O “mercado” pode celebrar; o Brasil, não. OU A incrível história de Joaquim e Barbosa
"São pessoas que têm elevada credibilidade junto à sociedade, junto ao mercado. Essa equipe tem o simbolismo necessário para essa tarefa que nós vamos enfrentar daqui por diante.” O senador petista Humberto Costa oferece uma primeira pista sobre o sentido das nomeações da equipe econômica. Joaquim, o Levy, assumirá a Fazenda, pois “tem o simbolismo necessário” para restaurar a “credibilidade” perdida pela política econômica.
A segunda pista surge na sequência do raciocínio:
“Nós vamos fazer essa inflexão, mas isso é uma coisa temporária.” Barbosa, o Nelson, assumirá o Planejamento para aguardar a passagem da etapa “temporária”, depois da qual seria transferido para a Fazenda.
“Um passo atrás para dar dois passos à frente.”
Não sei se a frase célebre de Lenin sobre a Nova Política Econômica, implantada na URSS em 1921, emergiu nos conclaves fechados que precederam as escolhas de Joaquim e Barbosa, mas a ideia está aí. O “banqueiro” tem a missão de fazer o trabalho sujo: limpar a casa, restabelecendo o equilíbrio fiscal e contendo as pressões inflacionárias. Depois, na etapa prévia às eleições de 2018, o “desenvolvimentista” retomaria o fio da expansão do gasto, do crédito, do consumo e da dívida, engatilhando a já anunciada candidatura de Lula.
Lenin almejava chegar ao comunismo, pela via longa da “etapa” do mercado. O lulopetismo almeja apenas eternizar-se no poder, mesmo às custas das perspectivas de longo prazo da economia brasileira.
Dilma Rousseff engoliu o “banqueiro”, imposto por Lula, expondo-se à justa acusação de estelionato político. “É do jogo”: jornalistas rendidos ao cinismo sacam sua tirada preferida para garantir que nada há de incomum no uso descarado da mentira como ferramenta eleitoral. Mas, de fato, a mentira não “é do jogo”. Nas democracias, como regra, líderes eleitos cumprem a essência do que prometem. O estelionato sinaliza uma crise de fundo, não uma oscilação circunstancial. A deterioração da linguagem é um sintoma da crise. O Planalto enviou ao Congresso uma alteração na Lei de Diretrizes Orçamentárias que cria um superávit deficitário.
Guido Mantega é um ministro demitido em exercício. Joaquim e Barbosa foram ministros nomeados por boatos, antes de serem promovidos a futuros ministros em exercício na equipe de transição do governo Dilma para o governo Dilma. Novilíngua.
Os jornalistas “do jogo” adoram paralelos aparentes — e impertinentes. No primeiro mandato, quando nomeou a dupla Palocci/Meirelles, Lula não praticava estelionato, mas operava segundo a lógica da Carta aos Brasileiros. Dilma, pelo contrário, nomeia Joaquim logo depois de dizer que os “banqueiros” de Aécio e Marina conspirariam para tirar a comida da mesa dos pobres. O “banqueiro” de Dilma, cedido por um banqueiro de verdade, passou os últimos anos criticando a política econômica na qual a presidente-candidata prometeu persistir.
O abaixo-assinado de protesto contra a nomeação, firmado por personagens carimbados da nossa deplorável esquerda, contém uma verdade:
o governo desrespeita a democracia ao trocar seu discurso de campanha pelas propostas de política econômica da oposição.
A outra, obviamente, não está no texto:
tirando alguns ingênuos irrecuperáveis, seus autores apenas utilizam o nome do “banqueiro” como moeda de troca pelos nomes dos “companheiros” que sonham emplacar no Ministério.
Dirigindo-se à audiência militante do abaixo-assinado, Gilberto Carvalho disse que, “ao aceitar ser ministro desse projeto”, Joaquim, o Levy, “está aderindo a esse projeto e à filosofia econômica desse projeto”. Para além da bravata, a mensagem é que a autonomia de Joaquim está limitada à esfera do ajuste fiscal. O ministro nomeado para a Fazenda não tem a prerrogativa de avançar em reformas centradas na produtividade, na competitividade e no equilíbrio cambial. Contudo, sem elas, não se alcançará uma redução duradoura dos juros, pressuposto de um ciclo sustentado de crescimento.
No fim, o “projeto” circunscreve-se a um efêmero ajuste recessivo, conduzido por um “banqueiro”, como introito a uma nova “etapa” de expansão populista, conduzida por um “companheiro”.
Joaquim aceitou a missão porque Lázaro Brandão, o chefão do Bradesco, pediu-lhe isso e porque quer desenhar um “X” no quadrado vazio de seu currículo. Mas ele deve saber que a “filosofia econômica” do governo chama-se Barbosa, o Nelson. O ministro nomeado para o Planejamento está entre os principais formuladores da “nova matriz econômica” que desembocou na crise atual. Ele só deixou o governo quando viu se abrirem as portas do inferno, depois que Dilma e Mantega resolveram seguir os doutos conselhos do secretário do Tesouro, Arno Augustin, engajando-se na maquiagem das contas públicas.
O conflito entre Fazenda e Planejamento está escrito nas estrelas — e seu resultado também. Joaquim, o Breve, foi nomeado para fazer, exclusivamente, o trabalho sujo.
O lulopetismo não é um movimento de ruptura, como o chavismo. Essencialmente conservador, sua película ideológica circunscreve-se, na esfera da política econômica, à expansão dos investimentos das estatais, do gasto público, do crédito ao consumo e dos subsídios para o alto empresariado. A receita populista, mal denominada “keynesiana” por seus arautos, não é sustentável ao longo da fase de baixa do ciclo econômico — e, por isso, precisa ser corrigida periodicamente por ajustes recessivos.
É aí que entra o “banqueiro”, convocado para salvar os “companheiros” das consequências de seus alegres folguedos.
A equipe econômica anunciada pela presidente é uma síntese, produzida na hora da crise, da alma dúplice do lulopetismo. De certa forma, Gilberto Carvalho tem razão. Tanto Joaquim quanto Barbosa fazem parte “desse projeto” de reiteração pendular de nossa mediocridade. O “mercado” pode celebrar; o Brasil, não.
DEMÉTRIO MAGNOLI
Fonte: O Globo, 04/11/2014.
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