"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

terça-feira, 25 de agosto de 2015

EU


Ando de saco cheio da Razão. E a Razão provavelmente cheia de mim, pois tento acioná-la para entender um mundo incompreensível. 
Qual é essa de um sujeito, no caso eu, ficar dizendo o que acha certo ou errado na paisagem? O cronista, ou colunista, ou comentarista, se empoleira num pódio de opiniões e fica deitando regras.

Afinal de contas, quem sou eu? Fico escrevendo nos jornais, tentando ser relevante, tentando salvar alguma coisa que nem sei o que é?

Mas, no duro, quem é esse cara chamado “eu”? A palavra já me inquieta. O que é o “eu”? O que é essa vozinha que soa de dentro de um organismo para entender o mundo? Quem são esses corpos falantes e opinativos que o tempo atual está transformando em inúteis? Quem fala debaixo dessas duas letrinhas: o Eu? O eu está sem orgulho, sentindo-se inútil. Refletir, para quê? Sem esperança não há filosofia. O único consolo que resta ao “eu” é a acumulação de charmes e ilusões. 

Seria o eu burguês, ou eu Miami. Ou, então, o “eu” como uma espécie de prêmio para quem furar o muro do anonimato. 
Quando aparecer na “Caras”, o “eu” passa a existir. Cada vez mais uma solitária defesa narcísica e, ao mesmo tempo, cada vez menos relevante em meio a massa infinita de “eus”.

O Oriente islâmico já resolveu esse dilema acabando com a ideia absurda de haver “eus”. Eles vivem em uma era pré-psíquica, aquém do eu. Justo ao contrário, querem ser formigas sem diferenças, todas unidas sem medo da morte, sem nada a preservar para si. A absoluta falta de um “eu” explica o homem-bomba, o sujeito que se detona para defender a cabeça coletiva sem pensamentos, sob um céu que lhes premia pelo martírio e pela submissão. Aliás, islã quer dizer “submissão”.

Ali, não há “eus” – só ninguém. Se matam há mais de 1.400 anos para ver quem é mais submisso a Alá. Nada mais delicioso do que a obediência cega. Não há outro; só um grande Eu, em que se agarram bilhões de seres sem desejo ou projeto. 
Seu único projeto é não serem indivíduos. Querem ser um só, sem nenhum desejo de produzir progresso ou futuro. 
Tudo que fazemos aqui tem o alvo da finalidade, do progresso. 
O islã não quer isso. Quer o imóvel, a verdade incontestável. Os fanáticos do islã não querem construir nada. Já chegaram lá. Não há futuro para eles. Já vivem na eternidade.

Aqui, no círculo dos privilegiados, também oscilamos entre a fome de ser especiais e o desejo de ser uma formiga perdida e conduzida por um comandante qualquer. Essa é a base do populismo, hoje em alta.

E, no meio, entre o indivíduo e a massa, respira a liberdade como um bicho sem dono – a liberdade, esta coisa que nos provoca tanta angústia. Que liberdade? Para sermos o quê? 

Que liberdade é essa se a marcha da vida é conduzida pelas “coisas”, pelas leis econômicas e técnicas que estimulam e massacram nossa ilusão de sermos únicos. O homem-bomba matou o Eu. O homens-bomba acabaram com a ideia de vitória, de solução, de esperança. Querem acabar com o indivíduo.

Agora, de uma forma repugnante, a verdade do mundo atual apareceu. Estão irrompendo todas as misérias do planeta, na África, no Oriente Médio, nas periferias da desgraça das cidades, longe do circuito dos países bacanas. Agora a sujeira está voltando em nossas caras, acabando com a sensação de que fomos salvos, excluídos da exclusão.

A grande descoberta dos terroristas do Estado Islâmico foi a mídia. Estão testando nossos sentimentos – nós, que nos pensamos civilizados.

Eles tiveram uma ideia sinistramente genial: em vez de matarem 5.000 desconhecidos em Nova York, eles escolheram o indivíduo, “eu”, o morto antes de morrer, o solitário no vídeo para a degola ou o fogo. 
Eles atacam nosso individualismo, pois todo mundo se identifica com o pobre-diabo diante da morte. Hiroshima nos leva a dizer: “que horror!” – e dormimos em paz. Essas cenas do EI nos fazem pensar: “Já imaginou eu nessa situação?”. Só choramos por nós mesmos.

Agora os terroristas não são mais reativos; são inventivos. Não são mais “consequência” de nada; são a vanguarda de uma nova forma de morte, são a invenção da estupidez fanática da “sharia”, de séculos de ignorância e atraso. 

Osama (esse filho de família milionária, o único eu daquele momento) em minutos mudou nosso futuro e nossa história, que os liberais babacas achavam que tinha chegado a um fim. Como falar em democracia com muçulmanos analfabetos, que desde o século VIII batem a cabeça nas pedras para extirpar qualquer resquício de liberdade, repetindo mantras do Alcorão, enquanto, do outro lado, os monstros-caretas republicanos repetem mantras da bíblia fundamentalista? O mundo atual é comandado pela estupidez, pela desinformação, mesmo informadíssimo pela internet.

Por essas e outras, o eu está cada vez mais ridículo. O “eu” virou um privilégio para poucos.
Está difícil entender os recentes acontecimentos à luz de nosso antigo humanismo, que não esclarece mais nada e nos leva a um beco sem saída. Enquanto as formigas agem, os indivíduos choram passivos.

O pensamento humanista está lamentoso, tristinho, queixoso de tanto absurdo, tanto na guerra internacional como no tráfico, por exemplo. 
Estamos desiludidos de uma grande ilusão. De que adiantam o lamento, o escândalo? Como falar em compaixão ou afeto a propósito de um menino de 13 anos que decepa a cabeça de um colega com um machado? Ou dos decapitados em fila?

O “eu” dos intelectuais está sendo humilhado. Há um grande desânimo de pensar, de escrever, de análises sobre algo morto.

Não queríamos ver nossa miséria, que hoje apareceu armada. E agora é tarde demais. Acabou o sonho de um futuro harmônico, seja socialista ou liberal. E eu, afinal de contas, de onde escrevo isso? Para quê? Quem me lê e quem vai mudar? Como? Ninguém sabe. O século XXI vai ser uma bosta mesmo.

Por isso, só me resta a letra de Cole Porter: “O que devo tomar? Champanhe ou cianureto?”.


25 de agosto de 2015
Arnaldo Jabor

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