"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

BULGÁRIA SOB JUGO COMUNISTA



 
Quinta-feira Santa, 16 de abril de 1925, há uma multidão na praça da catedral Sveta Nedelya (Santa Domência), em Sofia. Os curiosos se amontoam para assistir ao enterro do general e deputado Konstantin Georgiev, assassinado na antevéspera, quando atravessava, a pé, um dos vários jardins do centro da capital búlgara. Muitos esperam ver também personalidades da vida pública e, quem sabe, até o rei Boris III. O interior do amplo prédio religioso está lotado, a impaciência é geral e se atribui o atraso do soberano ao fato de ter na véspera, escapado por pouco, de um atentado que causou a morte de dois de seus guardas.
 
Às 15:23 uma grande explosão ergue a cúpula da catedral, que desaba sobre os fiéis e projeta fragmentos sobre a praça. Foram retirados cerca de 150 cadáveres, entre os quais o do prefeito da capital, os de 34 oficiais superiores, quatro jornalistas, dois advogados, um banqueiro e quatro arquitetos. Mas de 500 pessoas sofreram ferimentos, entre as quais o Primeiro-Ministro Alexandre Tsankov, seus ministros da Defesa, do Interior e do Exterior. Quanto ao rei, em 48 horas acabara de escapar pela segunda vez da morte.
 
Esse atentado terrorista, que permanece nos anais como o mais mortífero perpetrado na Europa no início do Século XX, foi tramado e executado por militantes do Partido Comunista Búlgaro (PCB), que agia, então, na clandestinidade. Os historiadores do partido por muito tempo se recusaram a atribuir a paternidade dessa carnificina ao PCB, que agia sob as ordens do Komintern.
 
O atentado à catedral foi apenas o prolongamento de uma tensão política e social que ia num crescendo desde o golpe de Estado de 9 de junho de 1923. Nessa data, diversos elementos da chamada direita, sob a direção do jurista Alexandre Tsankov e secundados por militares, terminaram de forma selvagem com a experiência do governo dos agrarianistas que governavam o país de maneira autoritária. Alexandre Stambolijski (1879-1923), líder carismático da União Agrária e Primeiro-Ministro desde a derrota militar para a Alemanha, é brutalmente assassinado. Em 24 de setembro de 1923, o PCB insufla uma insurreição chefiada pelo búlgaro Giorgy Dimitrov, Secretário-Geral do Komintern e pelo também búlgaro Vassil Kolarov, número dois desse organismo, rapidamente sufocada. Três dias depois de irrompida a insurreição e sem esperar por seus desdobramentos, Dimitrov e Kolarov fugiram para Viena, deixando o partido e a esquerda búlgara à beira de uma feroz repressão.
 
Ao constranger o PCB a ficar fora da lei, provocando, conscientemente, uma repressão que sacrificava os comunistas e a esquerda, o Komintern procurava radicalizar a ação de esquerdistas e comunistas, tornando-os mártires da grande causa bolchevique. O governo de Tanskov, tentando recuperar a paz, em abril de 1924 decretou uma anistia geral para os eventos de setembro de 1923, mas proibiu o funcionamento do PCB. Mal libertados, os ativistas retornam às suas atividades subversivas e o PCB se reorganiza na ilegalidade. Quando de sua Conferência Nacional, realizada clandestinamente em 18 de maio de 1924, o partido, dos 38 mil membros do ano precedente, tinha menos de 3 mil. A Conferência dividiu o país em cinco regiões políticas e militares, por sua vez subdivididas em circunscrições e em cantões, e unidades, companhias e “sextetos” de militantes armados se formam. Dos dez membros que compõem o novo Comitê Central dois estão presos, um está gravemente doente e Giorgy Dimitrov e Vassil Kolarov estão exilados em Viena, em contato com o Komintern, do qual dependem totalmente.
 
De maio de 1924 à primavera de 1925 os atentados se multiplicam. Grupos armados, geralmente provenientes da Sérvia, circulam pelas montanhas praticando barbaridades. A despeito do fracasso da insurreição de setembro de 1923, a linha política do PCB continua em harmonia com a linha determinada pelo Komintern: tomada do poder pela luta armada e insurreição.
 
O PCB se prepara para uma insurreição prevista para meados de abril de 1925, e o atentado à catedral de Sveta Nedelya (acima narrado) deveria marcar o seu início. Todavia, a polícia havia interceptado uma carta do Komintern datada de 12 de março de 1925, dando instruções aos comunistas da circunscrição de Vratsa e assinalando que os insurretos receberiam o apoio de 600 emigrantes procedentes da Iugoslávia.
 
No que concerne ao atentado de 16 de abril de 1925, as investigações posteriores estabeleceram que a centralização dos explosivos e seu transporte para a catedral tiveram início em dezembro de 1924. O militante Nicolas Petrov, encarregado de atear fogo aos explosivos havia se apresentando, com o nome de “Vasko”, a Petar Zadgorski, sacristão da catedral e simpatizante do partido. Preso, Petar Zadgorski declarou que: “(...) Ele me disse: pensamos em assassinar uma personalidade importante e, no momento do seu funeral, atearemos fogo aos explosivos no sótão da catedral de forma a matar os ministros e o Rei (...) No dia seguinte, fiquei sabendo que o general Georgiev havia sido assassinado e Vasko me confirmou que era, de fato, a personalidade cujo funeral deveria atrair para a catedral pessoas importantes, ministros e o Rei. Eu vou ficar no sótão, disse ele, e você, quando todos os ministros e o Rei estiverem na catedral, virá bater na porta para que eu acenda a mecha (...) Não comente nada com ninguém, senão você é um homem morto (...) Eu bati na porta antes da chegada do Rei, mesmo sabendo que os senhores ministros não haviam, todos, chegado”.
 
De acordo com o Ministério do Interior da época, 3.194 pessoas foram detidas, das quais 1.182 foram incriminadas, com 168 condenações à morte. No entanto, poucas sentenças chegaram a ser executadas.
 
Assim, 20 anos antes de tomar o Poder na Bulgária, o Partido Comunista, na qualidade de seção búlgara da III Internacional, pode ser considerado como diretamente responsável pela morte de centenas de compatriotas inocentes.
Ao fim da I Guerra Mundial, na Bulgária que fora uma aliada das Potências Centrais (Alemanha, Áustria e Hungria) emergem dois partidos: a União Agrária e o Partido Comunista Búlgaro. Os anos 1919-1923 são dominados pela experiência agrária. O União Agrária, que se apóia nas massas camponesas, põe em prática reformas populistas de forma autoritária. Quanto ao PCB, é oriundo do ramo radical e marxista do Partido Social Democrata Búlgaro, fundado em 1891. Seus simpatizantes são recrutados entre os operários de um proletariado que acabava de nascer, e também nos meios intelectuais. Em agosto de 1918, já sob a denominação de Partido Comunista Búlgaro, seção da III Internacional, ele recebe 18% dos sufrágios legislativos, elegendo 45 deputados e tornando-se a segunda força política do país.
 
Somente cerca de 10 meses depois do golpe de Estado de junho de 1923 é que o PC Búlgaro foi proibido de funcionar e um ano depois, em virtude do atentado à catedral de Sofia é que passa a sofrer uma selvagem repressão. Em 1927 os comunistas emergem da ilegalidade, agora sob a sigla de Partido Operário Búlgaro (POB). Em junho de 1931, em seguida às eleições, uma coalizão centrista toma o Poder e o POB aproveita-se para consolidar suas posições. A coalizão mantém-se até 19 de maio de 1934, quando é derrubada pelo golpe de Estado do movimento político Zveno, que reúne principalmente militares antiparlamentaristas e opostos à monarquia.
 
Às vésperas de 9 de setembro de 1944, a Bulgária se vê numa situação paradoxal, sem qualquer aliado, está em guerra com todas as potências beligerantes, apesar de nunca ter perpetrado nenhuma ação militar contra qualquer delas. O Exército Vermelho entrara na Bulgária em 8 de setembro e encontra um país dispondo de um exército, de instituições e de uma administração intactos, de forças sociais estáveis, e de elites políticas e de uma intelligentzia preservadas, assim como de um governo legal favorável aos Aliados. Na noite de 8 para 9 de setembro de 1944, algumas unidades do exército da guarnição de Sofia, apoiadas por alguns tanques, cercam o Ministério da Guerra onde se refugiava o governo e o general Ivan Marinov, Ministro da Guerra, ordena a abertura das portas do ministério para as tropas rebeladas que declaram a queda do governo e proclamam a instauração de um governo de Frente Patriótica. Tudo isso sem um único tiro. O golpe de Estado leva ao Poder quatro formações políticas, entre as quais o comunista Partido Operário Búlgaro.
 
Todos os países aliados ao III Reich passaram por um expurgo após a derrota. O mais chocante porém, no caso da Bulgária, é a rapidez e amplitude do expurgo que se abate sobre todo o país desde as primeiras horas da tomada do Poder pelos comunistas e seus aliados. No decorrer do mês de setembro e de maneira sistemática, cidadãos são sumariamente executados por grupos armados ou desaparecem sem deixar vestígios depois de terem sido apanhados em plena rua ou em suas casas. Apesar do tempo decorrido, o número dessas vítimas ainda não pôde ser determinado, uma vez que os documentos referentes a esse período continuam a ser classificados como “secretos”. Varia entre 138 mil pessoas desaparecidas ou massacradas sem julgamento, de acordo com as declarações da rainha Joana, em 1946. Esse expurgo selvagem foi, no entanto, deliberadamente organizado. Na Circular nº 5, de 12 de setembro de 1944, o Comitê Central do PCB ordena que todas as organizações do partido “produzam um expurgo rápido em todo o aparelho do Estado e liqüidem, sem falhas e de maneira enérgica, todos os ninhos de resistência fascista”. O Secretário Político do Comitê Central, Traitcho Kostov, afirma: “Ele (o expurgo selvagem) foi conduzido por nossas troikas executivas”.
 
Em 12 de setembro de 1944, três dias após sua entrada em função, um dos primeiros cuidados do Conselho de Ministros foi decretar: “A prisão: 1. De todos os ministros dos diferentes gabinetes búlgaros desde 1 de janeiro de 1941 até 9 de setembro de 1944; 2. De todos os deputados que apoiaram, com seus votos, os gabinetes supracitados; 3. De todos os militares que, por seu comportamento, levaram o país à beira da catástrofe; 4. De todas as pessoas que, como conseqüência da política perpetrada pelos gabinetes supracitados, ordenaram, encorajaram ou executaram mortes, incêndios, pilhagens ou torturas”. No mesmo dia, esse decreto ministerial é duplicado pela Circular nº 5, do Comitê Central do PCB, que se dirige às células do partido. A Circular estipula: “Não se devem pôr entraves às atividades revolucionárias das massas, que mostram ser o apoio mais eficaz do novo partido popular”.
 
Em 1946, o Ministro da Justiça afirmou que em seu país havia 200 criminosos de guerra. Entretanto, das 28.630 pessoas detidas até dezembro de 1944, 11.122 foram levadas aos 135 tribunais populares sem que se conheça o destino das restantes. Em 5 meses de atividades, as diferentes jurisdições pronunciam 9. 155 condenações, das quais 1.305 à prisão perpétua e 2.370 à pena capital. Entre os condenados à morte estão 3 regentes, 22 ex-ministros, 67 deputados, 8 conselheiros do Rei e 47 oficiais superiores. Em 2 de fevereiro de 1945, pouco depois da meia-noite, 5 caminhões levam para o cemitério central de Sofia, 91 desses condenados. Ali, amontoados numa cratera de bomba, eles são executados pelo fogo cruzado de 4 metralhadoras e enterrados em valas comuns e anônimas.
 
Apesar das posições cada vez mais sólidas graças ao terror, aos tribunais populares, aos expurgos no aparelho do Estado, do esquadrinhamento feito no país pelas organizações do PCB e, por ultimo, apesar da presença cúmplice do exército soviético de ocupação, o novo Poder não parou o massacre. Em 6 de dezembro de 1944, o ministro do Interior, Anton Iugov, propôs ao Conselho de Ministros um decreto-lei organizando “comunidades de educação para o trabalho” e, em 20 de dezembro, o governo autoriza a criação de dois tipos de campos. O primeiro, destinado aos direitos comuns – elementos anti-sociais, prostitutas, reincidentes, adeptos de jogos de azar, desocupados e mendigos. O segundo, reservado às pessoas consideradas “politicamente perigosas”.
 
O primeiro campo foi o de Sveti-Vratch, onde, em abril de 1945, “trabalhavam” 1.622 pessoas. Outro campo, o de Rositsa, contava com 893 detentos naquela mesma época. O prazo de detenção, nos 86 locais de detenção administrativa que era inicialmente de 6 meses, chegara a 7 anos, mais tarde. Ao longo do período comunista na Bulgária, estima-se que 23.531 pessoas foram “pensionistas" desses “campos de trabalho” de 1944 a1962, das quais 2.089 mulheres.
 
Longe de cessar, após a morte de Stalin, em 1953, a repressão política apenas diminuiu de intensidade. O aparelho repressivo foi inteiramente mantido durante o domínio do cunhado de Giorgy Dimitrov, Valko Tchervenhov, e só foi encerrado em 1956, com a desestalinização de Kruschev no XX Congresso do PCUS. Na ocasião, a estrela em ascensão no regime búlgaro era um certo Tidor Jivkov, obscuro secretário do PCB. Nomeado para esse posto em 1954 com o apoio da nova equipe que passou a ocupar o Kremlin, ele soube conservar seu poder com a habilidade de um camponês ardiloso por 35 anos. Isto é, até a sua demissão forçada em 10 de novembro de 1989, um dia depois da queda do Muro de Berlim.
 
Nesses 35 anos de coexistência pacífica, a máquina comunista, suficientemente rodada, não tinha mais necessidade de devorar suas vítimas com a máxima urgência. Para manter o regime em velocidade de cruzeiro, bastava aplicar, de acordo com o momento e com a necessidade, num tecido social cada vez menos resistente, “toques cirúrgicos” ou “punções homeopáticas” corretivas. Uma nova geração de agentes da Segurança do Estado, oriundos das universidades e das escolas de informação, chega ao mercado. Os membros dessa nova “elite” acabam por se considerar como “engenheiros da alma”, e não é raro, para eles, pedirem àqueles a quem devem condenar pra lhes serem gratos, pois sua prisão lhes poupa de cair no precipício para o qual os arrastam seus crimes. O pobre tipo, estupefato por estar sendo acusado de conspiração contra o Estado ou de espionagem para uma potência estrangeira, se assegura quando lhe explicam que é corriqueiro e normal cometer tais crimes de maneira inconsciente e que, precisamente, a nobre função do agente de segurança é lhe revelar suas próprias infâmias. Em suma, a Segurança do Estado é uma obra caritativa que exerce sua dura, mas sã terapia na sociedade.
 
O estudo do comunismo na Bulgária está ainda em seu início. Se as publicações de testemunhos são numerosas, sua decifração e sua análise por parte dos historiadores ainda estão por fazer. Para sua sobrevivência material, boa parte dos búlgaros teve de atar compromissos com o regime. Com a lei aprovada pelo novo Parlamento em abril de 2002, que mais uma vez priva o cidadão do direito de acesso a seu dossiê da ex-Segurança do Estado, assistimos a um retrocesso sem que isso suscite qualquer emoção particular na sociedade.
Em 1 de janeiro de 2007, 17 anos após a implosão do comunismo no país, a Bulgária foi admitida como membro da União Européia.
 
O texto acima é um resumo da matéria em epígrafe, escrita por Diniu Charlanov, Liubomir Ognianov e Plamen Tzvertkov, publicada nas páginas 315 a 365 do livro Cortar o Mal pela Raiz! História e Memória do Comunismo na Europa, diversos autores sob a direção de Stéphane Courtois, editora Bertrand do Brasil, 2006.
 
19 de setembro de 2014
Carlos I. S. Azambuja é Historiador.

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