“A esquerda não é compatível com quem toma banho todos os dias. A melhor propaganda anticomunista é deixar os comunistas falarem”(PAULO FRANCIS, citado em O Estado de São Paulo de 05 Fev 97).
Eric Hobsbawn nasceu em 1917 em Alexandria, Egito, e fez seus estudos em Viena, Berlim, Londres e Cambridge. É professor visitante em diversas universidades da Europa e EUA, professor aposentado da Universidade de Londres e autor de diversos livros editados em diversos idiomas.
Hobsbawn é apontado como um dos maiores historiadores marxistas do Século XX. É um dos órfãos de Marx, mas insiste que o que sumiu na poeira da História foi o chamado socialismo real, um equívoco cinzento feito à base do partido único, Estado onipotente, arte demagógica e imprensa oficialesca. É comunista desde os 14 anos, quando ainda não sabia estabelecer a diferença entre centralismo democrático e um pudim de chocolate.
Passado o vendaval que varreu o socialismo real, Hobsbawn, em entrevista concedida ao jornalista Geneton Moraes Neto, transcrita no livro de sua autoria “Dossiê Moscou”, fez uma avaliação das ilusões que viveu.
“Minha maior ilusão foi acreditar que a União Soviética poderia ser uma alternativa de desenvolvimento para o Ocidente. Mas depois dos anos 50 e 60 ficou claro que o socialismo soviético não iria cumprir suas promessas nem realizar suas potencialidades. A partir daí, muitos – como eu – deixaram de acreditar no que tinham acreditado quando jovens”.
Perguntado se o marxismo morreu, respondeu que não, “mas não há dúvida de que uma grande parte das crenças do marxismo já não pode ser considerada válida”.
“A falta de liberdade foi o pecado capital, particularmente para os intelectuais. Mas o pecado capital mesmo do socialismo foi acreditar que a economia poderia ser operada inteiramente através de um planejamento centralizado, sem a atuação dos elementos do mercado (...) O que existia, basicamente, era um exagero do papel do Estado Central como um arquiteto da nova sociedade.”
“Além de tudo, o desenvolvimento dos partidos comunistas foi profundamente influenciado – e distorcido – pelo fato de que o marxismo tomou o Poder na Rússia. O que aconteceu? A União Soviética dominou por anos e anos o desenvolvimento do marxismo e do movimento comunista internacional, o que acabou provocando uma divisão – mais negativa do que perigosa – entre as duas facções do marxismo: os social-democratas e reformistas de um lado; os comunistas e revolucionários de outro”.
No entanto, “não acredito que o marxismo tenha falhado na explicação do desenvolvimento da História. Eis um grande debate que se desenvolve entre historiadores e filósofos. A contribuição do marxismo permanece essencial. O que haverá é um marxismo modificado. A crença dos marxistas na determinação única do desenvolvimento econômico provou ser inadequada”. (Nota: observem que a tão falada “doutrina científica” para Hobsbawn é uma crença).
“O socialismo real – tal como o tivemos até há poucos anos – não vai voltar. Mas há lugar, sim, para uma nova tentativa de construir uma sociedade de liberdade e de igualdade (...) O fim do socialismo real deixou um enorme vazio. Hoje, um grande número de pessoas dos que poderiam estar na esquerda – seja a esquerda socialista, seja a esquerda revolucionária – não sabe em quem acreditar. Há um vasto espaço para o sonho. Mas também o perigo de que esse espaço seja preenchido por um tipo errado de sonho: por sonhos nacionalistas. De qualquer maneira, problemas como a pobreza e a desigualdade, cada vez mais presentes no desenvolvimento global da economia, assumem uma proporção que haverá certamente espaço para movimentos políticos que tentem resolvê-los”.
Nial Ferguson, professor da Universidade de Oxford, perguntou, em um artigo sobre Eric Hobsbawn publicado em setembro de 2002 no Daily Telegraph:
“Como pode um brilhante acadêmico cometer um erro político por tanto tempo, por 50 anos, para ser exato, período em que foi membro do Partido Comunista? Como pode ele continuar a acreditar, como ele claramente faz, que alguma coisa pode ser salva da lamentável empresa de Lenin e seus asseclas? A tragédia do comunismo, que custou a vida de dezenas de milhões, é que um homem com a inteligência de Eric Hobsbawn não pôde ver, e ainda não pode, que o comunismo foi a negação tanto da liberdade quanto da justiça, em nome de um espúrio e falso igualitarismo”.
Kenneth R. Minogue, titular da cadeira de Ciência Política da London School of Economics, declarou: “A um amigo que quisesse entender as tentações do totalitarismo, eu recomendaria que lesse o Manifesto Comunista e ouvisse aquela canção do musical ‘Cabaret’ chamada ‘Tomorrow Belongs to Me’" (“O Amanhã me Pertence”). Tanto o Manifesto como a canção exibem um belo otimismo e uma simplicidade de raciocínio que terminam levando à morte e à destruição”.
Diante de tudo isso, em algum recanto escuro do estranho museu aberto perto do prédio da KGB, em Moscou, Maiakovski continua gritando: “Dai-nos, companheiros, uma arte nova – nova! Que arranque a república da escória!”
A legião de órfãos de Marx poderia reescrever Maiakovski e gritar: Dai-nos, Século XXI, uma utopia nova!
Outra autocrítica – embora relativa - que merece menção é a de Nikita Kruschev. Ele condenou o stalinismo no XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, em fevereiro de 1956. Nesse dia ele subiu ao podium e deixou em estado de choque os quase 1.500 delegados que permaneceram sentados, pasmos, em um silêncio total. Kruschev, até então um stalinista ortodoxo, leal e diligente executor de qualquer ordem do líder, subitamente encheu-se de coragem cívica e histórica, desfazendo-se de preconceitos há muito arraigados. Concentrando seu discurso nos anos 30, falou sobre o terror e os métodos que os asseclas de Stalin utilizavam para arrancar confissões, métodos e terror que ele conhecia tão bem, pois fizera carreira no partido sob o reinado stalinista.
Nem sempre, entretanto, Kruschev externou opinião tão pouco lisonjeira sobre o ditador (Stalin). Ao criticar dois companheiros de partido acusados de “atividades contra-revolucionárias”, no auge da era Stalin, Kruschev chegou a dizer: “Ao levantarem suas torpes mãos contra o camarada Stalin, eles a levantaram contra tudo o que de melhor existe na humanidade. Stalin é a esperança, é o futuro, é o líder que guia toda a humanidade progressista. Stalin é nossa bandeira. Stalin é nossa vontade. Stalin é nossa vitória. Viva Stalin!”.
Quando resolveu denunciar, anos depois, os horrores praticados por Stalin, Kruschev pintou o retrato de um homem paranóico: “Stalin era um homem desconfiado, cheio de suspeitas mórbidas. Nós, que trabalhávamos com ele, sabíamos. Era capaz de olhar para alguém e dizer: ‘Por que você evita olhar diretamente nos olhos?’. A suspeita doentia criou em Stalin uma desconfiança generalizada até mesmo em relação a eminentes chefes do partido, que ele conhecia há anos. Em tudo e em todo lugar, ele via inimigos, ‘gente de duas caras’, ‘espiões’. Dono de um poder ilimitado, demonstrava grande obstinação e silenciava as pessoas moral e fisicamente”.
Esse é o comunismo e esses são os comunistas.
Bibliografia: “Dossiê Moscou”, Geneton Moraes Neto, Geração Editorial, outubro de 2004.
23 de dezembro de 2014
Carlos I. S. Azambuja é Historiador.
Nenhum comentário:
Postar um comentário