“As pessoas podem formar comunidades, mas as instituições, e só elas, criam uma nação.” Disraeli
No momento em que a discussão sobre o modelo federativo brasileiro toma novo impulso, pelos debates sobre o tema no Congresso, vale a pena refletir sobre ele.
Sabe-se que o nosso modelo político foi inspirado no norte-americano. Consequentemente, o tipo de Estado federal, o sistema de governo presidencialista e a forma republicana de governo foram inseridos na primeira Constituição republicana [1891]. Diferenças históricas e culturais, no entanto, não permitiram que o Brasil tivesse nestas características políticas uma reprodução do que vigora em terras yankees.
Ao contrário dos Estados Unidos da América, o Brasil foi um país ‘criado de cima para baixo’, onde a estrutura burocrática sempre precedeu e condicionou a organização social. No dizer de Tristão de Athayde... ”fomos um país formado às avessas, que teve Coroa antes de ter povo; parlamentarismo antes de eleições; escolas superiores antes de alfabetização; bancos antes de ter economias”. O fato de ter sido uma colônia de exploração e não de povoamento foi outra distinção fundamental na formação do Brasil que o difere da nação norte-americana. Estas ocorrências deixaram marcas profundas na nossa organização federativa [centralizadora] sentida até os dias atuais.
Por outro lado, sucessivos governos a partir de 1930 insistiram em administrar o País como se fosse um Estado unitário e não federal. Notadamente durante o período do Estado Novo que vigorou de 1937 a 1945. Getúlio Vargas se foi tragicamente em 1954, mas seu estilo centralizador, autoritário e populista deixou marcas indeléveis na polis brasileira. O Brasil getulista era encarado pelo governo federal praticamente como uma massa uniforme, em franca oposição à realidade política, econômica e cultural. Se por um lado esta centralização beneficiou a unidade do país, por outro provocou ou mesmo aprofundou distorções políticas, econômicas e sociais, fragilizando o federalismo.
O tipo federal de Estado pressupõe pluralidade de centros de poder soberanos coordenados entre eles, no qual o Governo federal detém quantidade mínima de poderes indispensáveis para garantir a unidade política e econômica. Sugere ainda uma forma de buscar consenso entre diversos interesses regionais, contemplando liberdade e descentralização como princípios fundamentais para o seu efetivo funcionamento. Tendo sido concebido, também, para viabilizar a repartição de poderes entre os diferentes níveis de governo, e evitar a excessiva centralização de competências verificada no Estado unitário. Ainda mais, no federalismo real o Governo Federal detém quantidade restrita de poderes indispensáveis para garantir a unidade política e econômica. Aos estados federados cabem os demais poderes. Definitivamente não é o caso da federação brasileira. Visivelmente desequilibrada, por meio do exercício de poderes políticos, administrativos e econômicos concentrados excessivamente e, muitas vezes desnecessariamente, no governo central.
Historicamente no Brasil processaram-se em escala crescente dois tipos de centralização: a concentração de atribuições em mãos do governo central em detrimento dos governos locais; e no nível central, a concentração de poderes no poder executivo. Tal concentração leva a incoerências de toda ordem. Insiste-se em dar tratamento unitário a um Estado federal diversificado, complexo e heterogêneo. Aliás, como pressupõe a própria natureza política deste tipo de Estado.
O Brasil já foi um Estado unitário durante a fase monárquica, abandonando-o quando da proclamação da república. Embora, na prática, talvez nunca a tivesse ultrapassado. Hoje se pode dizer que continua federal na forma constitucional, mas quase unitário na sua práxis. Os pressupostos de liberdade e descentralização por parte das unidades federadas têm sido largamente negligenciados por conveniência política dos detentores do governo federal [historicamente], e/ou por ditames da cultura política e do desequilíbrio econômico entre os entes federados.
Ao contrário do modelo inspirador, onde os estados federados têm efetiva liberdade de organizar politicamente o seu espaço territorial, aqui prevalecem várias regras uniformes para realidades disformes. Lá [nos EUA] a idade mínima para a concessão de carteiras de habilitação varia de uma unidade federativa para outra; a legislação penal (pena de morte, por exemplo) também; a organização do poder legislativo idem; direito a porte de arma; currículos escolares, e assim, vários outros exemplos se seguem. Em outras palavras a federação existe de facto. E não apenas na letra da lei e nos ditames teóricos. E mais, como em outros aspectos da vida norte-americana geralmente prevalece, igualmente, o bom senso e a praticidade. Geralmente a lei deve enfrentar a realidade como ela é, e não como se gostaria que fosse.
Aqui parece predominar o contrário, numa flagrante violação de princípios federativos básicos: liberdade, soberania e descentralização. As distintas realidades encontradas no nosso imenso território – políticas, econômicas, culturais e sociais – parecem ignoradas pelos legisladores. Insiste-se na centralização para a edição de legislação e da formulação de muitas políticas públicas de vigência nacional, como que ignorando a heterogeneidade de nossos costumes e das desigualdades sociais e econômicas. Como se a realidade criminal vivida pelo Rio de Janeiro fosse igual àquela verificada em Santa Catarina, ou se as necessidades de proteção individual de um colono ou fazendeiro de Rondônia contra as adversidades naturais da floresta fossem as mesmas de seus colegas paranaenses, ou também que o financiamento do ensino superior em São Paulo e no Acre pudesse seguir as mesmas regras nacionais, ou ainda, como se as questões de fronteira e ambientalistas na região amazônica tivessem semelhança com as da fronteira sul. Tudo como se os estados não soubessem administrar melhor suas peculiaridades regionais, e para tanto, criarem suas próprias regras. Tende-se, desta forma, a tratar homogeneamente o que é heterogêneo por formação.
Este modelo não tem funcionado a contento em vários aspectos da vida nacional, onde os problemas se acumulam ostensivamente sem solução adequada, ou, até mesmo, sem nenhuma resposta por parte do Estado. A violência rampante nos centros urbanos e a incapacidade dos governos de enfrentarem-na eficazmente, entre vários outros exemplos, ilustram a tese.
Esta realidade é no mínimo incoerente e burocratizante, pois se o Brasil adotou – acertadamente, diga-se de passagem – o tipo federal de Estado, está a negar o seu adequado funcionamento, na medida em que nega seus princípios fundamentais, e sua própria gênese. Ao adotar a forma federativa, os constitucionalistas brasileiros reconheceram a oportunidade deste tipo de Estado como o ideal para organizar a vida política entre os diversos entes federados de um país multiétnico, multicultural e continental. Ou seja, um país heterogêneo, rico e diversificado. Não praticá-la efetivamente não faz sentido e agride o bom senso. Tornando-se ainda num fator impeditivo do desenvolvimento, e um obstáculo a mais ao exercício pleno da liberdade e da cidadania pelos brasileiros que habitam os ‘vários brasis’.
A capacidade de lidar de maneira exitosa num mesmo espaço político com a diversidade, sem que se perca a nacionalidade, tem sido demonstrada em outras federações. No Brasil também pode funcionar. É só querer.
25 de agosto de 2015
Professor e Pesquisador do Centro de Estudos Avançados
de Governo e Administração Pública - CEAG
No momento em que a discussão sobre o modelo federativo brasileiro toma novo impulso, pelos debates sobre o tema no Congresso, vale a pena refletir sobre ele.
Sabe-se que o nosso modelo político foi inspirado no norte-americano. Consequentemente, o tipo de Estado federal, o sistema de governo presidencialista e a forma republicana de governo foram inseridos na primeira Constituição republicana [1891]. Diferenças históricas e culturais, no entanto, não permitiram que o Brasil tivesse nestas características políticas uma reprodução do que vigora em terras yankees.
Ao contrário dos Estados Unidos da América, o Brasil foi um país ‘criado de cima para baixo’, onde a estrutura burocrática sempre precedeu e condicionou a organização social. No dizer de Tristão de Athayde... ”fomos um país formado às avessas, que teve Coroa antes de ter povo; parlamentarismo antes de eleições; escolas superiores antes de alfabetização; bancos antes de ter economias”. O fato de ter sido uma colônia de exploração e não de povoamento foi outra distinção fundamental na formação do Brasil que o difere da nação norte-americana. Estas ocorrências deixaram marcas profundas na nossa organização federativa [centralizadora] sentida até os dias atuais.
Por outro lado, sucessivos governos a partir de 1930 insistiram em administrar o País como se fosse um Estado unitário e não federal. Notadamente durante o período do Estado Novo que vigorou de 1937 a 1945. Getúlio Vargas se foi tragicamente em 1954, mas seu estilo centralizador, autoritário e populista deixou marcas indeléveis na polis brasileira. O Brasil getulista era encarado pelo governo federal praticamente como uma massa uniforme, em franca oposição à realidade política, econômica e cultural. Se por um lado esta centralização beneficiou a unidade do país, por outro provocou ou mesmo aprofundou distorções políticas, econômicas e sociais, fragilizando o federalismo.
O tipo federal de Estado pressupõe pluralidade de centros de poder soberanos coordenados entre eles, no qual o Governo federal detém quantidade mínima de poderes indispensáveis para garantir a unidade política e econômica. Sugere ainda uma forma de buscar consenso entre diversos interesses regionais, contemplando liberdade e descentralização como princípios fundamentais para o seu efetivo funcionamento. Tendo sido concebido, também, para viabilizar a repartição de poderes entre os diferentes níveis de governo, e evitar a excessiva centralização de competências verificada no Estado unitário. Ainda mais, no federalismo real o Governo Federal detém quantidade restrita de poderes indispensáveis para garantir a unidade política e econômica. Aos estados federados cabem os demais poderes. Definitivamente não é o caso da federação brasileira. Visivelmente desequilibrada, por meio do exercício de poderes políticos, administrativos e econômicos concentrados excessivamente e, muitas vezes desnecessariamente, no governo central.
Historicamente no Brasil processaram-se em escala crescente dois tipos de centralização: a concentração de atribuições em mãos do governo central em detrimento dos governos locais; e no nível central, a concentração de poderes no poder executivo. Tal concentração leva a incoerências de toda ordem. Insiste-se em dar tratamento unitário a um Estado federal diversificado, complexo e heterogêneo. Aliás, como pressupõe a própria natureza política deste tipo de Estado.
O Brasil já foi um Estado unitário durante a fase monárquica, abandonando-o quando da proclamação da república. Embora, na prática, talvez nunca a tivesse ultrapassado. Hoje se pode dizer que continua federal na forma constitucional, mas quase unitário na sua práxis. Os pressupostos de liberdade e descentralização por parte das unidades federadas têm sido largamente negligenciados por conveniência política dos detentores do governo federal [historicamente], e/ou por ditames da cultura política e do desequilíbrio econômico entre os entes federados.
Ao contrário do modelo inspirador, onde os estados federados têm efetiva liberdade de organizar politicamente o seu espaço territorial, aqui prevalecem várias regras uniformes para realidades disformes. Lá [nos EUA] a idade mínima para a concessão de carteiras de habilitação varia de uma unidade federativa para outra; a legislação penal (pena de morte, por exemplo) também; a organização do poder legislativo idem; direito a porte de arma; currículos escolares, e assim, vários outros exemplos se seguem. Em outras palavras a federação existe de facto. E não apenas na letra da lei e nos ditames teóricos. E mais, como em outros aspectos da vida norte-americana geralmente prevalece, igualmente, o bom senso e a praticidade. Geralmente a lei deve enfrentar a realidade como ela é, e não como se gostaria que fosse.
Aqui parece predominar o contrário, numa flagrante violação de princípios federativos básicos: liberdade, soberania e descentralização. As distintas realidades encontradas no nosso imenso território – políticas, econômicas, culturais e sociais – parecem ignoradas pelos legisladores. Insiste-se na centralização para a edição de legislação e da formulação de muitas políticas públicas de vigência nacional, como que ignorando a heterogeneidade de nossos costumes e das desigualdades sociais e econômicas. Como se a realidade criminal vivida pelo Rio de Janeiro fosse igual àquela verificada em Santa Catarina, ou se as necessidades de proteção individual de um colono ou fazendeiro de Rondônia contra as adversidades naturais da floresta fossem as mesmas de seus colegas paranaenses, ou também que o financiamento do ensino superior em São Paulo e no Acre pudesse seguir as mesmas regras nacionais, ou ainda, como se as questões de fronteira e ambientalistas na região amazônica tivessem semelhança com as da fronteira sul. Tudo como se os estados não soubessem administrar melhor suas peculiaridades regionais, e para tanto, criarem suas próprias regras. Tende-se, desta forma, a tratar homogeneamente o que é heterogêneo por formação.
Este modelo não tem funcionado a contento em vários aspectos da vida nacional, onde os problemas se acumulam ostensivamente sem solução adequada, ou, até mesmo, sem nenhuma resposta por parte do Estado. A violência rampante nos centros urbanos e a incapacidade dos governos de enfrentarem-na eficazmente, entre vários outros exemplos, ilustram a tese.
Esta realidade é no mínimo incoerente e burocratizante, pois se o Brasil adotou – acertadamente, diga-se de passagem – o tipo federal de Estado, está a negar o seu adequado funcionamento, na medida em que nega seus princípios fundamentais, e sua própria gênese. Ao adotar a forma federativa, os constitucionalistas brasileiros reconheceram a oportunidade deste tipo de Estado como o ideal para organizar a vida política entre os diversos entes federados de um país multiétnico, multicultural e continental. Ou seja, um país heterogêneo, rico e diversificado. Não praticá-la efetivamente não faz sentido e agride o bom senso. Tornando-se ainda num fator impeditivo do desenvolvimento, e um obstáculo a mais ao exercício pleno da liberdade e da cidadania pelos brasileiros que habitam os ‘vários brasis’.
A capacidade de lidar de maneira exitosa num mesmo espaço político com a diversidade, sem que se perca a nacionalidade, tem sido demonstrada em outras federações. No Brasil também pode funcionar. É só querer.
25 de agosto de 2015
Professor e Pesquisador do Centro de Estudos Avançados
de Governo e Administração Pública - CEAG
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