Isso que aí está é o fim do mundo ou é começo de outro? Os sinais que vêm das ruas, ocupadas por multidões, que se renovam quase semanalmente, embora desencontrados, expressam, cada qual a seu modo, a mesma sensação de mal-estar com os rumos do País e de desconfiança na ação dos partidos e, em geral, na dos dirigentes políticos. À diferença das manifestações de 2013 que apresentavam agendas de políticas públicas definidas sobre temas concretos, como os da mobilidade urbana, dos serviços de saúde e de educação, as que se iniciaram a partir de 15 de março de 2015, bem mais encorpadas, optaram pela marca difusa de um protesto contra a política na forma como a que temos praticado.
No espaço de dois anos o País se vê varrido por duas grandes ondas de mobilização social - mais duas estão a caminho. Sem contar a dos sindicatos que têm feito das ruas e rodovias lugar de teatralização das suas manifestações - a ocupação da Ponte Rio-Niterói por uma passeata de metalúrgicos foi a mais contundente -, a que se somam as de incontáveis movimentos sociais. As ruas têm sido instituídas numa esfera pública paralela, à margem dos partidos e das organizações formais, mas, ao contrário das gregas e espanholas, nelas não se delibera e não se procura produzir autoesclarecimento sobre o que, afinal, nos aflige na hora presente.
De fato, não há por que tergiversar com a gravidade da situação, nem se pode contar com a garantia de que o caráter pacífico dessa leva de manifestações dos idos de março será preservado, pois a cólera e as paixões irracionais, se não contidas por ações responsáveis, trazem o risco de converter disputas políticas em guerra entre facções. Não se pode ignorar que a sociedade, independentemente de suas clivagens partidárias, sente que seus sonhos foram roubados. O principal deles é o de que estaríamos em marcha batida para a afluência, com o bilhete premiado do pré-sal, cornucópia que nos permitiria o acesso a recursos abundantes para a modernização do nosso parque industrial e para políticas afirmativas de inclusão social.
A descoberta de uma sinistra trama a envolver a Petrobrás numa rede de relações corruptas com empresas e partidos da base governamental, inclusive com o hegemônico, afetando suas atividades e a própria credibilidade da empresa, não só posterga a concretização desses legítimos anseios, como já deixa em seus rastros o desemprego de milhares de trabalhadores e a ruína de cidades que prosperaram em torno dos seus negócios. Mas como tudo o que é ruim pode piorar, mal saído de uma eleição presidencial o País é advertido pela presidente Dilma de que, ao contrário do que sustentou quando candidata, seria necessária uma mudança de rumos: um severo ajuste fiscal tomaria o lugar da aceleração do crescimento.
Trocar sonhos por pesadelos não é uma boa experiência. Chamada à realidade por eles, a sociedade defronta-se com um mundo para o qual não tem referências para se situar diante dos novos desafios a que está exposta. Sem confiar nos partidos, descrente do governo, faz das ruas um tribunal, pondo a política no pelourinho. Perigosamente, o demos se dissocia da República, abrindo passagem para soluções salvacionistas e homens providenciais, dos quais temos a infausta memória do regime militar e da eleição de Collor na sucessão presidencial de 1989.
A sinalização está feita - esta é uma hora que demanda com urgência a ação dos Poderes republicanos a fim de preservarmos e aprimorarmos as instituições conquistadas com a democratização do País. As reformas políticas têm de ser feitas e os crimes contra o patrimônio público ser apurados e punidos. Mas essas tarefas, embora necessárias e ingentes, não nos bastam. A emergência às ruas das multidões, em si auspiciosa, também tem revelado a rusticidade da nossa cultura política. A desinstalação do capitalismo de Estado como ideologia reinante nos chega por imperativos sistêmicos, e não pela ação autocrítica do governo, que não reconhece os seus erros.
Décadas de passividade, de empobrecimento do debate público, sob o obscurantismo de concepções anacrônicas sobre os poderes demiúrgicos de um Estado tutelar e de heróis providenciais nos apresentam, agora, a sua conta: o maniqueísmo é a marca dominante da nossa cultura de massas. Saudáveis como são, essas manifestações de 2015, além de erráticas - quem defende o governo discorda de sua política econômica, quem o ataca a defende -, vêm à luz, contudo, condenadas ao efêmero, não nos deixando em seus rastros ideias novas. Nada nelas evoca os movimentos que deram partida ao Syriza, na Grécia, nem os que, na Espanha, serviram de base para a organização do Podemos e dos Cidadãos.
Elas são apenas especulares da miséria intelectual - sintomático o "nós contra eles" - a que nos condenou uma política realizada em nome de uma esquerda que, mesmo diante das inúmeras oportunidades que se apresentaram para abrir caminho em direção ao moderno, optou, com um pragmatismo sem alma, pela caixa de ferramentas e pelo repertório herdados do nosso passado, concedendo vida nova ao nacional-desenvolvimentismo e à estatolatria, sempre presente em nossa História.
Não se vive um fim do mundo, mas desse mundo aí. A crise que o anuncia é a hora de oportunidade para a afirmação dos Poderes republicanos, em particular do Judiciário e do Legislativo, este último a se desprender - não importando as motivações de algumas de suas lideranças - da sua gravitação em torno do Executivo. Sob a modalidade bastarda como o conhecemos, soou a hora final para o nosso presidencialismo de coalizão, forma velada com que o autoritarismo político encontrou passagem para se reproduzir no cenário da Carta de 88.
Em meio a um cenário de escombros, com o que ainda resta de pé dá para entrever que um outro mundo é possível.
06 de abril de 2015
Luiz Werneck Vianna
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