminista, comunicação visual muito rápida. Para decifrar o enigma brasileiro você tem que juntar reivindicações , que são da classe media, com as que são da classe operaria, misturando-as com ecologia, modernidade, etc.  Aqui, em 68, havia o ideal da revolução rápida e por via militar. O golpe forte. A ideia de quebrar e instaurar o mundo novo. Lá, não havia isso em nível político, mas em nível existencial. E você continua sem teoria para esses problemas. Nos ainda estamos usando as teorias do século 19. Tudo o que se generaliza perde a forca. Hoje, na universidade, nos setores de ciências humanas, quase todos são marxistas, mas não sabem o que falam. Quer dizer que Marx falava de uma realidade muito viva, a perspectiva da transformação através da classe operaria. Tinha o exemplo da comuna, da revolução de 48, a expectativa da crise mundial, e o Estado que não entrava na jogada. Hoje, nos setores intelectuais, as pessoas continuam excitadas com as mesmas ideias e o mundo não é mais esse. Não é que não hajam mais revoluções, transformações. Mas nos já não estamos no século 19. Estamos marchando para o 21, e não temos teoria para isso.
– O Ocidente não esta sem vetor político?
Eu acho. Mas veja, vou formular de outra maneira. A nossa geração sentiu a crise dos modelos de transformação. Nos anos 20 tem a revolução socialista. Nos anos 30, os processos de Moscou. Nos anos 50, a crise da Hungria. Depois, aquele universo concentracionário. Então vai diminuindo o poder de atração do modelo. Tinha o modelo da China, de sobra. Um socialismo parco, mas decente. Isso deu sobrevida a muita energia política. Que aconteceu? Veio a camarilha dos 4, entre aspas. Mudanças bruscas. Na América Latina, o que teve mais forca foi o mito de Cuba. Mas veio de lá toda a experiência de guerrilha que fracassou. Então hoje você tem um mundo em que a transformação não tem modelo galvanizador.
– E a permanência do capitalismo não tem sido mais frequente do que as transformações, em concordata?
E um dado real, mas se você quiser ver a historia num enfoque a la Toynbee, do fim do século para cá, verificaremos que o capitalismo esta diminuindo, não se expandiu. O que você não tem são os modelos de fazer o que. Por que Carter esta dando um certo charme ao capitalismo? Porque faltam ideias-força, falta no que crer.
FHC 03– O socialismo europeu, o eurocomunismo esta apresentando alguma novidade?
São adaptações, mas com novidade. Seria simplista imaginar que o eurocomunismo seria uma pratica para enganar capitalista, ou apenas uma adaptação, uma vacilação ou uma traição das lideranças e dos ideais comunistas. Não é isso. É que a classe operaria europeia aceitou os valores do parlamentarismo, da Republica parlamentar. O Gramsci já tinha visto isso, há muito tempo. Qual era a discussão? O que aconteceu na União Soviética se entende, no mundo Oriental; agora, no Ocidente não é assim. E a Itália não é uma coisa nem outra (na época dele, pois hoje a Itália esta mais homogeneizada no capitalismo).  O que eu acho que o eurocomunismo faz é tentar ver como é possível ter uma posição socialista, de esquerda, comunista, num mundo que nao aceita a ditadura, sequer a ditadura do proletariado. Hoje o Partido Comunista Italiano não exige que as pessoas sejam comunistas para serem membros. O que os intelectuais precisam se indagar é: Qual é a nossa? Como é que se pode organizar e mudar a sociedade?
– E a chamada revolução comportamental?
Foi um passing by. Tentativa de passar por cima. Mas fracassou. Não fomos capazes de sintetizar o impulso de liberação do comportamento e as transformações sociais. Resultou essa irritação reciproca: os que são militantes desprezando os que querem um novo modo de vida, e os que vivem esse modo, desprezando os militantes.
– Nesse quadro, quais as marcas brasileiras que ainda pesam hoje?
Ate hoje pesa sobre nos a escravidão. Somos uma sociedade autoritária. Em nossas relações nos somos ao mesmo tempo cordiais e autoritários. Isso é escravidão. Saint Hilaire dizia que as mulheres brasileiras, no século 19, gritavam quando falavam. Elas estavam acostumadas a mandar nos escravos.
– E na política?
O autoritarismo político é reforçado pelo autoritarismo, que é social. E esse é um caráter bem anterior aos nossos dias. Além do que somos um pais que teve a sua transformação econômica, empresarial,  sem a revolução burguesa, no sentido pleno da palavra. Tudo se deu num tremendo sistema de acomodação das classes dominantes. É um autoritarismo para baixo, enquanto é conciliador ao nível da classe dominante. Na Europa houve a Revolução Francesa; nos Estados Unidos, a Guerra da Secessão. Aqui, é certo, você teve a Republica: o setor cafeicultor que não tinha escravos predominou sobre o outro. Mas ambos incorporam o imigrante.  E o preto ficou  marginalizado. A Republica incorporou os setores aristocráticos que lhe faziam oposição. Rodrigues Alves, conselheiro do Império, na Republica foi presidente da Republica.
– E isso é brasileiro?
Vou dar um exemplo. Nos Estados Unidos, ninguém entra na zona dos guetos, senão leva paulada. Os guetos se defendem. Aqui, você leva turistas para ver as favelas.
– E como mudar as coisas?
Numa sociedade de base oligopólica, você não pode dar as costas para o Estado e para a política. Dai a importância do partidos políticos. Dai o perigo do preconceito antipartido. Aqueles que pensam que só tem a olhar para a base da sociedade. Isso pode deslocar a luta de sua arena, que é o Estado.
– Quais os benefícios e malefícios da Revolução de 64, nesse aspecto?
Eu não falaria em benefícios. Mas ela acelerou as transformações econômicas. Acelerou o crescimento que já era tendencial. As grandes linhas de desenvolvimento não foram feitas em 64, mas antes, com Getúlio, Juscelino e por aí afora. É preciso um pouco mais de perspectiva histórica para saber o que realmente ocorreu. Mas é óbvio que eles souberam pilotar no sentido do desenvolvimento. Esse crescimento é baseado no oligopólio, na exploração do trabalho e na concentração de rendas. Mas, o mal, mesmo, foi a revolução não ter, em certos momentos, cortado os nos górdios, ou seja, foi reposto todo o sistema autoritário tradicional. Nenhum passo foi dado, não digo no sentido da esquerda, do socialismo, mas não foi dado um passo sequer no sentido da modernização capitalista, dentro da sociedade.
Por isso, não resolveram o sistema político. Fizeram uma montagem do estilo tradicional. A versão nova do “bico de pena”. Tudo vem de cima para baixo, como na Republica Velha. Estamos na Republica oligárquica, só que essa oligarquia agora é composta por plutocratas, dos grandes bancos e de burocratas, unidos na tarefa de deter a marcha da participação popular.
– Ate que ponto há eficiência nesse processo?
Eles podem criar um partido da ordem estabelecida que seja mais modernizador. Contudo não é ainda o que eles estão fazendo. A montagem ainda não é essa.
– E as oposições?
Também tem que chegar a isso. Tem que formar os partidos contemporâneos para juntar os assalariados, em termos de reivindicações sociais e culturais. E é simultâneo esse negocio. Tem que elaborar um estratégia de transformação que pegue a classe media, o pessoal do campo e os trabalhadores que tem reivindicações muito diferentes. Eu no acredito que a teoria tradicional dos partidos resolva isso. A sociedade é muito heterogênea para suportar um partido desse tipo. Ela comporta melhor partidos como o PTB ou o MDB mesmo, mais do que homogênea, que sejam confederações de partidos. Mais elásticos do que rijos, porem não tão frouxos que comportem tudo. Ele tem que se identificar com o partido dos assalariados e não dos poderosos.
FHC 02– Na formulação teórica dos novos partidos não esta havendo um cegueira?
Imensa, a meu ver. E isso deriva da ideia de que estamos na Europa e não nessa América contraditória. Imagine que a discussão se faz assim: isso pode ser uma social democracia ou um partido bolchevique? Nem social democracia nem bolchevique. Social democracia supõe a existência de uma burguesia prospera, de um Estado que não esteja controlando os setores importantes dos sistema produtivo, com uma classe trabalhadora também ampla e poderosa que possa fazer uma aliança com a burguesia. Não temos nada disso. Por outro lado, como um partido bolchevique? Qual é a classe social que esta disposta a suportar esse tipo de transformação rápida de cima para baixo, controlada por um grupo de quadros que tem a noção do que é conceito da classe e do futuro, e que se não for aceita impõe esse conceito pela forca.
– E qual é a saída, pelo menos teórica, para o impasse?
Eu acho que só há saída teórica depois que houver saída pratica. Isso é que é a tragédia da intelligentsia. Será que é possível criar um partido que seja democrático nos seus métodos, e socialista no seu horizonte? Um partido que não venha com a ideia préfabricada, mas que esteja disposto a discutir com vários grupos, que aceite a critica da base da sociedade e das sociedades de base? O que é isso? A primeira questão é discutir como vai ser o Estado.  Quem vai controlar esse Estado? De que maneira? Qualquer outra coisa seria um voluntarismo intelectualóide. Dizer: tem que ser confiscado isso e aquilo, é coisa para quem quer falar sozinho. Ninguém vai te apoiar nisso. Nessa teoria, você pode apaziguar a consciência, mas não move uma perna.
– E qual seria a distinção entre o desempenho dos intelectuais e da classe operaria?
O papel do intelectual não deve nem pode ser muito mais do que tentar articular as grandes linhas para serem submetidas ao debate. Eu acho muito perigoso quando um intelectual se supõe líder, pensa que ele substitui o pensamento efetivo das classes. Isso da autoritarismo. Quando você esta convencido de que você sabe, você vai impor ao outro que você sabe. E o intelectual, quase por profissão, é o homem que pensa que sabe. Então, deve ter uma participação ampla, mas controlada. O decisivo não pode ser dado por ele, deve ser dado pelos trabalhadores, pelas associações de bairro, pelos sindicatos, pelas igrejas etc., etc., numa interação que controla a intelectualidade.

entrevista na Ele Ela (1986) com o Fernando Gabeira

Dia desses comprei uma Ele Ela de março de 1986 com a Edna Velho (que virou atriz da Praça É Nossa e também mãe de um dos filhos do Romário) na capa num sebo no centro da cidade.
Comprei pra ler a entrevista com o Fernando Gabeira, que, naquele mesmo ano, se candidatou ao governo do estado do Rio de Janeiro pelo Partido Verde (o artigo da Wikipedia diz que foi pelo Partido dos Trabalhadores) contra o Moreira Franco e o Darcy Ribeiro. A eleição iria decidir quem seria o sucessor de Leonel Brizola, que estava em seu 1o mandato como governador do estado.
Na época ele tinha 45 anos e já era um maluco beleza, mas com pé no chão. Se declarava adepto da teoria de Desobediência Civil. A entrevista foi realizada por Sérgio Costa. Uma coisa que me chamou pacas a atenção foi o verdadeiro corpo-a-corpo que foi a entrevista. Parece que o repórter ficou horas e o Gabeira não teve pressa em responder as perguntas. Talvez se fosse hoje em dia, ou com outra pessoa, a entrevista ia ser cronometrada. Segue ela abaixo:
Gabeira 01
Gabeira 02
ELE ELA – Fernando Gabeira, você é realmente candidato ao governo do Estado do Rio de Janeiro?
Fernando Gabeira – Sou.
– E como surgiu essa candidatura?
– Há cerca de um ano nós estamos fazendo um trabalho de base no Rio de Janeiro para deflagrar o movimento ecológico e o Partido Verde. Ao longo deste trabalho, nós constituímos com outros companheiros um organismo Assembléia Permanente do Meio Ambiente, onde se reúnem todos os grupos que estão trabalhando com ecologia no Rio de Janeiro, mais algumas associações de moradores que têm problemas específicos ligados a isso e outras entidades como a FAMERJ (Federação das Associações de Moradores do Rio). Simultaneamente, estamos criando grupos que estudam questões específicas do Rio de Janeiro. Esse trabalho ampliou muito meu conhecimento sobre os problemas ecológicos e me deu uma base para entender que é possível fazer alguma coisa.
Ao mesmo tempo, na medida em que a situação que está aí foi ficando mais grave, sobretudo a partir da morte de Tancredo, senti que precisava me envolver pessoalmente na tarefa de transformação do país de uma maneira mais decidida.
– Isso quer dizer que, até então, não passava pela sua cabeça uma atuação política mais específica?
– Sempre esteve. Eu considero que até a minha vagabundagem foi uma preparação para esse momento. Porque era uma vagabundagem dedicada a conhecer mais o Brasil. Conversar com as pessoas, leituras, meditações em Alcântara, em Porto Seguro, no interior de Minas, as voltas pelo Brasil, tudo isso foi um processo de acumulação de conhecimento e de energia para começar este trabalho. A morte de Tancredo (nota do blog: Tancredo Neves morreu em 1985) revelou que o Brasil é muito dependente de um líder, de líderes que conduzam seu processo. E eu compreendi que é possível contribuir para transformar esse processo inaugurando políticas que estimulem as pessoas a assumirem suas responsabilidades.
– E você, pessoalmente, em determinado momento também se colocaria como líder?
– Exatamente. Para negar isso adiante. Você se coloca como um líder num determinado momento para mostrar às pessoas que elas podem superar essa dependência. Acontece que, quem tem se colocado assim é para ficar líder para sempre. A gente acha que é possível conduzir as pessoas a ter uma confiança maior na organização coletiva.
– Politicamente, como você pretende viabilizar essa candidatura?
– Eu tenho o apoio do Partido Verde com o qual trabalho, do Partido Humanista, o PT deve decidir em breve…
– Algum problema com o PT?
– Nenhum. As coisas têm marchado muito tranquilamente…
– Estou perguntando porque o PT aqui do Rio é meio assim…
– É, eles estavam meio assim, mas agora é uma chance para eles também pegarem um barco mais amplo, mais aberto. E o PSB, que ainda vai examinar a questão, ainda não está definido, para o PSB ainda há certos problemas porque é um grupo com posições mais… mais assim…
– Ortodoxas?
– É, ortodoxas.
– E é para vencer, Fernando?
– É para vencer. Vamos disputar para ganhar.
– E em que faixa do eleitorado você acha que corre sua candidatura?
– A gente já sabe que na classe média nossa candidatura tem uma boa penetração. E nela, entre as mulheres e os jovens, muito boa. Mas eu acho que existe a possibilidade muito grande de uma relação com um lado do Rio para o qual meu trabalho também está voltado, que é o lado mais marginalizado, mais marginal, do morro, da favela, pelo trabalho que tenho sobretudo no campo dos direitos humanos, as denúncias da violência policial, do racismo. Isso tudo pode servir como uma ponte de aproximação.
– Em que linguagem? Essas pessoas, eu acho, estão de uma maneira geral mais acostumadas a terem como referencial político a figura paternalista de um Brizola, por exemplo. Ou seja, acho que têm uma visão mais clássica do político.
– Eu acho que a linguagem fica mais difícil quando você coloca a coisa política. Mas eu trabalho nas cadeias, tenho contato e discuto com presos quando vou às cadeias e eles não têm nenhuma dúvida de que sou um político fazendo um tipo de política que eles entendem perfeitamente. Freqüento os morros trabalhando, converso com as pessoas e sou muito bem recebido. Subo e desço os morros sem dizer “sou fulano de tal”. Agora, enquanto candidato, vai ser mais fácil. É evidente que eu não tenho nada para oferecer às pessoas além da possibilidade de lutarmos juntos e nisso eu fico em desvantagem em relação àqueles setores que podem oferecer coisas concretas, materiais inclusive.
– Você é uma pessoa com bom trânsito na imprensa, a despeito de ser também um jornalista, e acho que isso vai ser importante para sua candidatura, mas, por outro lado, as últimas eleições mostraram a importância da televisão para decidir as paradas, do debate com os outros candidatos, como você se sente em relação a isso?
– Nossa campanha vai se desenvolver muito nitidamente na televisão, mas acho que ela tem uma coisa que limita muito ao fazer do público espectador de um debate entre pessoas inteligentes e articuladas e não coloca muito a questão da participação. A minha diferença em relação aos outros candidatos é que estou na rua, lutando junto com as pessoas, estou correndo da polícia junto com elas. Essa é a diferença fundamental.
– Gabeira, que análise você faria do governo Brizola no Rio de Janeiro?
– Há dias fui perguntado por uma repórter, a partir de uma proposta da Frente Liberal, se toparia participar de uma frente anti-Brizola. Eu respondi que não era antininguém e sim a favor de um programa alternativo de governo que já estava tentando formular com outros companheiros. Que nós éramos a favor da construção de uma experiência nova no Rio de Janeiro que possa repercutir positivamente em outras experiências latentes no Brasil. Então, não tenho muito tempo de ser contra o Brizola. Evidentemente, sei distinguir uma coisa que faz parte do meu compromisso com o PT, no caso de nós virmos a marchar juntos, de ser oposição ao Brizola no campo estadual. Mas em nível federal, em certas circunstâncias que ainda não estão definidas, muito possivelmente a gente caminhará junto.
Aqui no Rio, o governo dele teve algumas intuições interessantes, como a de sair construindo escolas, CIEPs, mas cometeu uma série de erros que devem ser examinados e criticados. Ele tem uma tendência muito forte À centralização, a não permitir que as pessoas decidam, o que atrapalha muito o processo de desenvolvimento delas. Ele construiu as escolas sem fazer uma crítica do que é o processo de educação mesmo, o que é educação, como se a escola em si fosse uma coisa ótima. Ele definiu esse caminho de construir escolas e abandonou muito outros setores como o da saúde, por exemplo, que é um setor vital e está caótico. Ele não avançou quase nada no setor de segurança das penitenciárias que não depende só dele, mas que ele poderia contribuir muito. O governo do Brizola fez apenas um pouco mais do que os outros governos conservadores que estiveram por aí. Pode ser suficiente para o povo gostar dele tomando como referência os governos anteriores, mas ainda é uma proposta muito atrasada para as necessidades do Brasil.
– Qual será a prioridade de seu governo?
– Justiça social. Vamos tentar melhorar a qualidade de vida da população num quadro de crise econômica, política e moral. Nossa prioridade é transformar as condições de vida da população mais pobre e, ao mesmo tempo, tentar evitar o processo de degradação e decadência das condições ambientais do Rio e do resto do estado. Ou seja, corrigir a distorção, que é o elemento fundamental da história do Brasil contemporâneo, da distância entre pobres e ricos. Desenvolver o Rio no conjunto com a perspectiva de progresso que leve em conta a preservação do meio ambiente, dos recursos naturais não renováveis, das belezas naturais. Para isso é preciso fazer um governo capaz de apresentar soluções que estão fora das possibilidades dos conservadores que seja originais e baratas, pois nós vamos trabalhar num quadro de crise e de muito poucos recursos.
– Dê um exemplo disso.
– Um dos maiores problemas do Brasil são as crianças abandonadas. Chegam a oito milhões. Não tenho uma estatística de quantas delas estão no Rio, mas vamos fazer um projeto que em seis meses altere esta situação radicalmente. Só que para fazer este projeto nós não temos dinheiro. Onde estaria a solução original? Na legalização do jogo do bicho. Não é estatizar, veja bem, é legalizar. Acoplar fiscais aos computadores dos bicheiros e transformá-los em empresários sérios, respeitáveis. Com o dinheiro que virá disso, criaremos escolas e oficinas de rua.
– Como pensa em realizar isso com o estado apoiado em cima de uma burocracia tão decadente e emperrada?
– Nós já enfrentamos o Exército com revólveres 22 enferrujados e a polícia de braços abertos na nossa desobediência civil pacífica. Se formos eleitos com apoio popular, não vamos nos dobrar diante de uma burocracia corrupta. Eles vão se defrontar pela primeira vez com um governo popular. E o governo popular é muito mais forte que qualquer governo militar, porque tem por detrás, a decisão do povo que se deve botar para trabalhar quem nunca trabalhou e se demitir quem vive à custa da população sem fazer nada. Esse choque inevitável nós levaremos vantagem. Será a briga mais fascinante do do princípio do governo. O Brasil vai se transformar num país sério em que a burocracia seja realmente uma coisa voltada para atender aos interesses do povo, impessoalmente, independente de padrinhos, cupinchas ou pistolões.
– Por falar em Brasil, como você vê essa reviravolta na economia do país?
– Esse pacote foi um pouco baseado na experiência argentina. Só que quando você começa a comparar a experiência argentina com a brasileira, encontra uma diferença básica: eles têm um governo eleito com apoio de 75% da população. A Argentina tem um governo eleito no qual ela confia para conduzir o país nessa crise. Há um acordo político lá que não existe por aqui. O governo que está no poder hoje não tem o mesmo nível de apoio popular ativo que o argentino, o que desloca um pouco as possibilidades do plano. Em segundo lugar, o plano tanto lá como cá traz uma perda de poder aquisitivo da classe operária e demais assalariados. Na Argentina, houve uma perda de 20% que a classe operária está suportando em função do acordo político, mas no Brasil essa perda ainda não está determinada, mas você já pode ver mecanismos que justificam temer a desvantagem para os pobres. Primeiro congelam os salários e os preços – o salário é fácil, porque é o patrão que paga, mas os preços são difíceis porque a Sunab tem um número irrelevante de fiscais e tá todo mundo remarcando os preços freneticamente hoje (a entrevista foi feita no dia do pronunciamento do Presidente Sarney). Quer dizer, os salários está implacavelmente congelados e os preços flexivelmente congelados.
– Bom, mas é aí que entra participação popular. Ou o povo ajuda a fiscalizar os preços ou ele entra pelo cano…
– Ainda que o povo fiscalize, existe elementos difíceis de serem controlados. Produtos que nem todo mundo sabe exatamente qual é o preço.
– Qual foi a jogada do governo na sua opinião?
– A elite que está no poder é, na verdade, o segundo fôlego da ditadura. Nós estamos assistindo a uma segunda morte da ditadura. A ditadura militar caiu e em seu lugar veio o esquema da dissidência do PDS. Eles tomaram essas medidas – a questão chamando Programa de Estabilidade – numa relação muito grande com os credores externos, diante dos quais eles estão pressionados a conter a inflação, e diante de uma situação interna também problemática, uma vez que a especulação está cada vez maior e o envolvimento no processo produtivo cada vez menor. Então resolveram, num tratamento de choque geral, penalizar um pouco os trabalhadores, garantir um pouco mais de sacrifícios por parte deles, mandar um recado as credores externos no sentido de que estamos dispostos a tudo para conter a inflação e finalmente tentar rever um pouco esta situação especulativa em que os capitais rolam muito mais nos processos financeiros do que nos produtivos. As intenções são essas. Agora, eles estão jogando tudo. Depois do fracasso desse plano tudo pode acontecer…
– Você está especulando o fracasso do plano ou afirmando isso?
– Acredito que o plano vai fracassar. Primeiro porque não acho que a inflação seja produto de uma série de medidas financeiras que se altere com outra série de medidas financeiras. No meu entender, a inflação é produto de situações objetivas, de relações sociais muito claras que permanecem intocadas. Vem um e diz “a inflação é provocada pelo aumento dos produtos agrícolas”; ora, você vai congelar o preço dos produtos agrícolas para baixar a inflação? Isso não pode. Você só altera a situação dos preços agrícolas no dia em que realmente aceitar a idéia de que se tem de fazer uma reforma agrária. E a reforma agrária eles não têm coragem de fazer.
– Mas a idéia que está rolando por aí é a de que “alguma-coisa-precisava-ser-feita”.
– Bom, foi mais uma admissão de que a inflação está sem controle e nesse processo se perderia toda a credibilidade dos banqueiros internacionais. Tiveram que tentar uma outra saída porque neste pique a própria margem de lucro do capital está ameaçada. Daí a reorganização da economia.
– E como isca para novos capitais internacionais investirem por aqui?
– Não creio. O que ele pode tentar incentivar é o deslocamento internamente do capital produtivo, que é uma das esperanças claras do Funaro e ele tem dito isso claramente. Mas vamos imaginar as primeiras horas do plano. Em primeiro lugar, o plano vazou. Logo, os especuladores, que seriam o alvo, levaram uma grande vantagem em dois dias.
– Mas você falou antes que diante do fracasso desse projeto tudo pode acontecer. A gente podia especular um pouco sobre isso.
– Claro. A história moderna… não diria nem a história moderna, eu diria a história recentíssima, nos mostra que tudo é esse que pode acontecer. E eles receberam aí em Fernando de Noronha um amigo ilustre, chefe da polícia de Baby Doc no Haiti, que podia contar o que que pode acontecer. Ou seja, pode acontecer o que houve no Haiti, ou nas Filipinas, ou pode acontecer aquilo que nós sempre propusemos de uma maneira pacífica: Aceitem o direito do povo escolher seus representantes. Parem de usurpar.
Gabeira 04
– Ou ainda pode acontecer uma messianização do processo político brasileiro com o povo entregando o poder a um Messias que pinte como o seu redentor…
– Não tem dúvida que isso também pode. Mas, mesmo assim, ainda seria um processo de escolha direta e você não pode impedir que o povo tenha um Messias, mas pode evitar que ele tenha um ditador. Você pode lutar contra isso, como nós o fazemos, no sentido de buscar um tipo de política que fortaleça a organização popular.
– Fernando, você tem sido um dos responsáveis pela divulgação nestes últimos dias, principalmente, de uma forma de luta chamada Desobediência Civil, inclusive com o ato – desobediência à censura do Presidente Sarney ao filme do Godard, Je Vous Salue Marie. Explica melhor esse termo.
– Essa questão me interessou muito desde o momento em que passei a ver uma perspectiva pacífica de transformação da sociedade, a desacreditar no processo de transformação do Brasil pela luta armada. Passei, então, a buscar experiências políticas que resolvessem uma falsa associação que se tem normalmente entre não-violência e passividade. Nesse processo intensificou-se também o intercâmbio cultural com o Oriente, passou-se a ler muito sobre o Oriente, sobre a Índia, por exemplo, e a figura do Gandhi ganhou importância, não só para mim, mas a para o mundo inteiro, tanto que virou um filme de repercussão internacional. O Gandhi na África do Sul e na Índia utilizou muito o recurso da desobediência civil pacífica. E eu li na biografia dele que esse trabalho era fruto da leitura de um trabalho do Thoreau chamado Desobedeça. Comecei, então a desenvolver trabalho político, colocando a questão da resistência pacífica e a formular e desenvolver um trabalho político e teórico para deixar as bases para a prática. Procurei com ele uma editora para lançar Desobedeça e com ele as bases para implantar alguma informação teórica que possa num determinado momento vir a ser útil para o Brasil.
– E quais são os momentos da prática da desobediência?
– Surgiram vários momentos da prática para mim, mas eles estavam circunscritos à intervenção, junto com outras pessoas famosas, nas comissões de Direitos Humanos que a gente formou para entrar nos presídios e instituições totais.
Agora com a proibição do Je Vous Salue, Marie abriu-se uma possibilidade de colocar esta questão em termos mais amplos, ou seja, desobedecer. Se tivéssemos colocado a desobediência civil como forma de luta para conduzir as diretas a gente teria vencido.
Gabeira 03
– A manifestação de desobediência à proibição do Je Vous Salue, Marie visou revelar a verdadeira face da chamada Nova República?
– A questão da proibição do filme é vital para a nossa concepção política. Se nós deixássemos essa questão sem uma participação política, estaríamos com um programa esquizofrênico, um programa que não achava a concreção nas lutas cotidianas, o elo entre ele e as lutas cotidianas. Nós somos contra a proibição do Je Vous Salue, MArie porque somos contra a censura e sabemos que ela não acaba com uma festa no teatro Casa Grande e sim na rua, na luta de rua pela liberdade de expressão e circulação de idéias no Brasil que, quanto maior for, melhor, mais crescimento teremos. Nós vivemos da iluminação e não do obscurantismo. E o ato teme também o efeito pedagógico de mostrar que para tudo que queremos para a sociedade brasileira é preciso de lutar um pouco para conseguir. Nada nos será dado como uma dádiva do céu.
Je Vous Salue Marie
Je Vous Salue Marie
– Gabeira, quando você retornou do exílio na Suécia trouxe uma discussão a respeito de política do corpo, política sexual, e eu queria saber se isso ainda é uma questão fundamental no seu modo de entender?
– É um prioridade do nosso governo. O esporte, por exemplo, a política relacionada com o esporte, a minha perspectiva é a de democratizar a prática do esporte. Nós vivemos numa cidade em que a prática do esporte é bastante concentrada. A piscina do Maracanã vivia fechada. Os garotos tinham que pular o muro para nadar até que um dia o diretor percebeu e abriu os portões. Existe uma demanda popular muito grande em relação à prática do esporte e uma infra-estrutura social pequena para isso, mas não do ponto de vista competitivo, que pode ser contra uma política contra o corpo e não do corpo. Nós queríamos estimular um processo corporal, a partir do esporte democratizado, voltado para autoconhecimento e autodesenvolvimento pessoal.
Outro dado fundamental para a política do corpo é a da questão da interrupção da gravidez. Um dos movimentos fundamentais do pós-68 foi o feminista e nós vamos encampar um de seus slogans mais importantes na nossa campanha: “Nosso corpo nos pertence”. Qualquer governo humanitário tem que contribuir para que as mulheres tenham seus filhos dentro das melhores condições possíveis mas, também, tem que dar a elas as condições para que interrompam, com o máximo de segurança e apoio, sua gravidez quando assim o decidirem. Nós temos dois milhões de abortos por ano no Brasil e só uma minoria tem acesso a meios seguros, higiênicos e sofisticados.
– E as questões sobre as relações humanas, sobre as relações amorosas, como está a sua cabeça nesse sentido?
– Eu tenho trabalhado muito sobre esse assunto. No Diário da Crise publiquei um trabalho sobre relações sentimentais baseado também na discussão marxista de ponta de alguns sociólogos que estavam mergulhados nesse assunto e que andei pensando pelo meu lado e tentando aplicar um pouco ao Brasil para ver qual era a saída para as relações sentimentais. Sobre muitos aspectos, a família como nós a conhecemos hoje está desaparecendo. Mas nós não inventamos novas fórmulas de relação. A família com um só responsável está se tornando a maioria nas grandes cidades. A Família nuclear burguesa, pai-mãe-filho-filha, está sendo substituída por relações de pai-filho ou mãe-filho. Isto já é uma alteração substancial nas relações provocada pelo próprio desenvolvimento do mundo moderno. Tenho pensado muito sobre isso no campo do futuro da família e das formas de organização que a gente vai ter e muito também na questão do ciúme, como sobrevivência parcial da perspectiva da propriedade privada. Abriu-se para nós um campo de trabalho mais específico. Em vez de fazer a denúncia sistemática disso na sociedade, estamos começando também a realizar discussões específicas sobre a crise do homem e sua adaptação aos novos tempos. Realizamos em São Paulo o 1o Simpósio do Homem onde fiz uma intervenção sobre isso. Sobre as alterações que o homem está passando e vai passar e que ele deve se unir para discutir.
– Quais questões, por exemplo?
– Os homens, hoje, em grande parte já cuidam de crianças desde o parto. E os que tiveram participação ativa nos partos das mães de seus filhos já têm uma visão crítica sobre a participação do homem no parto na sociedade conservadora, que é a de um espectador nervoso, quando na verdade ela pode ser ativa. Outra coisa, grande parte dos homens se vêem na contigência de cuidar das crianças desde o princípio e eles, naturalmente, gostam de discutir essa experiência. Muitos homens gostariam também, como já existe na Suécia, de tirar a licença pós-parto, de cumprir esse papel. Às vezes a mulher tem uma tarefa mais importante e nem está amamentando, mas está de licença. Então, é necessário que a licença seja paga ao pai, ao homem. Destas reflexões devem resultar uma série de medidas e propostas que podem ajustar um pouco a sociedade a essa transformação.
Gabeira 05
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17 de novembro de 2015
in Boraê

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